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CAPÍTULO 3 – Homens do Sertão

3.1 O Brasil Sertanejo – Brasil de dentro

3.2 José Gualberto Gaspar de Lemos – O módico homem dos Gerais

3.3 Liodoro Maurício – O homem na sisudez dos antigos

3.4 Chefe Zequiel – O homem da noite

3.1 O Brasil Sertanejo – Brasil de dentro

João Guimarães Rosa, em seu projeto estético-literário, trabalha elementos oriundos de diversas culturas. Tais elementos entram na trama formal do texto, a ele mesclando-se, de modo a tornar quase imperceptível o que foi criação do autor e o que foi haurido e reaproveitado num processo de apropriação e integração textual. A estetização de elementos culturais é algo intrínseco ao fenômeno literário.

Mediante a linguagem, a cultura em “Buriti” dá-se a conhecer. Nesta análise, privilegiamos três personagens – Homens do Sertão – que nos permitem visualizar as culturas do Brasil sertanejo – de um Brasil dentro da nossa nação – forjadas numa sociedade patriarcal.

Em Baú de Alfaias, Sandra Vasconcelos ressalta que na poética rosiana: “O popular deixar de ser pitoresco, mero documentário, para se tornar parte integrante do texto, do enredo. Recriado, passa a ser estrutura, impulso vital da narrativa, incorporado que é à voz do narrador.” (VASCONCELOS, 1984, p.30) Os elementos populares são divisados como aspectos que se integram ao texto, participando do processo de forja da escritura. Eles mergulham nas malhas textuais, misturam-se, sedimentam-se e surgem com significado textual, não apenas como algo pitoresco que o escritor apresenta ao leitor como mera curiosidade.

Leonardo Arroyo, em A Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas, afirma:

A João Guimarães Rosa não passou despercebido o problema da importância da colaboração da cultura popular nas artes e em todos os tempos. Da colaboração e de suas sugestões, o que mostraria a grandeza e seriedade com que se deve estudar, observar e analisar as criações do povo. [...] a cultura popular, na sua experiência milenar, representaria muito mais para o gênero

humano do que a criação erudita, pelo menos na área vivencial e lúdica. (ARROYO, 1984, pp.10-16)

Em “Buriti”, nada surge por acaso. Não há peças soltas na estória. A matéria-prima do projeto estético-literário rosiano provém, possivelmente, da cultura popular. O autor, em entrevista a Günter Lorenz, diz: “[...] quando algo não me fica claro, não vou conversar com algum douto professor, e sim com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados. Quando volto para junto deles, sinto-me vaqueiro novamente, se é que alguém pode deixar de sê-lo.” (In: COUTINHO, 1991, p.79)

Suzi Sperber, em Caos e Cosmos – Leituras de Guimarães Rosa, afirma que: “Sendo a onomatopéia a base semântica na criação das palavras, Guimarães Rosa acentua os fundamentos intuitivos, profundos, irracionais, populares” (SPERBER, 1976, p.146). A citação acima refere-se aos delírios do Chefe Zequiel, nos quais a profusão de onomatopéias constrói um painel sonoro-cultural. Somente mediante a linguagem onomatopéica é que o sentido pode ser apreendido. Afinal, o seu emissor é a noite.

A incorporação do popular ocorre por meio do trabalho com a língua. O autor procede a uma síntese dos modos de vida do Brasil sertanejo e, no caso da novela “Buriti”, observamos essa síntese disseminada entre os personagens.

Talhados na e pela linguagem, as figuras que bailam na fazenda “Buriti bom” formam diversificado manancial humano, universo em que estórias, costumes e tradições constroem o tônus novelesco.

Os três personagens selecionados constituem algumas das balizas do Brasil sertanejo: Iô Liodoro, o patriarca, Nhô Gualberto Gaspar, o fazendeiro vizinho, e Chefe Zequiel, o agregado. Através delas, a cultura sertaneja surge mediante perspectivas diferenciadas, em condições distintas e versadas numa linguagem que, em geral, adquire as nuances de seus enunciadores.

Constituindo-se a personagem como fio condutor do enredo, como tecido da narrativa, lemos os aspectos que dele brotam como líquido que alimenta o corpo da estória, aquilo que dota a estória de vida ficcional.

Eurico Boaventura, em Fidalgos e Vaqueiros (1989), aponta a existência de uma sociedade pastoril no Brasil, caracterizada por uma economia pautada nos lucros do gado em terras bravias. Neste tipo de corpo social, os senhores misturavam-se aos vaqueiros, com eles aboiando e vivenciando a lida diária. Segundo o estudioso,

Todo o sertão se viu movimentado pela civilização pastoril. Sertão pastoril. Uma expressão que é a definição de um mundo, de um mundo dentro do Brasil. A aventura do ouro, das minas também cansou o bandeirante.

Cansaço ou desilusão fez com que se paralisasse o passo desbravador. E, no ríspido do sertão agreste, deixou-se ficar o conquistador, em vários casos, já agora, na pacífica e serena vida de criador de currais em ebulição. (BOAVENTURA, 1989, pp.16-21)

O mundo pastoril constitui-se como universo dentro do Brasil, no interior do nosso país. Está assim localizado porque se formou de modo cômodo, quando o bandeirante foi paulatinamente se cansando da sede aurífera que lhe acossava. Desiludindo-se das fantasias, alguns desbravadores voltaram forçadamente os olhos para o cerne do Brasil. O conquistador, então, deixou-se ficar nas terras, pacifico, criando gado.

Em O Povo Brasileiro (1995), Darcy Ribeiro tem como proposta investigar a formação do nosso povo e de uma multietnicidade que até hoje nos perpassa. Em “Os Brasis na história”, o estudioso procede à divisão etnográfico-ideológica do território brasileiro da seguinte maneira: crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e sulinos.

Desses Brasis, interessa-nos o Brasil sertanejo, este território de dentro, indevassado até certa época, e desbravado pela fome do gado e pela sede do ouro. Acerca da divisão a que procedeu, Darcy Ribeiro salienta: “Essas ilhas-Brasil operaram como núcleos aglutinadores e aculturadores dos novos contingentes apresados na terra, trazidos da África ou vindos de Portugal e de outras partes.[...] Dessas comunidades se projetaram os grupos constitutivos de todas as áreas socioculturais brasileiras [...]” (RIBEIRO, 1995, p.270). O Brasil sertanejo, na reflexão de Darcy Ribeiro, se configura como “ilhas-Brasil”,

Conformou, também, um tipo particular de população com uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo. (idem, p.340)

Essa subcultura forjou-se no seio do sertão, uma das ilhas-Brasil, e forma-se sob o influxo do pastoreio, apresentando características peculiares, que se espraiam pelo modo de organizar a família, estruturar o poder, sistematizar festas.

Galvão (2001) apud Willi Bolle em Grandesertão.br (2004), assim disserta quanto aos significados da palavra “sertão”:

A palavra já era usada na África e até mesmo em Portugal. [...] Nada tinha a ver com a noção de deserto (aridez, secura, esterelidade) mas sim com a de ‘interior’, de distante da costa: por isso, o sertão pode até ser formado por florestas, contanto que sejam afastadas do mar. [...] O vocábulo se escrevia mais freqüentemente com c (certam e certão) [...] do que com s. [G. Barroso) vai encontrar a etimologia correta no Dicionário da Língua Bunda

de Angola, de frei Bernardo Maria de Carnecatim (1804), onde o verbete mulcetão, bem como sua corruptela certão, é dado como lócus

mediterraneus, isto é, um lugar que fica no centro ou no meio de terras.

Ainda mais, na língua original era sinônimo de ‘mato’, sentido corretamente usado na África Portuguesa, só depois ampliando-se para ‘mato longe da costa’. [...] (apud BOLLE, 2004, p.48).

A palavra refere-se no Brasil, portanto, às regiões isoladas. Humberto de Campos (apud Azevedo,1964), em A Cultura Brasileira, atribui esse isolamento aos seguintes fatores: “Com as aberturas dos portos na alvorada do século XIX, ato que contribuiu para a intensificação do comércio, com prejuízo da agricultura e da indústria pastoril, as populações das proximidades do litoral voltaram-se inteiramente para o mar, tornando mais profundo o isolamento do homem branco do extremo sertão.” (apud AZEVEDO, 1964, p.143)

As áreas isoladas adquirem, com o tempo, feições arcaicas, uma vez que passam a constituir retiros distantes do Brasil “de fora”: “A vida dessas cidades se dilui e se absorve na vida do todo de que fazem parte e que constitui, por uma palavra, o sertão.” (idem, p.143). De acordo com Alberto Rangel, em Rumos e Perspectivas (1914), o sertão passa a conservar “nossos traços étnicos mais fundos” (apud AZEVEDO, 1964, p.143). Para Willi Bolle, o sertão engendra formas de pensamento, dentre os quais é possível apontar o pensamento literário, ou melhor, o modo de realização da literatura por meio da categoria sertão.

Em “Buriti”, temos a definição de sertão, por Lalinha, egressa da cidade:

Tudo dado dos Gerais do sertão: como as cantigas e as músicas do vaqueiro- violeiro, sua viola veludeira, viola com o tinir de ferros. Sendo o sertão assim – que não se podia conhecer, ido e vindo enorme, sem começo, feito um soturno mar, mas que punha à praia o condão de inesperadas coisas, conchinhas brancas de se pegarem à mão, e com um molhado de sal e sentimentos. (ROSA, 2001, p.251)

A figuração do sertão faz-se como uma paragem distanciada do mundo corrente: “sendo o sertão assim – que não se podia conhecer, ido e vindo enorme”. Os sociólogos e ficcionistas são consensuais num ponto: o isolamento das regiões sertanejas do nosso país. No entanto, em Guimarães Rosa, vemos que essa região isolada é capaz de produzir novidades: “punha à praia o condão de inesperadas coisas”.

A fazenda Buriti Bom constitui instância isolada, paragem estanque, enfim, retiro encravado nas entranhas do Brasil, representando assim os pontos medulares de nossa cultura, pois, como afirma Boaventura: “Na fazenda de criar, [está] a mais forte origem da nossa civilização.” (BOAVENTURA, 1989, p.24) Um dos pontos de onde se irradia nossa civilização é a fazenda de criar, neste sertão, pouco devassado, origina-se parte de nossa cultura.

Adentramos o sertão com a personagem que primeiro conduz Miguel à fazenda Buriti Bom, “alheia, longe” (idem, p.117): Nhô Gualberto Gaspar.