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3.4 O ARIANISMO ENTRE OS POVOS GERMÂNICOS

O cristianismo era missionário por essência. Sua proposta de salvação da humanidade por meio da redenção dos homens alimentava seu proselitismo. Até o seu surgimento, as religiões eram basicamente nacionais, cada povo tinha os seus deuses, em contrapartida com os deuses do povo vizinho. A religião dos judeus não era exceção, apesar do seu monoteísmo, que, aliás, tinha antecedentes no Egito. Mas era revolucionário o surgimento de uma religião que se propunha a abranger todos aqueles que se convertessem. O cristianismo, dessa forma, herdou a ideia de povo eleito dos judeus, mas a estendeu a toda a humanidade. A salvação assim não estava ao alcance apenas de um povo, mas de toda a humanidade, desde que se convertesse. E todos eram bem-vindos: era essa a “boa nova” propagada pelos Evangelhos.

Quando o Império Romano se tornou cristão, o próprio Estado assumiu essa função prosélita. Tornou-se imperativo converter os cidadãos do Império. De início, Constantino apenas conferiu isenção fiscal ao cristianismo, colocando-o em pé de igualdade com a antiga religião oficial romana, a qual sobreviveu ainda por algum tempo196. Já com Teodósio, o cristianismo ganhou status de religião oficial do Estado romano. Tornou-se assim política do Império instalar o reino de Deus na Terra, e ser cristão era ser parte do Império Romano; ser romano e ser cristão se tornaram sinônimos.

É certo que ainda havia populações não cristãs. Na própria elite senatorial de Roma, o paganismo perdurou algum tempo, menos por convicção religiosa do

196 Constantino e seus sucessores até Graciano ainda ostentavam o título de pontifex maximus,

sumo sacerdote da regilião oficial, apesar de pouco passarem pela cidade de Roma e já não contribuírem para o custeio da manutenção dos templos (vide a respeito FERRI, Giorgi, L’ultima danza dei Salii, L’élite pagana di Roma e gli imperatori cristiani nel IV secolo, Procedimenti giuridici e sanzione religiosa nel mondo greco e romano, Universtité de Toulouse – Jean Jaurès).

que por apego às glórias do passado197. Aliás, Roma no século IV, por incrível que pareça, era capital do paganismo. Até a cristã Alexandria continha ainda pagãos neoplatônicos na elite intelectual198. No campo, também, o paganismo sobreviveu; na Itália, e, sobretudo, nos rincões distantes do Império. E havia também os judeus, que, mesmo expatriados de seu território de origem, mantinham sua religião como um fator de férrea sobrevivência.

Essa cristianização do Império exigiu grandes esforços da Igreja. De um lado, a mensagem salvífica cristã é simples, eis que prega a caridade e o amor. Jesus resumiu todos os mandamentos na seguinte “boa nova”: “amai-vos uns aos outros como Eu vos amo”199. Por outro lado, contudo, sua teologia prescinde de certo raciocínio abstrato, sobretudo no que toca ao mistério da Santíssima Trindade. A maior parte da população não alcançava a compreensão plena da mensagem cristã. Há ainda a necessidade de material humano para propagar a fé. Como bem apontou Pablo C. Diaz200: “el catecumato era lento, exigia la

explicación de una serie de princípios teológicos que, elaborados essencialmente en griego, no siempre encontraban una traducción fácil a lenguas que eran poco aptas para los desarollos litúrgicos que los rituales cristianos necesitaban”.

De fato, o processo de conversão era mais fácil para aqueles povos que cultuavam religiões com um nível mais sofisticado de abstração ou já contendo algum conceito de salvação, como era o caso do Mediterrâneo oriental, que foi a região onde o cristianismo primeiro se propagou. E, às vezes, essa compreensão dos meandros da religião cristã sequer era alcançada por aqueles que se

197

Episódio emblemático gira em torno da remoção do Altar da Vitória em Roma. A estátua da Deusa da Vitória foi retirada da Cúria do Senado por Graciano. O senador pagão Símaco, prefeito da Urbs e pontífice, solicitou então ao imperador Valentiniano II sua reposição, no que encontrou forte resistência de Santo Ambrósio bispo de Milão (Relatio Synmachi Urbis Praefecti, 3 e Amb. Epist. 17,18, 57).

198 Exemplo notório é Hipácia, filósofa e matemática neoplatônica de Alexandria, a qual acabou

sendo morta em 415 por uma turba de monges insuflados pelo bispo local Cirilo, em razão de seu paganismo.

199

Evangelho de São João, 15, 12.

200

DIAZ, C. Pablo. Historia del Cristianismo. El mundo antiguo. El Cristianismo y los pueblos germânicos, Editorial Trotta, Universidad de Granada, 2011, pág. 688.

propunham a realizar essa obra missionária. A Igreja não dispunha de quadros suficientes para um rebanho tão numeroso. Para tanto, teve de contar com pastores, que foram, recentemente, convertidos e que, portanto, não tinham condições de seguir fielmente a ortodoxia. Cite-se ainda que, frequentemente, esses pastores provinham do povo que estavam catequisando, fator que eventualmente imprimia certo sincretismo na interpretação das Escrituras.

A rigor, o processo de conversão da população do Império Romano, depois que o cristianismo virou uma religião de Estado, não acarretou conversões individuais espontâneas201. Era mais um processo de cima para baixo, segundo o qual os líderes se convertiam e arregimentavam seus subordinados. Afinal, tornar- se cristão no Baixo-império era uma condição indispensável para promoção social e nas carreiras públicas202. O cristianismo estava inseparavelmente unido ao prestígio cultural e político do Império Romano, e a conversão atraía mais em função desse prestígio do que da mensagem religiosa em si. A conversão dos povos germânicos, dessarte, apresentava essa característica, sendo de se salientar que a mesma ocorreu, na grande maioria dos casos, após sua entrada no Império.

Por outro lado, contudo, havia o risco de perda da individualidade tribal com a cristianização dos povos germânicos, se atentarmos para o fascínio que exercia a cultura romana. Essa também foi uma das causas de o arianismo ser adotado quase que unanimemente pelos germânicos após seu ingresso no Império. Se, por um lado, o cristianismo civilizava, por outro, o arianismo garantia uma independência frente ao Império e à Igreja católica. Dessa forma, com essa autonomia, as características inerentes à sociedade germânica puderam sobreviver, como é o caso de sua estrutura guerreira e seu espírito coletivista203.

201

Como escrevia Constantino a seus súditos orientais após sua vitória sobre Licínio, em 324, unificando o Império: “Uma coisa é ir voluntariamente à luta por sua salvação eterna, outra é ir constrangido sob sanção penal” (Eusébio de Cesaréia, Vita Constantini, II, 160).

202

VEYNE, Paul, em “Quando nosso mundo se tornou cristão”, Ed. Civilização Brasileira, pág. 150, estima o número de cristãos na época de Constantino em 10% da população.

203 Adolf von Harnack, em sua obra Lehrbuch des Dogmengeschichte (apud WILLIAMS, Rowan,

No mais das vezes, a conversão significava meramente a inclusão de Cristo e dos santos no seu panteão nacional, como uma divindade a mais. É claro que existem exemplos de conversões individuais sinceras, inclusive de líderes representativos, que arrastavam consigo todo o seu povo (por ex.: Clóvis, rei dos francos). Afinal, o chefe bárbaro tinha ascendência para isso, o que explica certas conversões em massa, assim como a mudança em bloco da religião de todo um povo, do arianismo para o catolicismo, ou vice-versa, como a ocorrida com os suevos e visigodos no século VI.

Aliás, o arianismo se moldou às condições necessárias para servir como a nova religião étnica dos germanos. Sua independência frente ao Império garantia ao rei bárbaro manter a liderança sobre o povo. E, uma vez assumida a fé ariana, com sua percepção característica da Trindade, renunciá-la significava uma traição.

Os germânicos se adaptaram bem à sua nova realidade dentro do Império. Assumiram as formas de propriedade usadas pelos romanos, apenas colocando-se no topo da hierarquia social, de modo que as coisas continuassem a funcionar como dantes, só que em seu proveito. Ao se sedentarizarem na Europa, formaram governos com a estrutura administrativa copiada do antigo Império. Imitaram, inclusive, as ingerências cesaropapistas dos imperadores, nomeando e destituindo bispos, convocando concílios eclesiásticos etc. É certo que sua etnia se manteve íntegra e pura durante alguns séculos, dada a proibição de casamentos mistos204, mas seu cristianismo se germanizou. A cultura germânica primitiva se transferiu para o cristianismo. Sua tradição guerreira e seu espírito coletivo se fundiram com

aperfeiçoaria na sua vida terrestre e, assim, se aproximaria de seu criador, ressalta que “naturalmente, ello favorece la aparición de una justificación de la ascesis heroica, y es esto, en conexión con el aspecto politeísta del sistema, lo que hace que el arianismo resulte atractivo para las naciones germânicas”. Essa ascese seria assim mais um antecedente para a formação da cultura heróica dos povos germânicos, cultura heróica essa de que tanto se ufana Oswald Spengler em sua famosa obra “Decadência do Ocidente”.

204 Já no código de Teodósio constava a proibição de casamentos entre romanos e bárbaros. Tal

proibição também constou do código de Eurico e do Breviário de Alarico, embora aqui a situação social dos romanos frente aos godos se inverteu de dominadores a dominados. Os casamentos mistos só foram então permitidos no Codex Revisus de Leovegildo, no final do século VI, dando início à lenta integração racial dos dois povos na Península Ibérica.

os valores cristãos romanos de caridade e de assistência aos desprovidos, transformando-os em valores seus próprios de cristandade. Como bem ressalta Pablo C. Diaz205, “los bárbaros conversos no parecen oprimidos por ningún

sentimiento profundo de pecado, no sienten la imperiosa necesidad de ser redimidos, quieren protección ante los poderosos, los animales daniños, los fenómenos atmosféricos, los malos espíritus y la enfermedad”.