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O artesanato enquanto disciplina do turismo

Concebendo o artesanato genuinamente cabo-verdiano

Considere-se, a título de exemplo, o que se passa com o artesanato em Cabo Verde, na sua faceta potencialmente lucrativa por via do turismo. Na Praça Estrela [em Mindelo, São Vicente], muitos imigrantes da costa ocidental africana vendem artesanato dessa região a turistas ingénuos ou desinformados, que o compram como sendo cabo-verdiano, ou talvez se contentem por ser “africano”. Nos últimos anos, tem-se registado um crescimento assinalável do interesse e da produção de artesanato por parte da população. Esse artesanato tem sido inscrito com motivos “locais”, sejam eles a simples marcação das palavras “Cabo Verde” no produto, seja a multiplicação de imagens associadas à terra (trapiche, pilão, tartarugas, etc.) (Santos, 2018, p. 239).

Lia-se no alto, acima da porta: “Souvenirs Arte Africana. Comercializamos arte africana e também confecções cabo-verdianas”. Linguisticamente o aditivo “e”, intensificado pela palavra “também”, significa uma distinção entre as duas categorias: “arte africana” e “confecções cabo-verdianas”. Do contrário, a primeira englobaria a segunda e o aditivo “e”, assim como toda a segunda frase, não faria mais sentido. Ou seja, confecções cabo-verdianas e arte africana são coisas distintas entre si (Miguel, 2014, p. 68).

O “artesanato cabo-verdiano” passa a definir-se, paradoxal e genericamente, como aquele que não é “africano”, ou seja, que não é oriundo do continente, e a constituir- se como vítima da concorrência exercida pelo seu rival, o exótico e barato “artesanato africano”, vendido por imigrantes (Rovisco, 2017, p. 10).

Seja em uma pesquisa sobre o Carnaval (Santos, 2018) ou homoafetividades masculinas (Miguel, 2014) no Mindelo, ou propriamente uma análise sobre o artesanato vendido como suvenir na ilha da Boa Vista (Rovisco, 2017), os suvenires vêm aos poucos dando as caras nas pesquisas realizadas em Cabo Verde dada a dificuldade em abordar temas que não esbarrem, minimamente que for, na questão do crescimento contínuo das atividades turísticas do país. Não à toa, cada um dos trechos é construído a partir da disputa entre o artesanato feito em Cabo Verde com aquele que seria, de forma genérica, africano. E vale pontuar que essa questão não é posta, pelas autoras supracitadas, de forma trivial, muito embora seja preciso complexificar essa relação. Vem sendo construído, especialmente nas ilhas da essência e sentidos, um movimento de criação, fomento e desenvolvimento do artesanato genuinamente cabo- verdiano. Isso ocorre por um motivo: até o início dos anos 2010, o mercado era quase que totalmente dominado por peças importadas de países da África Ocidental continental, como Senegal e Guiné Bissau.

Embora essa situação de dominação do mercado de suvenires pelas africanas da costa venha mudando, especialmente na ilha de Santiago, a situação no restante do país ainda é complexa. Na ilha do Sal, onde fiquei durante a minha escala de volta ao Brasil, encontrei poucas lojas que vendiam exclusivamente suvenires Made in Cabo Verde. E as poucas que o fazem sinalizam para essa especificidade (como mostra a fotografia 2 do mosaico “Institucionalizando o artesanato genuinamente cabo-verdiano”). Em Santa Maria, principal polo turístico da ilha e onde estão localizadas belíssimas praias de areia branca e água cristalina, o número de lojas de suvenires é muito alto, quase todas elas oferecendo máscaras, quadros, estatuetas de mulheres com finíssimas cinturas e bustos e quadris largos e animais típicos da savana africana esculpidos em madeira. Além das lojas, é possível encontrar suvenires em quiosques e nas ruas pedonais38 da vila, onde imigrantes da costa ocidental africana estendem panos no chão e lá expõem seus produtos da vila.

Mesmo que poucas horas em Santa Maria possam não me gerar nada além de impressões sobre o comércio de suvenires na ilha do Sal, as imagens que vislumbrei na vila e descrevo brevemente aqui replicam as imagens criadas pelas minhas interlocutoras em Santiago sobre a cidade balnear. Ainda, mesmo que esse cenário pareça ser uma regra nas ilhas do Sal e da Boa Vista, como também sugere Rovisco (2017), há um movimento crescente, que se espalha por praticamente todo o país, de fomento da venda e produção do artesanato feito no país. Se em Santa Maria a loja Djunta Mo Art faz coro junto às suas poucas irmãs que vendem exclusivamente produtos da terra, em Santiago lojas do tipo têm proliferado na última década. A necessidade de se desenvolver uma indústria (ou manufatura, que melhor se encaixa no contexto) do artesanato local se torna latente tendo em vista o florescer de práticas do turismo cultural, que tendem a buscar, expor e explorar os elementos genuínos da cultura visitada. Essa demanda, no caso de Cabo Verde, acaba por ser gradativamente suprida pelas artesãs locais, que começam, particularmente na presente década, a agruparem-se, garantindo o fornecimento de suvenires para as turistas.

Ainda, voltando aos trechos supracitados, cada um à sua maneira apresenta a dicotomia criada entre o artesanato cabo-verdiano e o “artesanato africano”, ou seja, aquele produzido e vendido por imigrantes da costa ocidental da África. Se essa tônica gera a dicotomia que permeia a comercialização dos artesanatos/suvenires no arquipélago de Cabo Verde, pretendo,

aqui, adensá-la e complexificá-la, mostrando as tênues linhas que afirmam separar o “nós” e os “outros”.

Em um nível macro das políticas de desenvolvimento do turismo, a demanda por uma produção nacional de suvenires e maior presença da população cabo-verdiana na comercialização das peças surge ao mesmo tempo em que o número de turistas passa a aumentar de maneira significativa, conforme mostra o Apêndice 1, e começa a intensificar a diversificação dos destinos e práticas turísticas com a internacionalização de outros três aeroportos no país – Boa Vista, São Vicente e Santiago – para além do já internacional localizado na ilha do Sal, e a construção de peças publicitárias centradas na perspectiva de nation

branding, como visto no trecho anterior. Contudo, é importante observar que essa demanda

surge não apenas por parte das turistas, envolvidos com a vertente histórico-cultural das práticas turísticas, nem somente por parte do Estado, que, embora se construa enquanto inovador, parece atuar em resposta às demandas criadas pelas turistas e também pelas artesãs e comerciantes locais, principais figuras nesse cenário.

Tendo esse panorama em mente, o presente trecho se divide em três seções: na primeira, discorro sobre a emergência da preocupação com a criação de suvenires genuinamente cabo- verdianos, refletindo especialmente sobre esse movimento nos últimos dez anos e como ele acaba por esbarrar em uma questão tão sensível para a constituição da identidade nacional. Na seção seguinte, analiso a institucionalização da identidade nacional, ou como propõe Rovisco, os “processos de objetificação da cabo-verdianidade” (2019, p. 699), através do Estado cabo- verdiano, na figura dos projetos RENDA e Created in Cabo Verde, traçando um paralelo entre as legislaturas do PAICV e MpD na corrente década, assim como através da ONG OMCV, com o projeto Mãos de Cabo Verde. Para dar uma perspectiva complementar aos projetos institucionais, apresento também a Associação de Artesãos da Ilha de Santiago, que surge dentro do iPericentro, um antigo projeto do Ministério da Cultura e Economias Criativas, e torna- se independente deste. Na terceira e última seção, refletirei sobre aqueles que são acusados de não serem genuínos e que disputam o comércio de suvenires no arquipélago, que são os chineses e os africanos da costa (especialmente guineenses e senegaleses).

i. A emergência dos suvenires “genuinamente” cabo-verdiano

Artesanatos variados e locais, como cerâmica, tapeçaria, cestaria e esculturas de madeira são vendidos na cidade da Praia, nomeadamente no Mercado do Sucupira, no Tarrafal, Assomada e Calheta de São Miguel. Há lojas de artesanato em São Jorge

e São Domingos, onde você pode presenciar artesãs fazendo as peças de arte. Um mercado de artesanato acontece todas as quartas-feiras e sábado em Assomada e todas as segundas e quintas no Tarrafal. Artesanato do continente africano, particularmente do Senegal, são facilmente encontrados. (Directel Cabo Verde, 2015, p. 200, tradução nossa).

É desta forma que é apresentado o setor do artesanato e suvenires na ilha de Santiago pelo Guia Turístico de 2015. Esses dados mostram uma mudança no cenário na ilha, que, assim como as demais, tinha como principais suvenires aqueles cuja origem era a costa oeste africana. Ainda em 2015, a quantidade de artesãs já chamava atenção, mostrando a sua força na ilha. Em números, Eduarda Rovisco aponta que

na lista de inscritos na Câmara Municipal da Praia, em março de 2015, constavam 97 artesãos (56 dos quais mulheres). Sobre a mesma cidade, a lista do iPericentro (Laboratório de Cultura Digital) indicava, no mesmo período, 84 artesãos (45 mulheres), embora 29 não residissem na capital. Apenas 25 nomes figuravam em ambas as listas (Rovisco, 2019, p. 710).

Em relação às lojas, nessa edição do Guia Turístico de Cabo Verde de 2015, apenas dois espaços para aquisição de suvenires foram elencados, a Bijouteria Artesanal do Deserto, que na época do meu trabalho de campo vendia bijuterias de prata e quadros com temáticas diversas, e o Praia Shopping, de maneira vaga. Em 2019, o shopping, que estava com várias lojas não alugadas, contava com uma banca de suvenires no primeiro piso e uma das duas lojas da Bayela’Art by Fatu na cidade da Praia.

Na edição de 2019, não apenas o tom sobre o setor muda, mas o número de lojas duplica, embora seja notório que há mais opções do que apenas a Associação de Artesãos da Ilha de Santiago, a Bayela’Art by Fatu, a Arte Galeria e Café e a Lembrança di Terra. Nessa versão, o foco é todo na produção cabo-verdiana e na diversidade de artesanato que pode ser encontrada pela ilha. Reproduzo a apresentação do setor na íntegra:

Santiago oferece diversos lugares para comprar as tradicionais lembranças de viagem. O artesanato na ilha é rico e há a vantagem de poder ser comprado diretamente com os produtores. Nas cidades de São Miguel, Assomada e Santa Cruz você encontrará muitos ateliers de artesãos que se dedicam à tecelagem, à cestaria e à bijuteria. Tarrafal tem uma forte tradição em cerâmica que pode ser adquirida na cooperativa em Trás- os-Montes. Em Rui Vaz você encontra queijo de cabra tradicional, produzido na região. Há também uma grande oferta de doces e licores feitos à mão e que podem ser comprados nos mercados (Directel Cabo Verde, 2019, p. 171, tradução nossa).

Essa mudança do cenário, especialmente em Santiago, também vem sendo percebida na em algumas produções antropológicas sobre o tema. Em sua recente pesquisa sobre o comércio de suvenires nas ilhas de Santiago, São Vicente e Boa Vista, a antropóloga Eduarda Rovisco observou, no que tange à cidade da Praia, que

no início de 2017, existiam nesta cidade seis lojas de artesanato, todas inauguradas depois de 2011. As lojas da Praia expõem sobretudo peças de artesãos cabo- verdianos, exibindo bastantes objetos executados nesta ilha, destacando-se o

vestuário, calçado, acessórios e bijutaria elaborados a partir de tecidos wax print e de bandas de panos da terra. O Mercado de Sucupira constitui também um espaço incontornável no comércio de artesanato. Em 2015, este mercado acolhia treze stands que (...) exibiam objetos importados do continente e peças produzidas por artesãos cabo-verdianos. (...)A maior destas lojas chama-se Lembrança di Terra. As restantes têm por nome: Grão de Areia, Agu di Coco e Chioarte, existindo duas lojas que ainda não possuíam nome, pertencentes a dois coletivos de artesãos.” (Rovisco, 2019, p. 715).

Comparada com as demais ilhas (Rovisco, 2017; Rovisco 2018), Santiago apresentaria uma maior oferta e destaque para os suvenires produzidos em Cabo Verde e por cabo- verdianas. Isso se dá por várias razões, como o fato de Praia ser o centro de comércio mais importante do país e concentrar metade da população do país. Excluindo as Gifts Shops dos hotéis e o espaço provisoriamente ocupado pelas artesãs da PraiArte,39 em 2019, apenas na rua Pedonal do Plateau, haviam seis lojas nas quais os suvenires eram o carro-chefe ou um deles. Em suas adjacências, era possível contabilizar outras três lojas na rua Serpa Pinto e um quiosque de informações para turistas na Praça Alexandre Albuquerque, sem contar com as lojas de produtos chineses na Avenida Amílcar Cabral. Esmiuçarei o perfil dessas lojas no trecho quatro.

Se o cenário vem mostrando um crescimento importante nos últimos anos, nem sempre ele foi assim. Deolino, presidente da AAIS, contou-me que há 30 anos quase não havia artesanato em forma de suvenir para ser vendido no país. Como o turismo começou a crescer nesse período, as africanas da costa viram na ausência de concorrência do ramo uma boa entrada para desenvolver os seus negócios. Qualquer pessoa que esteja minimamente vinculada ao mundo dos artesanatos e suvenires com quem você converse na ilha de Santiago esboçará afirmações sobre como “o artesanato agora que está a começar aqui em Cabo Verde”, como alegaram os presidentes das duas associações de artesãos presentes da ilha de Santiago, Claudio, da PraiArte, e Deolino, da AAIS. Ainda segundo Claudio, em 2011 a quantidade de artesãos era tão baixa que, quando ocorriam feiras de artesanato, a Câmara Municipal da Praia dava subsídios para os expositores de dois contos40 por dia de exposição.

E não apenas a quantidade de artesãs era baixa. Algumas pessoas indicam que o número de cabo-verdianas envolvidas com a comercialização de suvenires também era baixa. “Agora é que mais cabo-verdianos vendem [suvenires]. Antigamente, em 2007/2008, era só pessoal da

39 Como nos apresenta Rovisco (2019, p. 711), a associação Praiarte é um dos coletivos de artesãs da ilha de

Santiago, sendo legatária de uma associação anterior, a Kapitalart, fora criada em 2012. Quando da minha chegada à cidade da Praia, a associação estava ocupando o espaço que anteriormente era do iPericentro, a ser apresentado em breve, mas teve que deixar o prédio devido a problemas na estrutura dele.

costa”, como me contou July, nominho41 de um jovem guineense que é um dos mais antigos vendedores de suvenires do Pelourinho, na Cidade Velha. Coincidentemente, no dia em que tivemos essa conversa, entre final de maio e início de junho, só havia ele de estrangeiro lá, mesmo que em ocasiões anteriores eu tenha encontrado um vendedor senegalês com a sua banquinha lá. Compondo o conjunto de vendedoras da praça naquela tarde, o espaço estava tomado por senhoras e jovens rapazes, todas cabo-verdianas residentes na Cidade Velha. Dentre suas mercadorias, constavam cajus, mangas, wax print, pulseiras, colares, estatuetas e outros suvenires. Vale mencionar que os suvenires lá presentes eram majoritariamente de procedência chinesa.

Para justificar a forte presença de africanos da costa no comércio de suvenires em Cabo Verde, Cherita, uma jovem trader42 togolesa que possui uma loja de suvenires, vestuário e outros

itens na Rua Pedonal do Plateau, disse que em “Cabo Verde não tem a sua própria criação de artesanato”, o que justificaria a necessidade de se importar produtos de outros países, especialmente aqueles da costa ocidental. Entretanto, é importante pontuar que nas três lojas de suvenires do Plateau que são gerenciadas por mulheres da costa ocidental, havia sempre a presença do artesanato cabo-verdiano. Isso ocorreria, de acordo com Nhanha, trader senegalesa que está em Cabo Verde há aproximadamente uma década, porque as turistas que visitam a ilha de Santiago gostariam mais do artesanato feito em Cabo Verde, frente ao senegalês que compõe quase metade dos itens da sua loja.

Embora não tenha sido possível verificar se todas as turistas conseguem realizar tal diferenciação, pode-se presumir que Nhanha fez essa relação pensando no perfil de Santiago, que é uma ilha marcada, dentre as diferentes modalidades do turismo lá presentes, pela vertente cultural. Assim, é possível associar a crescente oferta e demanda nesta ilha em específico por conta do perfil de turista que essa prática turística atrai. Esse fator, associado ao interior agrário da ilha de Santiago possibilitou a produção de peças de panaria, cestaria e olaria. Estas áreas, que em tempos anteriores estavam “confinadas ao espaço doméstico, (...) adquiriram nos

41 O nominho, ou nome-de-casa, é o nome dado à forma como os cabo-verdianos são chamados no cotidiano. Ele

não é o nome de Igreja (nome de registro oficial) nem necessariamente um diminutivo dele, como são os apelidos no Brasil, “é geralmente uma criação, feita na língua crioula, que não preserva relação lexical necessária com nenhum dos outros dois”, como apresenta Pina (2011, p. 243). Ainda, João Vasconcelos (2007, p. 73) aponta para o fato de que é mais comum que as pessoas sejam “mais conhecidas pelos seus nominhos do que pelos nomes de registo”.

42 Traders é um termo utilizado em diversos contextos africanos para designar indivíduos que viajam vastas

distâncias e fazem circular mercadorias através das redes que elas constroem. As traders costumam lançar mão de estratégias de sobrevivência e comércio que ultrapassam fronteiras da legalidade. Ainda, vale ressaltar que esse tipo de atividade comercial agrega muitas mulheres (cf. MacGaffey & Bazenguissa-Canga, 2000; Steiner, 1994).

últimos anos uma grande visibilidade em feiras de artesanato” Rovisco (2019, p. 711). Ou seja, quando as artesãs afirmam que não havia produção de artesanato como há hoje, não quer dizer que essa produção tenha surgido apenas na última década, mas sim que os objetos que anteriormente estavam nas cozinhas, nas trocas comerciais e no campo têm a sua função social modificada e recebem uma mudança significativa em suas vidas sociais, passando de um uso exclusivo no âmbito do doméstico e tornam-se, também, suvenires.

Todavia, essa emergência de uma arte popular que represente a nação em suas “raízes”, evocando às práticas passadas, não é um artifício da construção da identidade nacional único a Cabo Verde. Especialmente nos países africanos afetados pelo colonialismo europeu, a reivindicação de produções marginalizadas – e muitas vezes criminalizadas – durante o período colonial provenientes das camadas populares é realizada para criar o distanciamento entre africanos e europeus e, assim, reafirmar um distanciamento entre colonizadores e colonizados. É o exemplo da roupa (Hansen, 2004), da música (Plageman, 2013), entre outros.

Acima de tudo, o artesanato, lido aqui enquanto um elemento da cultura popular, emerge enquanto ferramenta de construção da nação em momentos de reforçar a diferença entre o nós, cabo-verdianas, e as outras, externas. E esta não é a primeira vez que esse fenômeno ocorre. Rovisco nota que, no pós-independência, o artesanato enquanto item do cotidiano assumiu função central enquanto “uma das áreas mais criativas da construção nacional durante a I República, [que] espelha[va] a ideologia revolucionária e africanista deste período, apresentando o povo como herói da resistência ao colonialismo e o artesanato como expressão dessa resistência produtora de ‘objetos militantes’” (Rovisco, 2017, p. 9). É no momento de pós-independência que o governo resgata as raízes culturais africanas e possibilita um maior grau de universalização do acesso ao ensino frente ao realizado no período colonial (Henriques, 2016, p. 115).

Se no pós-independência realçar elementos da africanidade era uma forma de gerar uma contraposição ao discurso colonial, o acionamento do artesanato agora tem uma função um tanto mais complexa. É de se perceber uma semelhança no discurso do Cabo Verde pós- independência na atual produção artesanal com fins de se tornar suvenires, uma vez que naquele tempo a ideia era de “renovar e desenvolver a grande tradição da panaria de Cabo Verde, tão importante no passado, para que possa renascer com a mesma força, mantendo a tradição africana”.43 E se a manutenção da “tradição africana” não é evocada da mesma forma,

43 Em “Estatutos da Cooperativa de Produção Artesanal Resistência” (Arquivo do CNA [ACNA], caixa 8),

é inevitável perceber que esse é um ponto ainda forte, especialmente na ilha de Santiago, onde alguns elementos do passado escravagista ainda são tão fortes. E este é o ponto que torna a questão identitária dos artesanatos genuinamente cabo-verdianos mais curiosa, visto que, ao mesmo tempo em que ela pretende se afastar das peças que produzem uma homogeneização do continente africano, como as máscaras, estatuetas de animais e outros produtos de madeira, uma parte considerável dos suvenires estão intimamente conectados às práticas trazidas por africanos escravizados que foram levados para a ilha, assim como à toda estrutura escravagista que teve lugar na ilha, como a cerâmica, a panaria e a cestaria, como veremos neste e no próximo trechos.

Se observarmos, por exemplo, a divisão do continente africano em áreas culturais feita pelo antropólogo estadunidense Melville Herskovits, Cabo Verde estaria inserido na seção que

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