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O argumento da ladeira escorregadia: O Programa de Eutanásia Nazista e sua

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA INERENTE À

2.3 PRINCIPAIS ARGUMENTOS ELENCADOS NA DISCUSSÃO ACERCA

2.3.1 Argumentos Contrários

2.3.1.8 O argumento da ladeira escorregadia: O Programa de Eutanásia Nazista e sua

Peter Singer (2002) assevera que há meio século Adolf Hitler vem lançando uma longa e escura sombra sobre as discussões da eutanásia. Aduz que a tal ponto persiste a sombra hitleriana, que a cada vez que é discutida a eutanásia, a ladeira escorregadia surge sob os nossos pés e, ao pé da ladeira, aguarda-nos o holocausto.

Em face da afirmação supra, antes de adentramos nas questões inerentes à eutanásia praticada na Alemanha nazista e sua relação com o a eutanásia hoje, releva tecer breves comentários sobre a expressão “ladeira escorregadia” – slippery slope- assim empregada por Schauer em 1985. O argumento consiste em afirmar que a admissão de uma certa norma controversa em função de uma certa ação pretendida implica admitir igualmente a validez de um conjunto sucessivo de outras normas que permitem uma séria de outras ações originalmente consideradas imorais ou não pretendidas. Por exemplo, aceitar a eutanásia de pacientes terminais implicaria aceitar igualmente a eutanásia de doentes idosos; que por sua vez implicaria aceitar a eutanásia de inválidos e deficientes; esta, por sua vez, implicaria aceitar a eutanásia de “pessoas indesejadas”, o que levaria a admitir a morte pura e simples de pessoas indesejadas e, sucessivamente, a morte de qualquer outro por motivos irrelevantes (AZEVEDO, 2002).

Corroborando o exposto apresentamos as considerações de Caplan (1992, p. 197) que destaca: “nenhuma acusação ética é mais devastadora do que as práticas nazis”. Prossegue o autor alegando que muitos críticos das práticas eutanásicas atuais aduzem que elas diferem muito pouco do movimento nazi, consubstanciando-se pelo menos na fase incipiente de um esforço programático para terminar as vidas de alguns pacientes.

Consoante destaca Singer (2002), o trecho mais freqüente citado sobre o nazismo e a eutanásia deve-se a um psiquiatra americano, o major Leo Alexander, que foi encarregado de fazer um relatório sobre a esterilização compulsória nazista e o chamado programa de eutanásia. Segundo Alexander (1949 apud SINGER, 2002, p. 250).

Quaisquer que tenham sido as proporções finalmente assumidas pelos crimes (nazistas), para todos aqueles que os investigaram tornou-se evidente que, na origem, esses crimes tiveram começos modestos. A princípio não foram mais que uma sutil mudança de ênfase na atitude fundamental dos médicos. Começou com a aceitação da atitude, decisiva para o movimento da eutanásia, de que existia uma coisa que era a vida que não merecia ser vivida. Em seus estágios iniciais, essa atitude ocupou-se apenas os doentes graves e crônicos. Gradualmente, a esfera dos que seriam incluídos na categoria foi-se ampliando até abranger os socialmente improdutivos, os ideologicamente indesejados, os racionalmente indesejados e, finalmente, todos não-teutônicos. Contudo, é importante perceber que a alavanca infinitamente pequena a partir da qual a fase plena dessa tendência ideológica recebeu seus impulsos foi a atitude em relação aos doentes irrecuperáveis.

Enfatiza Singer (2002) que a mensagem de Alexander era simples: para evitar que o nazismo seja recorrente, devemos negar a existência de algo como “uma vida que não merece ser vivida”. Prossegue o autor analisando que o ponto de vista de Alexander pode ser simplesmente o de que a atitude que tornou possível o holocausto foi a atitude de que algumas vidas, por ficarem abaixo de algum padrão ideal de pureza racial e genética, não eram “merecedoras de serem vividas”. Se essa perspectiva procede, ou não, é uma imensa e complexa questão histórica, não sendo seu propósito negar sua validade, pois ela pode perfeitamente estar correta. Caso proceda, então, segundo o autor, a atitude que se encontra na raiz do holocausto é uma atitude que, felizmente, poucas pessoas endossarão hoje.

Conclui asseverando que a forma pela qual o debate acerca da eutanásia prossegue mostra que ele já emergiu bastante de sob a sombra de Hitler. E era preciso que o fizesse. Não acredita que devamos esquecer o holocausto; pelo contrário, é importante continuar lembrando a nós mesmos, a nossos filhos e netos, da natureza desse terrível episódio que mostra, melhor que qualquer outro deste século (referindo-se ao século XX), o pior daquilo que somos capazes. Entretanto, na concepção de Singer (2002), não podemos construir barreiras eficazes contra o retorno ao passado por meio de ações que resultam francamente fúteis, como conservar a vida daqueles que jamais voltarão a recobrar consciência. Devemos nos esforçar por construir uma ética defensável para essas difíceis questões, e assim encontrar o caminho para seguir adiante.

A discussão da eutanásia e, mais em geral, da tomada de decisões clínicas no final da vida, está emergindo de sob a sombra de Hitler, precisamente até o ponto de podermos agora migrar para uma discussão mais aberta e complexa daquilo que terá firmeza, ou não, nas posturas que assumimos sobre questões éticas relacionadas ao fim da vida. Nesse ponto endosso, plenamente, um comentário feito por Prins no

decurso de uma entrevista a Arlene Klotzko (Arlene Judith Klotzko. What Kind of Life? What Kind of Death? An interview with Dr. Henk Prins. Bioethics, vol. 11, nº. 1 – janeiro de 1997 – pp. 24-42 ). Ela perguntou a Prins se o fato de permitir que a qualidade de vida desempenhe um papel nas decisões de vida ou morte suscitaria problemas do tipo ladeira escorregadia. Prins respondeu: “sim; porém, a vida é inevitavelmente uma ladeira escorregadia e nela estamos todos nós. Se não trouxermos à tona os assuntos – se não pensarmos e falarmos sobre eles – o perigo da ladeira escorregadia torna-se maior”. (SINGER, 2002, p. 259).

Diante do exposto, temos que não podemos refutar a relevância do Período Nazista na discussão acerca da eutanásia, todavia não podemos nos prender as mazelas desse período objetivando evitar a discussão que urge acerca da eutanásia e suas implicações. Porquanto, a eutanásia que se vislumbra na atualidade, a exemplo da casuística apresentada no item anterior, não guarda qualquer semelhança com as práticas homicidas perpetradas em tempos pretéritos, em especial, durante a Segunda Grande Guerra.