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Capítulo 1. O desenvolvimento na perspetiva histórico-cultural

1.2. O brincar: atividade principal

[…] Sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério.

(Sarmento, 2006)

No caso da criança a sua atividade principal é o jogo, o brincar, que envolve não só a manipulação dos objetos, mas também o faz de conta, em que a criança usa os objetos humanos para representar ações humanas. Assim preenche as suas necessidades neste estágio, em grande parte a necessidade de compreender o mundo que a rodeia e os diferentes papéis sociais que fazem parte das interações entre as pessoas. O brincar é uma forma da criança fazer as aprendizagens que necessita, na etapa em que se encontra. Assim, a atividade aprendizagem ocorre dentro da atividade principal, que é o brincar. Este é fundamental para a criança aprender certas funções sociais e padrões de comportamento, e por isso as mudanças psicológicas mais relevantes na personalidade infantil dependem profundamente do mesmo (Leontiev, 1988).

Para Vigotski (1999) o brincar é uma forma da criança dar uma resposta imediata aos seus desejos irrealizáveis, sendo uma das suas características definidoras a situação imaginária (p.122 e 123):

10 […] quando surgem os desejos que não podem ser imediatamente realizados ou esquecidos, e permanece […] uma tendência para a satisfação imediata desses desejos, o comportamento da criança muda. Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo. A imaginação é um processo psicológico novo para a criança […] (p. 122).

Na sua perspetiva o brincar não é uma atividade despida de regras, mas pelo contrário, o

brinquedo envolvendo uma situação imaginária é, de facto, um brinquedo baseado em regras (Vigotski, 1999, p. 124). As regras não estão formalmente definidas à priori, mas estão lá. Por exemplo, numa situação em que duas irmãs brincam às irmãs, elas estão a representar a realidade, contudo no brincar a criança vai tentar ser uma irmã exemplar, como acha que uma irmã deve ser, enquanto na realidade a criança nem pensa que é irmã da sua irmã. Podemos dizer que nesta situação as crianças adquiriram regras de comportamento (Ibidem, p. 124).

O autor explica a influência do brincar, que designa por brinquedo, no desenvolvimento, dizendo que o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal1 da criança. No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade (Vigotski, 1999, p. 134).

No entanto, o desenvolvimento psíquico do indivíduo não acontece por si só. Como já vimos, o ser humano está rodeado por um contexto social e histórico e ao longo da sua vida passa por diversas instituições. A primeira da qual a maioria de nós faz parte é a família, e a primeira relação estabelecida, o vínculo com a mãe. Deste modo, ao contrário do que poderíamos pensar, quando nasce, o bebé não é um ser isolado e sem relações sociais. Na verdade, a relação da criança com a realidade circundante é social desde o

início e, desse ponto de vista, podemos definir a criança como um ser maximamente social (Vigotsky, 1996, citado em Moura et all, 2010, p. 26). As suas relações sociais iniciam-se no vínculo que a liga à mãe ou ao prestador de cuidados primários, pois essa pessoa, mãe ou outro vínculo primário, comporta em si todas as suas relações sociais e toda a história e cultura de que já se apropriou. Isto significa que a criança não está

11 inibida da socialização mas, pelo contrário, esse vínculo primário (mãe) é o mediador desta fase da sua socialização (Moura et all, 2010, pp. 25, 26).

A mediação dos agentes culturais, como é o caso da mãe, é fundamental para o desenvolvimento da criança, pois é através do exemplo, da ajuda e do apoio presentes nesta mediação que ela vai aprendendo a agir de forma humana, mesmo nos gestos mais simples, e vai internalizando os instrumentos culturais. Por instrumentos culturais podemos compreender, por exemplo, a linguagem, a leitura ou a escrita, instrumentos fundamentais para a comunicação, que é indispensável na vida em sociedade.

Percebendo as condições sob as quais acontece a internalização, podemos tentar perceber como é que a criança poderá usar estes instrumentos como instrumentos psicológicos na sua atividade (Yudina, 2009, p. 4, 5). Vigotsky defende a ideia de que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores da criança ocorre da dimensão interpsicológica, ou seja, da interação com os outros, para a dimensão intrapsicológica, ou seja, a mente da criança. É o mesmo que afirma que todas as funções psicointelectuais superiores

aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas: a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas (Vigotskii, 1988, p. 114).

Isto leva-nos à noção de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que a partir das ideias de Vygotsky, se define como a distância entre o nível efetivo de desenvolvimento da criança, avaliado pela dificuldade do problema que esta pode resolver sem a ajuda do adulto, e o seu nível de desenvolvimento potencial, avaliado pela dificuldade do problema que a mesma consegue resolver com a ajuda de um colega mais competente ou de um adulto.

Contudo, segundo Oers (2009), Vigotsky não se reportava à ZDP como uma qualidade específica da criança nem dos educadores, mas mais como uma transição do que a criança é capaz de fazer para o que ainda não é capaz de fazer, através da colaboração e com a ajuda da imitação. Com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos,

a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão de modo independente (Vigotskii, 1988, p. 112). A imitação relaciona-se com a participação nas atividades culturais. Estas são pré-existentes à criança, que vai emulá-las. Nessa emulação necessita de alguma ajuda, necessita da colaboração de um sujeito, já

12 conhecedor das funções e ações que a atividade cultural em questão comporta, e das quais se vai apropriar. Assim, pela emulação de atividades culturais ainda novas para si, mas nas quais a criança quer participar, dando-lhes sentido irá desenvolver novas funções psicológicas. Irá, segundo Oers (2009), mais do que evoluir na sua ZDP, evoluir na sua área de desenvolvimento de neoformações, pela apropriação das novas ações e funções das atividades culturais emuladas.

Como até aqui explanamos, acreditamos que o desenvolvimento não depende unicamente das características internas do indivíduo, mas ocorre a partir das interações com os outros, assumindo o brincar um papel de relevo, já que através da imaginação e da representação de papéis simbólicos a criança explora e compreende o mundo social que a rodeia, o que pode conduzir a uma adequação dos seus comportamentos. As interações podem ser determinantes para a aprendizagem, e a capacidade de estabelecer interações e relações de qualidade com os outros promove o desenvolvimento da criança. Assim sendo, no capítulo que se segue tentaremos compreender porque é que a educação social e emocional, promovendo competências sociais e emocionais, pode favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento.

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