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O Atlas como referência de estudos, planejamento e visão sociocultural

Foge, pois, o Atlas ao mero reconhecimento oficial de ma- nifestações culturais de cunho popular para se afirmar como uma alavanca que se presta a dar visibilidade docu- mental a essas manifestações a fim de também possibilitar que determinadas ações de políticas públicas e de iniciati- vas da sociedade civil sejam elaboradas para salvaguardar e promover o desenvolvimento social dos portadores do folclore, levando à própria preservação das manifestações culturais resultantes das ações desses portadores. E parte o Atlas ainda do princípio de que os registros nele cons- tantes, tendo por função situar, num certo momento, fatos determinados sob situações específicas, não se constitui em palavra final, mas numa oportunidade inicial de mediar relações entre grupos populares e aqueles que pretendem salvaguardar seus saberes de diferentes maneiras. Dentro desse foco, foram levados em conta: a) os dispo- sitivos da Constituição de 1988 que, depois de preceituar que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos di- reitos culturais (art. 215), estabelece no § 1º do art. 216 que “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”; e b) os parâmetros inovadores advindos da Carta do Folclore Brasileiro de 1995, na reformulação dada ao conceito de folclore e nas premissas do seu Capítulo V sobre a salvaguarda e promoção das manifestações folcló- ricas mediante ações atinentes à democratização do acesso à produção cultural e à proteção dos direitos culturais dos portadores.

Dessa forma, todos aqueles que se dedicam a enriquecer o cotidiano da população capixaba com suas criações me- recem contar com mínimas condições de amparo e reco- nhecimento pelo trabalho que realizam. A publicação deste Atlas se coloca como instrumentação disponível para que

reconhecimentos dessa ordem possam também ser discuti- dos e encarados com seriedade e resolvidos com a atenção que estão a exigir.

Cabe uma observação a mais. Durante a elaboração do Atlas defrontou-se com situações conflitantes ou reducionistas, relativas não só à própria questão da conceituação do tra- balho, como ao seu campo de abrangência. Até onde vai o limite desta ou daquela manifestação? Esta manifestação que se diz jongo é igual àquela a que também se dá essa denominação? Como situar a capoeira e a quadrilha, com seus desdobramentos atuais, no âmbito conceitual do Atlas e do próprio folclore capixaba? E assim por diante. Contra essas “armadilhas”, o Atlas assumiu a própria clas- sificação dos sujeitos em relação a si mesmos e os con- templou em suas páginas, também no tocante à aborda- gem circunscrita a determinados saberes em detrimento de outros, situados fora do território contextual diretamente relacionado com as danças e folguedos, tendo-se ainda em mira a classificação desses saberes em face de sua fun- cionalidade econômica, consoante a Instrução Normativa nº 2 do Artesanato Capixaba, da Secretaria de Estado do Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Espírito Santo, de 2009.

Com todas essas condicionantes que tiveram de ser enfren- tadas, inerentes a um trabalho como o que foi feito, a equi- pe que o produziu espera não se ter afastado do sentido de referência para estudos, planejamento e visão sociocultural ligados ao folclore capixaba, que foi perseguido como obje- tivo norteador do Atlas.

Tradição, em folclore, tem outro sentido: não é o passado passado, extinto, morto. É o passado vivo no presente, o ontem que se repete, que continua no hoje. (Guilherme Santos Neves) Data de 1982 a publicação do primeiro volume do Atlas Folclórico do Brasil, proposta que surgiu no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro em 1951. Infelizmente, o que deveria ser uma brasiliana do artesana- to, danças e folguedos brasileiros, temas que haviam sido eleitos como campo de abordagem das pesquisas a terem lugar nos diversos estados da Federação, não se concreti- zou como desejado. Ainda bem que, para nós capixabas, veio à luz o volume sobre o Espírito Santo.

O rico material que compôs o “nosso” primeiro atlas folcló- rico, com textos, fotografias em preto e branco, tabelas e dados estatísticos, resultou de um ingente esforço de pes- quisa e levantamento de campo de cerca de um ano, como também da reunião de dados e estudos que já vinham sendo elaborados sob os auspícios da Comissão Espírito- -santense de Folclore.

Esse precioso acervo, disponibilizado para a produção do Atlas, tinha, pois, a particularidade de retratar um conjunto de manifestações folclóricas caracterizadoras de uma qua- dra histórica que se situou entre as décadas de 40 e 70 do século passado, tornando-se uma obra clássica sobre o folclore capixaba, de referência obrigatória.

Teve assim o primeiro Atlas a cara de um Espírito Santo que, àquela época, estava ingressando numa fase socioeconô- mica industrializante e transfiguradora de sua história, cuja datação toma por marco inicial o advento, na terra capixa- ba, dos chamados Grandes Projetos (mineração, celulose, portuário), a partir dos anos 70.

Em outras palavras, e para assinalar a evidência: o nosso primeiro Atlas, com trinta anos de dianteira em relação à presente publicação (que passamos a denominar de Novo Atlas), é produto de um Espírito Santo que se configurava como um estado de bases econômicas ainda fortemente agroexportadoras, dependente em primazia da sua produ- ção cafeeira.

Em Vitória, e no seu entorno, a partir dos Grandes Proje- tos, tiveram lugar mudanças demográficas e urbanas que levaram à conformação da região metropolitana da capital, dando início à vertiginosa urbanização que o estado sofre- ria, a par da chegada à região de uma mão-de-obra atraída pelas novas oportunidades de trabalho que a implantação daqueles projetos propiciava.

A essa mão-de-obra, de procedência exógena em relação ao espaço urbano em que veio se assentar, somem-se os desempregados do campo que a política de erradicação dos cafezais menos produtivos, posta em prática pelo Governo Federal, fez engrossar como novos ocupantes dos morros e mangues da Grande Vitória, no decorrer dos anos 60. Dessa forma, uma reconfiguração socioeconômica achava- -se em marcha no Espírito Santo, com a população rural, antes predominante no estado, transferindo-se para a zona urbana, e a monocultura cafeeira cedendo terreno a um novo modelo exportador que gerou uma dinâmica desen- volvimentista estruturada em pesados investimentos de capital externo, sem precedentes em nossa história. Cumpre realçar ainda que o primeiro Atlas foi organizado na vigência de fundamentos conceituais de folclore de- rivados do I Congresso Brasileiro de Folclore (Rio, 1951), que originaram a primeira Carta do Folclore Brasileiro. Consideravam-se, então, como características típicas dos fatos folclóricos a oralidade de sua transmissão (propaga- ção verbalizada sem antecedentes escritos), o anonimato (ou a autoria desconhecida) e a antiguidade ou tradição