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O brincar relacionado ao meio social e/ou cultural

2. O BRINCAR: UM UNIVERSO DE POSSIBILIDADES

2.2. REVISÃO TEÓRICA: O BRINCAR ENTENDIDO POR DIFERENTES AUTORES

2.2.5 O brincar relacionado ao meio social e/ou cultural

Desde seu nascimento, a criança estabelece diariamente contato com seus pais, avós, tios, primos e diferentes pessoas do seu convívio social. Assim como todo ser humano, a criança se desenvolve na relação com o outro, com as trocas, interações e práticas com diferentes crianças e adultos. O encontro com o outro transforma as concepções de mundo da criança e as relações com o que a cerca. As relações sociais, portanto, também fazem parte da construção da própria identidade infantil.

Vygotsky entendia que as funções mentais superiores são formadas ao longo

da história social do homem, o que não poderia ser diferente com o brincar. O autor não entendia o brincar apenas como uma atividade que atendia às necessidades biológicas da criança, mas que se constituía como atividade de apropriação de signos

sociais. Segundo o autor, a brincadeira promove uma situação imaginativa e possibilita a expressão de desejos e a internalização de regras sociais.

Para Elkonin, auxiliar de Vygotsky e adepto da teoria histórico cultural, o jogo protagonizado é uma ação necessária para internalizar habilidades sociais e regras de convivência social, ou seja, o desenvolvimento moral. Na mesma linha Leontiev também afirma que o brincar é central na apropriação do mundo cultural e social. O brincar é caracterizado por uma atividade pautada no processo real de sua ação e não do produto que a mesma possa realizar, é central na apropriação do mundo cultura e social, bem como propulsor do desenvolvimento psíquico infantil.

Para Bruner, ao brincar a criança representa seu mundo, descobre regras e atende às necessidades sociais. Para o autor, o brincar possibilita a descoberta de regras, o desenvolvimento da linguagem e a resolução de problemas, principalmente nas brincadeiras interativas com adultos e nas brincadeiras de esconder (KISHIMOTO, 2008).

O brincar livre e espontâneo iniciado pela criança deve ser preservado, porém, Bruner entende que a supervisão do adulto possui grande importância ao permitir trocas interativas e, consequentemente, permitir maior orientação e resolução de problemas por parte da criança. Além disso, a brincadeira é analisada como o saber- fazer, que permite a coordenação de ações essenciais para o desenvolvimento, possibilita aquisição de experiências cognitivas e atende às necessidades físicas e sociais (KISHIMOTO, 2008).

Posto que a teoria de Bruner considera que a produção de significados é realizada por sistemas simbólicos presentes na cultura e que a mente é constituída no social, a brincadeira se torna ponte para acessar o acervo cultural.

A obra em que Huizinga aborda sobre o jogo é Homem Ludens, na qual declara o jogo como fenômeno cultural, função tão importante quanto o raciocínio e a fabricação de objetos (homem faber). Para além, considera o jogo com devida importância e coloca o fator lúdico como fundamental para todas as civilizações.

O autor se abstém de teorias psicológicas e biológicas para explicar o jogo, mas o teoriza sob a perspectiva histórica. Partindo do pressuposto de que os animais brincam tal como os homens, Huizinga (2007) declara que o jogo é anterior à cultura, pois essa pressupõe sempre a sociedade humana. Segundo ele, o jogo é mais que um reflexo psicológico ou um fenômeno fisiológico, é uma função significante, ou seja,

encerra determinado sentido e significa algo, é uma função social que constitui uma das principais bases da civilização. Assim, o jogo é fenômeno cultural que acompanha o homem em todos os momentos da História.

Florestan coloca que a brincadeira é uma experiência societária complexa que possibilita o próprio desenvolvimento da personalidade, além da apropriação de valores, reprodução de práticas sociais e criação de valores e normas de conduta específicas.

Por sua vez, Corsaro coloca como cerne de sua teoria a produção de cultura pelas próprias crianças, o que faz da brincadeira um espaço de trocas, socialização e produção da cultura lúdica infantil.

Segundo Corsaro, as crianças são afetadas pela sociedade e cultura nas quais estão inseridas, desse modo elas não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente na produção e na mudança cultural. Elas não apenas reproduzem ou imitam aquilo visto nos adultos, mas fazem uma apreensão criativa das informações para atender seus próprios interesses e produzir suas próprias culturas. Ou seja, a reprodução interpretativa pressupõe as crianças como coprodutoras de suas culturas de pares. Por cultura de pares, Corsaro (2009, p. 32) as caracteriza como um “ conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares.” Essa cultura é produzida por crianças que criam seu próprio mundo coletivo e é dotada de

autonomia, mesmo quando afetada pelo mundo dos adultos (MUELLER, 2007, p.

275).

Corsaro (2009) cita dois elementos universais da cultura de pares das crianças: as rotinas de aproximação-evitação e a dramatização de papeis. A rotina de aproximação-evitação aparece em brincadeiras com regras e possuem quatro fases: identificação, aproximação, evitação e retorno à base segura. Na identificação, as crianças descobrem ou criam uma gente ameaçador, já na aproximação, provocam esse agente de maneira verbal ou aproximam-se com cautela, na evitação, o agente se “empodera” e persegue as outras crianças que fogem com medo em direção da base segura, por fim, o retorno à base segura é o local onde as crianças estão salvas do ameaçador.

A importância da aproximação-evitação na cultura de pares está na constituição da criança como detentora de um papel no enredo, além de possibilitar

às crianças perseguidas a capacidade de iniciar, reciclar, aperfeiçoar e finalizar uma rotina. Nas brincadeiras de aproximação-evitação pode ser ilustrada a reprodução interpretativa, pois as crianças passam a produzir coletivamente uma rotina compartilhada por acumulação de tensão, excitação da ameaça, alegria e alívio da fuga. Dessa forma, representações de perigo e desconhecido podem ser apreendidas e controladas (CORSARO, 2009).

Essa nova abordagem da socialização da criança sob o ponto de vista de Corsaro, coloca e valoriza a criança como produtora de sua cultura e não uma mera reprodutora do mundo em que está inserida. Nesse sentido, o olhar sob a criança passa a ser de participação, da criança como agente criador e participativo da cultura, portanto, sua ação social é vista como interativa e criativa.

Por fim, Brougère coloca a brincadeira como parte da cultura lúdica, que passa a ser espaço de socialização, relação com o outro e apropriação da cultura. Segundo o mesmo, a cultura lúdica é

uma estrutura complexa e hierarquizada, constituída (esta lista está longe de ser exaustiva) de brincadeiras conhecidas e disponíveis, de costumes lúdicos, de brincadeiras individuais, tradicionais ou universais (se isso pode ter sentido) e geracionais (próprias a uma geração específica) (BROGÈRE, 2001, p. 50).

Essa cultura não pode ser entendida isoladamente, pois depende de uma sociedade específica na qual está inserida, que oferece estruturas características e diferenciadas, desse modo, ela não ocorre do mesmo modo em todos os lugares. Como toda cultura, ela é produzida pelos participantes em um duplo movimento: interno e externo. Mesmo com a influência e incorporação de elementos externos da cultura geral, a experiência nunca é transferida para o indivíduo, mas o mesmo é um co-construtor das significações dadas aos objetos. “ [...] A criança vai agir em função da significação que vai dar a esses objetos, adaptando-se à relação dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros. ” (BROUGÈRE, 2008, p. 27).

Uma vez que a brincadeira não é criada na espontaneidade, mas a partir de uma aprendizagem social, admite-se a existência de uma convenção entre todos os brincantes em relação às regras e decisões. Por fim, a brincadeira é “um espaço de

socialização, de domínio da relação com o outro, de apropriação da cultura, de exercício da decisão e da invenção” (BROUGÈRE, 2006, p. 103-104).

Por estar inserido em um contexto social, o brinquedo também revela muito sobre determinada cultura, o que ilustra ser um objeto que remete a elementos do real e do imaginário das crianças. Para Brougère, antes de tudo, o brinquedo é considerado como suporte de uma representação, de uma brincadeira. É durante a brincadeira que a criança confere significado ao brinquedo, por isso, o mesmo é manifesto pelo domínio do valor simbólico sobre a função, uma vez que o simbólico é a própria função. Portanto, o brinquedo possibilita ações coerentes com as representações feitas nas brincadeiras (BROUGÈRE, 2001).

Ao mesmo tempo em que o brinquedo é suporte de ação, traz também imagens e símbolos para manipulação, o que na sua totalidade caracteriza as duas dimensões que o constitui: a dimensão funcional e a simbólica. Assim, o brinquedo possui dois importantes aspectos: seu aspecto material e a representação. O aspecto material diz respeito à expressão em volume, a forma que possui. Já a representação diz respeito ao aspecto do brinquedo ser uma reprodução da realidade, adaptada e modificada. “A criança não se encontra diante de uma representação fiel do mundo real, mas sim de uma imagem cultural que lhe é particularmente destinada.” (BROUGÈRE, 2001, p. 43). Portanto, mesmo não sendo utilizado em uma brincadeira, ele conserva seu caráter de objeto destinado à criança. Esse é o fator que diferencia o brinquedo do jogo, pois esse último é destinado tanto às crianças quanto aos adultos, dotado de regras e que supõe uma função determinante.

Considerado como objeto, possuidor de conteúdo simbólico ou inserido em uma dimensão funcional, o brinquedo é rico em fator de socialização, possibilita um contato com a dimensão cultural da sociedade, permite a transmissão de esquemas sociais e a manipulação de códigos culturais.

Entendido como uma atividade não natural, mas que necessita aprendizagem, o brincar é abordado por Brougère sob uma perspectiva cultural. A atividade brincante é empreendida quando a criança simboliza o real através de suas ações e objetos, o que possibilita a confrontação com a realidade. Uma vez que o mundo é apropriado e transformado em atividade conduzida e significada, o brincar se torna porta de entrada e confrontação com a cultura em que a criança está inserida e se torna espaço de aprendizagem social.