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O cânone dos fanfictions, notas de autoria, as ressignificações

II FICÇÕES E FANFICÇÕES

2.4 Como se constrói uma história

2.4.1 O cânone dos fanfictions, notas de autoria, as ressignificações

No universo dos fanfictions, construir uma história exige mais do que ter uma série, um livro ou um filme favorito. Fazer parte de uma comunidade, de um fandom, é um fator que impulsiona a criação, mas não é o principal. Segundo Henry Jenkins, no livro Textual Poachers (1992), os fandoms permitem que o leitor mantenha contato mais próximo com o que aprecia, uma interação que a virtualidade permite ao fã exercer muito mais forte do que se fosse na vida real. Vale repetir que, conforme Vargas (2005), os fandoms surgiram muito antes da chegada e expansão da Internet, porém a rede permitiu que as comunidades passassem a agregar maior

número de pessoas, facilitando o contato entre todos – tanto entre outros fãs que moram em qualquer parte do mundo, tanto com o próprio produto:

Com o advento da internet, os fandoms passaram a agregar um número cada vez maior de pessoas, rompendo barreiras geográficas e até mesmo linguísticas e a produção de fanfictions também cresceu, particularmente na década de 1990. Isso fez com que a prática fosse quase restrita ao gênero ficção científica, onde teria nascido, para a condição de amplamente exercida por fãs de vários outros gêneros, como séries policiais e de suspense, filmes, histórias em quadrinhos, videogames e livros ficcionais (VARGAS, 2005, p. 24).

Escrever uma história está relacionado à forma mais fácil ou criativa que o

ficwriter busca para si. O fã-autor que mantém o cânone (ou seja, que mantém de

alguma forma as mesmas personagens como o casal principal ou parte da história sem modificá-la drasticamente) zela pelo respeito à história original e também pela reputação das personagens. Ele tenta manter o mesmo ritmo da história original com as mesmas personagens, sem descaracterizá-las e muitas vezes sem introduzir alguém novo para acompanhar as aventuras. Muitas vezes essas histórias propõem uma continuação de um livro acabado, ou uma aventura totalmente inédita, como um capítulo intermediário. É uma forma de fazer reparação nas lacunas deixadas pela história original, enquanto que as grandes empresas e os autores detêm os direitos da mesma. Os fãs-leitores estão livres, teoricamente, para continuar a história sem ganhar, com isso, dinheiro – pois o que é produzido no fandom não é vendido.

Há diversos tipos de ressignificação de histórias, no sentido de apropriação das personagens na hora de criar um fanfiction. Há, por exemplo, uma história focada numa personagem secundária ou mudar o percurso do original, enfatizar o romance quando a história é de aventura ou alterar seu final a partir de uma decisão da personagem, ao que Henry Jenkins em Textual Poachers (1992, p. 160) chama de “e se...?”, como uma história criada a partir de uma pergunta. As justificativas estão presentes nas notas de autoria no começo de cada história, muitas vezes funcionando como prefácio das fanficções.

Os exemplos a seguir são de fanfiction baseados nas obras de Alexandre Dumas (1802-1870) e Jane Austen (1775-1817), ambos conhecidos autores da literatura estrangeira que até hoje atraem muitos leitores de qualquer idade – principalmente jovens. As obras ficam mais conhecidas quando adaptadas ao cinema, mesmo quando o roteiro não é fiel aos acontecimentos da história original.

Os Três Mosqueteiros, publicado em 1844 como livro após ser publicado ainda no

mesmo ano no jornal francês Le Siècle no formato folhetim, teve inúmeras adaptações fílmicas de sucesso, entre as quais se destacam a versão de George Sidney, de 1948, estrelado por Gene Kelly e Lana Turner.

O mesmo pode-se dizer no caso de Jane Austen, cuja popularidade aumentou com as sequências de adaptações das obras pela tevê britânica de todos os seus romances, num formato de minissérie, além dos lançamentos realizados pelas grandes produtoras. Orgulho e Preconceito, publicado pela primeira vez em1813, teve mais uma adaptação divulgada pelos cinemas mundiais em 2005, e esse pequeno detalhe também consta em algumas notas de autoria de fanfictions, como se pode ler a seguir:

a) Nota 1

A primeira nota faz parte da publicação do site Fanfiction.Net de um fanfiction nomeado Citron47, com três capítulos e um prefácio publicados, da autora portuguesa Bosie. A história não é atualizada com novos capítulos há um pouco mais de três anos, mas ainda possui comentários e está disponível para leitura. No prefácio lê-se os motivos que levaram a autora a se decidir escrever a fanficção, marcados em negrito:

Há alguns meses, mexendo em alguns livros antigos de nosso avô, ficamos estarrecidas com um excepcional achado: uma publicação antiguíssima de "Os Três Mosqueteiros", a nossa bíblia literária.

Ficamos surpresas pela raridade que nosso avô possuía em sua pequena biblioteca. Resolvemos abrir o livro para contemplar o

português da mocidade do início do século XX. | Mas, caros leitores, nosso coração parou de bater, nossa respiração falhou por instantes quando algumas páginas caíram de súbito. A primeira coisa que pensamos foi: "destruímos o livro!". Desesperadas, passamos a recolher as páginas atrapalhadamente. Ao lê-las em velocidade

célere, ou em palavras vulgares: batemos o olho, nossas faces alumiaram-se. "Memórias de La Fère" estava em nossas mãos,

velho e esburacado, mas ainda assim estava lá! Como o patriarca da família conseguira tal preciosidade desconhecemos, porém isso não importa. | Deus também nos deu um segundo presente àquele dia.

Ávidas por ler o texto que inspirou o genial Alexandre Dumas,

mais páginas voaram com o nosso movimento. Soltamos um grito estridente e escondemos as bocas. Diante de nós estava nada mais, nada menos que "Memórias do Sr. d' Artagnan"! | Subimos as escadas correndo, escondendo as duas velhas obras sob os braços.

Percebam, caros leitores, que furtamos nosso querido avô, contudo este há de nos perdoar. Trancamo-nos em nosso quarto e começamos a prazerosa tarefa de ler. Líamos rapidamente com o olhar, nossas mãos tremiam de ansiedade, as gargantas ficaram secas, não queríamos perder nenhuma frase, queríamos sentir cada momento, o cheiro de velho impregnado em nossas narinas. |Até então, paramos estupefatas, à nossa frente uma

informação, que poderia ser um simples gracejo, talvez o autor de

ambas as obras seja um ébrio gracioso sensual. Caros leitores,

vocês irão descobrir a seguir qual é a grande revelação nas palavras impressas naqueles papéis sórdidos. Esperamos não cometer os

mesmos equívocos que Alexandre Dumas em sua obra-prima. Agora para nossa felicidade estar completa, temos que conseguir

uma cópia de "O Homem da Máscara de Ferro". (BOSIE, 2005).

O fato narrado aconteceu possivelmente na sua infância, mas a autora destacou, através de email pessoal enviado para esta pesquisa, que o achado se deu quando passava férias com a irmã na casa do avô. As obras originais, como

Memórias de La Fère (S/A) e Memórias do Senhor D‟Artagnan (S/A) foram

inspirações também para Alexandre Dumas na escrita da obra original, inclusive para as continuações – Vinte anos depois (1845) e O Visconde de Bragelonne (1848). Nos três capítulos escritos por Bosie, há uma forte presença de homossexualidade, o que ela justifica por encontrar indícios no relacionamento das personagens na leitura dos escritos originais das duas Memórias, e escrever um

fanfiction viria a corrigir a ausência desse envolvimento entre os dois na obra original

de Dumas.

b) Nota 2

O fanfiction Fitzwilliam Darcy & Elizabeth Bennet: Beijo!48, da autora Druckgeister, foi uma das publicações baseadas nos filmes adaptados ou para o cinema ou para a televisão. Tem apenas um capítulo, mas foi escrito para completar

a sensação de um vazio ou uma lacuna que Druckgeister sentiu ao ver as duas adaptações para ao cinema – o filme de 1995 e a adaptação de dez anos depois, estrelada por Keira Knightley e Matthew Macfadyen, como é apontado na nota de autoria a seguir:

Essa estória é baseada no romance de Jane Austen "P&P" [Pride

and Prejudice], para ser mais explicita, a estória se baseou

principalmente na adaptação de 1995 com os atores Colin Firth e Jennifer Ehle, mas como me apaixonei pelo cenário original na

chuva para o pedido de casamento de Darcy na adaptação de 2005 no filme e em muitas partes Darcy se aproxima de Elizabeth

quase a beijando me fez sonhar muito, principalmente nesse pedido de casamento! Então a minha inspiração veio desses

momentos! (DRUCKTEIGER, 2007).

Com relação às ressigficações em fanfictions, com base no que Jenkins esclarece em Textual Poachers (1992, p. 167-180), destaco três que mais são encontradas nas leituras de fanfictions. O primeiro tipo consiste em preencher as lacunas que os leitores descobrem ao longo da história, algo que eles gostariam que tivesse sido escrito, como uma espécie de cena extra. Muitas são debatidas dentro dos fóruns, o que favorece quem vai escrever, pois todas as cenas são analisadas e até mesmo erros ou falhas são minuciosamente discutidos. É uma das formas mais comuns de fanfiction.

O segundo tipo é chamado de “expansão da linha do tempo”, que consiste em se aproveitar das pistas deixadas pelo texto original, mas que não são aproveitadas, para escrever algo novo. Um exemplo disso é o que aconteceu recentemente com a saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer. A autora escreveu quatro volumes e chegou ao fim da saga, e então começou a escrever, em 2008, a mesma saga sob o título

Midnight Sun, preenchendo as lacunas que ela mesma deixara nos livros anteriores,

desta vez sob o ponto de vista do namorado dela – o vampiro Edward Cullen, inclusive cenas e parágrafos inteiros em que o personagem não aparece. Os primeiros doze capítulos foram “lançados” anonimamente na Internet, sem a permissão da autora, e Meyer decidiu não continuar a saga enquanto os leitores não esquecessem por completo os manuscritos roubados, deixando os doze capítulos

disponíveis depois na sua página oficial49. O fato de a autora original ter a ideia de recontar os fatos sob outro ponto de vista e depois se recusar a continuar a escrita rendeu outras centenas de fanfictions em inglês. Um dos exemplos é o da ficwriter americana Sunray1650, que reescreveu a saga completa sob o ponto de vista de Edward, acompanhando os fatos narrados nos livros originais, rendendo a ela duas histórias completas e uma em andamento no Fanfiction.Net. A primeira delas,

Moonless Night51, é a versão do segundo livro, Lua Nova (New Moon, no original), publicado em 2006. A segunda é Eternal Equinox52, correspondente a Eclipse, lançado em 2007, e o fanfiction ainda em atualização Beyond Dusk53, equivalente a

Amanhecer (Breaking Dawn, no original), lançado nos EUA em 2008.

O terceiro tipo de ressignificação é citado como “deslocamento de personagem” por Vargas (2005), e é a forma mais radical que se conhece de escritura de fanfictions. Trata-se de mudar o ambiente original da personagem, deslocando-a para outras épocas ou países ou enredos. É o chamado universo alternativo.

Os fanfictions de universo alternativo costumam fazer uso das mesmas personagens e alterar o ambiente da história original. Em lugar da Alice, de Alice no

País das Maravilhas (CARROLL, 1980), ser uma menina perdida num lugar

desconhecido e que foge de uma rainha má, ela pode muito bem ser uma jovem de vinte e poucos anos à procura de um namorado, em pleno século XXI. Isto é apenas para se ter uma ideia do que os ficwriters podem escolher para ser o cenário das histórias. Vargas (2005) apresenta as duas classes “a favor” e “contra” os universos alternativos como questões polêmicas, pois há quem defenda o cânone, o universo das histórias originais, e existem, inclusive, websites que não permitem a publicação de uma história que se passa em um universo alternativo. O Fiction Alley54, por exemplo, mantém um glossário que define os principais termos da atividade.

49 Os doze capítulos escritos por Meyer estão disponíveis para download em

<http://www.stepheniemeyer.com/midnightsun.html/>.

50 Disponível em: <http://www.fanfiction.net/u/1903990/Sunray16/>.

51 Disponível em: < http://www.fanfiction.net/s/5005070/1/Moonless_Night/>. 52 Disponível em: < http://www.fanfiction.net/s/5452645/1/Eternal_Equinox/>. 53 Disponível em: < http://www.fanfiction.net/s/6585160/1/Beyond_Dusk/>. 54 Disponível em: <http://www.fictionalley.org/>.

Trata-se da defesa do cânone. Alguns fãs compreendem a obra original como sendo canônica e, portanto, não sujeita a subversões de suas características, como atitudes consideradas impossíveis por parte de alguns personagens ou, ponto muito mais polêmico, a criação de casais considerados improváveis [...] O Fiction Alley, em seu glossário, oferece a seguinte explicação para o termo: “cânone – fatos que nos foram contados nos livros. Algumas pessoas também consideram os filmes parte do cânone, muitas vezes a escolha fica a seu critério. Henry não pode ter olhos verdes e azuis e seu pai não pode ser um artilheiro e apanhador. A contrapartida do cânone é o „fanon‟” (VARGAS, 2005, p. 38-39).

Universos alternativos, universos originais, narrativas em primeira pessoa ou em terceira, histórias sob o ponto de vista da personagem secundária ou dando um final alternativo. Recriações de personagens, mudando o caráter delas. É possível encontrar de tudo, e ainda muito mais. Um dos escritos – muitas vezes também mais lida e mais comentada – é o fanfiction de conteúdo adulto. Apesar de não haver dados oficiais, os fanfictions de categoria M ou NC-17 (equivalente ao rating brasileiro ao +18) são em maior número em alguns fandoms quando entram no filtro de busca em sites como o Fanfiction.Net (que oficialmente não permite a publicação dos mesmos) ou Mediaminer.Org. Possuem conteúdo gráfico de relações sexuais, “seja entre personagens masculinos, seja entre femininos, conta com cenas de sexo mais ou menos violência explícitas, com doses maiores ou menos de violência” (VARGAS, 2005, p. 33), e são escritos por leitores com idade inferior a 18 anos, apesar de não haver dados oficiais a respeito. Autores como J. K. Rowling já declararam ficarem alarmados com a existência desse material, com medo que crianças possam ter fácil acesso ao eles, conforme uma reportagem realizado pelo

Washington Post entre ficwriters e autores famosos a respeito dos fanfictions

adultos55, propondo, como solução, o implícito aviso de conteúdo adulto nos capítulos, no resumos e publicação exclusiva em sites como o Restricted Section.

No que diz respeito aos outros tipos de fanfictions discutidos anteriormente, apresento dois exemplos com base nas resignificações propostas por Jenkins. Um deles é uma história com caráter de fanfiction – apesar de ter sido publicado e o

autor receber seus direitos –, o outro é um autêntico fanfiction disponível para leitura na Internet. Ambos são baseados nas obras de Lewis Carroll e Machado de Assis, respectivamente.

55 Harry Potter and the Copyright Lawyer

Use of Popular Characters Puts ‟Fan Fiction‟ Writers in Gray Area – Disponível em: <http://msl1.mit.edu/furdlog/docs/2003-06-18_washpost_potter.pdf/>.