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O autorrespeito como mais importante bem primário

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3.3 Uma análise pontual da teoria da justiça de John Rawls – apontando alguns

3.3.3 O autorrespeito como mais importante bem primário

Em vários momentos da obra A Th eory of Justice, Rawls deixa claro

que entre os bens sociais primários,118o autorrespeito tem relevância fundamental. Parece muito claro que um indivíduo que esteja incluído no paradigma da normalidade pode usufruir muito melhor da renda e da riqueza do que um indivíduo não-paradigmático.119Por isso não irei discutir essas questões. O que me interessa aqui é a ênfase dada por Rawls no bem do autorrespeito.

Como o pensador afi rma:

É claramente racional para os homens assegurar seu autorrespeito. O senso de seu próprio valor é necessário para que eles persigam sua

116 Cabe mais uma vez fazer esclarecimentos acerca da terminologia, para tanto, utilizarei as palavras de Nussbaum, posto que seguirei os conceitos adotados por ela: “[...] na literatura sobre a discapacidade, ‘defi ciência’ é a perda de uma função corporal normal; ‘discapacidade’ é algo que você não pode fazer em seu entorno como resultado [da defi ciência]; uma menos-valia é a desvantagem resultante das desvantagens competitivas.[...] uso o termo ‘defi ciência mental’ e ‘discapacidade mental’ para cobrir o terreno ocupado tanto pela discapacidade ‘cognitiva’ quando pela ‘doença mental’: correspondendo a ‘defi ciência física’ e a ‘discapacidade física’ (embora, é claro, isso não implique que as defi ciências mentais não tenham uma base física)” (NUSSBAM, 2006, pp. 423-424). (“[…] in the disability literature, “impairment” is a loss of normal bodily function; a “disability” is something you cannot do in your environment as a result; a “handicap” is the resulting competitive disadvantage. […] I use the term “mental impairment” and “mental disability” to cover the terrain occupied by both “cognitive” disabilities and “mental illnesses”: it corresponds to “physical impairment” and “physical disability” (although of course it does not imply that the mental impairments do not have a physical basis).”

117 Para uma análise bastante próxima dessa que apresento ver Beckett, 2006 pp. 163-169.

118 Mais especifi camente renda e riqueza e as bases sociais do autorrespeito

119 Sen faz uma crítica bem fundamentada da proposta de Rawls, acerca dos bens sociais primários, mais especifi camente da renda e riqueza em: Sen 2006/2008.

concepção de bem com satisfação e tenham prazer em sua realização. O autorrespeito não é tanto uma parte de algum plano racional de vida como o sentido de que vale a pena realizar esse plano. Mas nosso autorrespeito normalmente depende do respeito dos outros. A menos que nós sintamos que nossos esforços são respeitados por eles, nos é difícil, se não impossível, manter a convicção de que vale a pena avançar em nossos objetivos. Por essa razão, as partes aceitariam o dever natural do respeito mútuo, que exige que as pessoas tratem umas as outras com civilidade e estejam dispostas a explicar os motivos de suas ações, especialmente quando as pretensões dos outros são rejeitadas. (RAWLS, 1971, pp. 178-179) (grifo meu)120

Algumas questões interessantes podem ser retiradas dessa passagem: 1º - A que homens Rawls se refere? Parece-me que esses homens são aqueles indivíduos paradigmáticos que correspondem ao ideal rawlsiano. Portanto, estando excluídos da posição original, os indivíduos não- paradigmáticos estão também excluídos do conceito de homens inferido por Rawls. Indo mais longe, parece que Rawls se refere à humanidade. Então, que conceito pode ser forjado para incluir indivíduos não- paradigmáticos se a humanidade lhes é rejeitada? Talvez justamente a singularidade de cada instância de humano fuja à teoria da justiça de Rawls, posto que, ao idealizar um tipo humano ele esquece que também são, geralmente, classifi cados como humanos aqueles que não correspondem àquele tipo, como já foi ressaltado por Kittay.

2º - Rawls deixa claro que o senso de autorrespeito é necessário para que se viva uma vida digna. Ademais, sentir-se respeitado é parte dessa dignidade. Então, qual o sentido de dignidade, que uma pessoa que tenha seu cognitivo preservado, pode ter se seus planos de vida sequer são levados em consideração? Um indivíduo cego, por exemplo, necessita de certas condições especiais para se locomover com liberdade, para exercer certas funções que não necessariamente exigem o sentido da visão. Contudo, a sociedade é estruturada para atender somente às necessidades dos indivíduos paradigmáticos – que também as têm, temporária ou permanentemente. Como afi rma Nussbaum:

120 “It is clearly rational for men to secure their self-respect. A sense of their own worth is necessary if they are to pursue their conception of the good with zest and to delight in its fulfi llment. Self-respect is not so much a part of any rational plan of life as the sense that one’s plan is worth carrying out. Now our self-respect normally depends upon the respect of others. Unless we feel that our endeavors are honored by them, it is diffi cult if not impossible for us to maintain the conviction that our ends are worth advancing. Hence for this reason the parties would accept the natural duty of mutual respect which asks them to treat one another civilly and to be willing to explain the grounds of their actions, especially when the claims of others are overruled.”

Pavimentamos ruas, criamos rotas de ônibus, e, entretanto, na maioria das vezes não incluímos rampas para cadeiras de rodas, nem acessos adaptados nos ônibus. Certamente nós não exigimos que os ‘normais’ demonstrem sua capacidade para realizar as atividades relacionadas com o trabalho sem nenhuma assistência mecânica, como condição prévia para considerá-los ‘produtivos’. O espaço público é uma projeção de nossas ideias sobre inclusão. Mantendo as ruas de um determinado modo e não de outro, excluímos certas pessoas que são altamente competentes e ‘produtivas’, mas que acontece de serem cegas [...]. (NUSSBAUM, 2006, p. 117)121

Dito de outro modo, a dignidade que Rawls busca enaltecer para os indivíduos paradigmáticos depende de certas condições que a sociedade deve estar preparada para sustentar, enquanto esquece que alguns ajustes podem dar dignidade (autorrespeito) a outros que arbitrariamente são excluídos. Mais uma vez, uma concepção mais alargada do humano seria, de acordo com a hipótese que defendo, uma boa alternativa.

3º - Qual poderia ser a justifi cativa dada às pessoas com defi ciência para o fato, inconteste, de que suas demandas não serão atendidas? Cabe aqui fazer uma ressalva, Rawls admite essa falha em sua teoria.122 Contudo, essa admissão não diminui em nada o problema ético que se coloca. Uma objeção a essa afi rmação seria que a teoria de Rawls é política e não se pretende a uma teoria ética abrangente. Entretanto, a resposta também é clara, as condições políticas são pilares nos quais a sociedade se baseia para o tratamento das pessoas em particular. Portanto, se a sociedade é estruturada de forma excludente, no âmbito privado a consequência será também a exclusão, até mesmo por falta de oportunidades. Não vejo como explicar para os indivíduos não-paradigmáticos a causa da sua exclusão a não ser por motivos de ordem econômica, o que eticamente não me parece muito válido. Ademais, ressalto mais uma vez, segundo entendo, o problema que encontramos na Teoria de Rawls tem sua origem no ponto de partida assumido pelo fi lósofo, que é uma determinada concepção ontológica do humano, um conceito fechado que ao mesmo tempo que descreve quem pertence ao seu âmbito exclui aqueles que não são por ele apreendidos. 121 “We pave roads, we create bus routes, often failing at the same time to create wheelchair ramps and wheelchair access on buses. Certainly we do not require that ‘normals’ demonstrate an ability to perform all work-related activities without mechanical assistance in order to regard them as “productive.” Public space is an artifact of ideas about inclusion. By maintaining the streets in one way and not in another, we exclude a person who is highly competent and “productive” but who happens to be blind […]”

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