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CAPÍTULO V – FORMAÇÃO E TÉCNICA NO DEPOIMENTO DE MATHEUS

5.5 O “BAILADO” COM A CÂMERA E O CONTROLE DO CORPO

Uma experiência distinta de Nachtergaele no cinema ocorre em outros filmes que o ator pôde exercitar o entendimento de seu processo dialogando com as propostas de enquadramento adotadas pelo fotógrafo, criando uma relação de cumplicidade com a câmera, tipo de experiência que se distingue, por exemplo, da experiência relatada em “Cidade de Deus”:

Eu não tenho relação com o fotógrafo do “Cidade de Deus”. Eu sei quem ele é, mas talvez se eu encontrar ele na rua, a feição dele não me seja familiar. Não foi alguém com quem eu

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bailei. Foi alguém que me assaltou quando eu estava fazendo o negócio. Não é como o Walter Carvalho, esses fotógrafos com quem eu danço. Você faz um bailado com o cara (...). Eu e o Walter quando a gente se encontra pra fazer um filme, a gente fala: “Vai ser o quê? Valsa, Polka?” (...). E eu gosto de saber onde ele tá. Que lente que ele tá usando. E ele vai me dando essas informações: “olha, o plano tá fechado até aqui, aí eu vou girar pra cá, e se você quiser fazer alguma coisa aqui e acolá...”. E a gente vai bailando junto. Isso no “A Febre do Rato” (2011) a gente fez muito, muito mesmo. A gente bailou (NACHTERGAELE, p. 104).

Ao fim do terceiro capítulo vimos o depoimento de Cavalli sobre seu trabalho no filme “Cafundó” (2006), em uma cena de nudismo que seria enquadrada em close. No entanto, no momento da revisão, a atriz conferiu que a cena havia sido gravada em plano aberto e pediu para refazê-la, pois, conforme afirma atriz: “se soubesse que o plano seria aberto, gostaria de ter feito de outra maneira”. Como se tratava de uma cena ao ar livre, e não havia mais luz suficiente, os diretores Paulo Betti e Clóvis Bueno resolveram não incluir aquele take, em respeito ao que havia sido combinado com a atriz (CAVALLI, 2009, p. 55). Esta experiência se assemelha ao que apresenta Nachtergaele com relação aos acordos que podem ocorrer entre ator, diretor e fotógrafo, que possibilitam ao ator compreender que partes do corpo serão utilizadas dentro de um enquadramento previamente combinado, um tipo de entendimento que marca uma especificidade da linguagem cinematográfica, mas que também poderia ser comparado ao trabalho do ator no teatro.

Neste sentido, parece pertinente traçar paralelo entre teatro e cinema, para refletirmos sobre o entendimento, e até mesmo o controle, que o ator pode ter sobre seu desempenho em diferentes obras. Quando atuamos em um espetáculo para um espaço intimista, e em seguida o adaptamos para um teatro de cerca de 500 lugares, a performance acaba por se transformar, uma vez que gestos mínimos tem que ser adaptados para uma visibilidade em maior distância. O ator, portanto, sabe que é visto (e ouvido, sentido, etc) por pessoas situadas em diferentes espaços. No cinema o ator sabe que está em determinado enquadramento, e tem de adequar o uso do corpo à sua “área de atuação”.

Em “Secrets of Screen Acting” (2003), Patrick Tucker relaciona quatro possibilidades de planos de câmera a estilos de interpretação. Assim, um “plano geral” (long

shot) estaria adequado a atuações de estilo “melodramático”, enquanto a “plano médio” (medium shot) ao estilo de um “teatro intimista”. O “close médio” (medium close up) seria adequado a “realidade” enquanto um “grande close” (big close-up) extrapolaria esta dimensão do real (TUCKER: 2003).

O autor comenta ainda que, “uma vez que a atuação para a tela envolve diferentes tamanhos de planos (...) o ator de cinema deve estar preparado para adaptar sua performance

128 a cada plano” (TUCKER, 2003, p. 9). A prática teatral parece exigir uma habilidade semelhante do ator, uma vez que um espetáculo não é apresentado em apenas uma determinada sala. Quando um espetáculo promove determinada itinerância, por exemplo, a adaptação da obra para distintos espaços também exige do ator um controle do corpo para o uso de um espaço distinto, adaptando sua intensidade corpóreo-vocal, suas marcas, entradas e saídas (que são alteradas pelas possibilidades de luz que cada espaço oferece), entre outros fatores.

No entanto, estas duas linguagens artísticas, teatro e cinema, exigem como vimos anteriormente, distintas formas de concentração do ator, uma vez que o tipo de representação e os ambientes em que estas ocorrem, são muito diversos. Nachtergaele compara esta concentração no teatro e no cinema em seu depoimento:

Você tem que estar em um tipo de concentração diferente da do teatro. Acho. Eu sei que tem atores que não se concentram e dão certo. Pedro Cardoso, por exemplo, vai direto da rua para o palco. Ele nem passa pelo camarim. Ele faz com a roupa dele. Eu acho bonito. Eu já vi ele falando no celular e entrando em cena. Quer dizer, é o avesso de uma concentração. É algo do tipo: “eu não vou criar tensão”. Eu não vou me tensionar. Às vezes o excesso de concentração pode te tensionar. E cada ator vai ter que encontrar isso da sua maneira (NACHTERGAELE, p. 109)

Conforme comenta Nachtergaele, ainda neste mesmo depoimento, a experiência no

set exige que o ator esteja conectado com tudo o que acontece ao seu redor, onde estão os outros atores, onde está a câmera, onde está o boom, entre outros aparatos (Idem, p. 111). No teatro, por sua vez, este controle é exigido do ator no palco, de modo que este deve estar conectado com os enquadramentos da luz, a disposição espacial do público, as marcas de outros atores, ainda que, diferentemente do cinema, estejamos falando de uma representação contínua e que pode ser repetida em outras sessões de um mesmo espetáculo. Os meios são distintos, mas em ambos há um ator que controla sua representação, e, para cada tipo de experiência, este ator dialoga com necessidades técnicas muito específicas. Os acordos e colaborações neste sentido são diversos e demandam novos procedimentos a cada trabalho.

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