• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – POSSIBILIDADES E LIMITES

1. O boom de litigiosidade pós-Constituição de 1988

Conforme já foi discutido, a nova ordem constitucional introduzida a partir da promulgação da Carta de 1988 trouxe inegáveis avanços no campo do acesso à justiça. A inclusão da matéria no rol dos direitos fundamentais, a ampliação da garantia de assistência jurídica integral e gratuita aos capazes de comprovar necessidade de recursos e a criação da Defensoria Pública, erigida ao posto de função essencial à Justiça, foram apenas algumas das inovações responsáveis por desobstruir o caminho que separa os jurisdicionados da obtenção de provimentos jurisdicionais adequados às suas necessidades.

Entretanto, como consequência dessa autêntica reforma introduzida pelo novo texto constitucional em matéria de acesso à justiça, observou-se no Brasil uma verdadeira explosão de litigiosidade, outrora reprimida. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro aponta, a partir de uma compilação de estudos, que, enquanto em 1988 verificou-se uma entrada de 350.000 processos no Poder Judiciário, em 1998 — dez anos após a promulgação da nova Constituição — foram 8,5 milhões. Se por um lado o número de juízes dobrou nesse período, por outro o incremento na quantidade de processos foi de 25 vezes107, registrando-se posteriormente, em 2003, a taxa média de litigiosidade de um processo para cada 10,2 habitantes do território nacional108.

107 Os dados compilados por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro foram extraídos de artigo publicado no Jornal do

Brasil em 07/04/1999 pelo então presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB. Cf. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça – juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 78.

108 De acordo com essa pesquisa, o Estado de São Paulo foi o recordista brasileiro no quesito de taxa média de

litigiosidade, alcançando a marca de um processo para cada 6,62 habitantes. Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. Diagnóstico do Poder Judiciário. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. p.

43

Dados averiguados pelo Conselho Nacional de Justiça em seus relatórios anuais de variáveis e indicadores estatísticos do Poder Judiciário corroboram a análise de que o boom de litigiosidade não estacionou com o passar das décadas após o advento da Carta de 1988, mas segue se acentuando progressivamente. Desde o primeiro relatório do CNJ, cujo ano-base foi 2003, até o mais recente, que examinou dados referentes a 2016, o número de casos novos por magistrado da Justiça Estadual em 1º grau, por exemplo, elevou-se de 946,45109 para cerca de 1.581110, configurando-se um aumento de aproximadamente 67%. Tais informações revelam que, mais do que apenas uma alta taxa de processos por habitante, existe também um excesso de demandas por juiz, tornando a garantia constitucional de que o número de magistrados por unidade jurisdicional seria proporcional à demanda judicial111 cada vez mais distante da realidade.

Os números do cenário brasileiro são ainda mais alarmantes quando comparados aos padrões europeus, sendo sequer necessário incluir nessa análise os países escandinavos — reconhecidos mundialmente por seus excelentes indicadores socioeconômicos — para que se evidenciem as diferenças. Segundo levantamento realizado pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, o número de habitantes por processo cível apresentado ao Poder Judiciário de países como Espanha e França no ano de 2002 foi de 30,8 e 33,9, respectivamente112, números bastante superiores aos dados brasileiros registrados em 2003, já mencionados.

35. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/diagnostico_web.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2017.

109 Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias. Justiça em números

2003: variáveis e indicadores do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2004. p. 41. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_numeros_2003.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2017.

110 Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias. Justiça em números

2017: ano-base 2016. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2017. p. 89. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf>. Acesso em: 4 nov. 2017.

111 Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988, artigo 93, XIII. 112 A título de observação, a referida pesquisa levou em conta apenas os “litigious cases”, desconsiderando os

mecanismos extraprocessuais de resolução de conflitos eventualmente utilizados nos países estudados. Cf. EUROPEAN COMMISSION FOR THE EFFICIENCY OF JUSTICE. European judicial systems 2002: facts and figures on the basis of a survey conducted in 40 Council of Europe Member States. Bélgica: Council of

Europe Publishing, 2005. p. 48-49. Disponível em:

<https://wcd.coe.int/com.instranet.InstraServlet?command=com.instranet.CmdBlobGet&InstranetImage=115024 3&SecMode=1&DocId=1009444&Usage=2>. Acesso em: 4 nov. 2017.

44

Esse elevado grau de litigiosidade no contexto brasileiro até poderia transmitir uma falsa impressão de que grandes progressos estariam ocorrendo no sentido da democratização do acesso à justiça após a promulgação da Constituição de 1988. No entanto, quaisquer vislumbres nessa direção rapidamente se desvanecem quando se verifica que, em verdade, a alta litigiosidade brasileira decorre do fato de que algumas poucas pessoas e instituições — os chamados litigantes contumazes ou habituais, em oposição aos litigantes eventuais — são responsáveis por sobrecarregar o Poder Judiciário com inúmeras demandas113, ao passo que a maior parcela da população permanece alijada dos meios tradicionais de resolução de controvérsias. É o que concluíram os técnicos do Ministério da Justiça em investigação sobre o tema no ano de 2005, intitulada Judiciário e Economia114.

Com aguçada perspicácia, Ada Pellegrini Grinover traduziu o presente quadro na seguinte afirmação:

a sobrecarga dos tribunais, a morosidade dos processos, seus custos, a burocratização da justiça, a complicação procedimental, tudo leva à insuperável obstrução das vias de acesso à justiça e ao distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários115.

Ante essas constatações, a realidade é que os esforços da nova ordem constitucional em ampliar o acesso à justiça não foram acompanhados de uma proporcional reestruturação institucional e administrativa da sistemática de tutela dos direitos dos jurisdicionados. Esse abismo revela-se ainda maior quando levadas em conta questões como a massificação e diversificação das relações jurídicas nas últimas décadas e o consequente advento de novas demandas pela satisfação de interesses coletivos e difusos. Se, por um lado, o clamor por prestações jurisdicionais cresce e se diversifica, por outro, o arcabouço de meios de tutela aos jurisdicionados parece não se modernizar, priorizando velhas estruturas e paradigmas, cuja insuficiência é cada vez mais escancarada.

113 De acordo com relatório elaborado em 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça, só o Instituto Nacional do

Seguro Social - INSS foi responsável por 4,38% do total de processos ingressados no consolidado das Justiças Estadual, Federal e do Trabalho entre 1º de janeiro e 31 de outubro de 2011, ocupando com folgas o topo da listagem dos cem maiores litigantes do Brasil nesse período. Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias. 100 maiores litigantes. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2012. p.

15. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-

judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2017.

114 Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Reforma do Judiciário. Judiciário e Economia. Brasília:

Ministério da Justiça, 2005. p. 6. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2005-dez- 02/estudo_mostra_impacto_acao_judiciario_economia>. Acesso em: 4 nov. 2017.

115 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p.

45

A despeito de alguns avanços nos campos doutrinário, jurisprudencial e até mesmo legislativo, continua existindo uma forte tendência de judicialização dos conflitos, mantendo- se a expectativa de que todas as controvérsias sejam solucionadas perante o Estado-juiz. O acesso à justiça, tão aclamado pela Constituição Republicana de 1988, segue sendo compreendido em larga escala como sinônimo de acesso aos tribunais, ao Poder Judiciário116.