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4. CAPÍTULO III – UMA AVALIAÇÃO DO CAMINHO NEOCATECUMENAL A

4.1. O Caminho Pluralista do Destino à Escolha da Adesão Religiosa

Dentro do escopo da modernidade, o pluralismo se constitui de uma situação social em que as pessoas com diferentes padrões étnicos, morais e de mundivisão estão em constante conversação. Nesse sentido, tanto mais se prolonga o diálogo entre indivíduos culturalmente diferentes, mais fortes serão as contaminações cognitivas e, consequente, as relativizações de antigas certezas (BERGER, 2017a, p. 20-21). Como assegura o sociólogo Peter Berger (2017), o pluralismo não é, contudo, uma exclusividade das sociedades modernas, mas se apresentou em diferentes momentos e formas ao longo da história, tais como

[...] os países ao longo da Rota da Seda demonstraram um pluralismo religioso exuberante, com cristãos, maniqueus, zoroastrianos, hindus, budistas e intelectuais confucianos interagindo uns com os outros, frequentemente no contexto dos Estados helenistas deixados para trás como um legado das conquistas orientais de Alexandre o Grande (BERGER, 2017a, p. 24).

O termo convivencia, cunhado na Espanha sob o controle dos muçulmanos, chegou a designar a coexistência entre cristãos, muçulmanos e judeus (BERGER, 2017a, p. 25). O contexto espanhol, anterior à Reconquista, é bastante ilustrativo de como se operou a contaminação cognitiva no diálogo entre cristãos e muçulmanos, podendo ser citadas a atitude do Bispo Elipano, que em 783, por ocasião de sua posse na sede metropolitana de Toledo, procurou adotar a doutrina adocionista123 para explicar o mistério de Cristo, soando bem aos

123 O adocionismo, embora não fosse intenção dos seus defensores (Elipando, arcebispo de Toledo e Felix, bispo de Urgel) retomar as teses dogmáticas já condenadas pelos concílios ecumênicos - arianismo, o monofismo e o

ouvidos muçulmanos, acostumados ao monoteísmo estrito do Alcorão, como também pareceu bem aos cristãos que viviam sob o domínio muçulmano (PARMEGIANI, 2014a, p. 28). Em segundo lugar temos a modulação do Rito Latino da Igreja na tradição moçárabe124, cujas idiossincrasias foram para além da utilização do árabe como língua cotidiana e do vestuário, como também se refletiram, em alguns casos, na prática da circuncisão e interdição do consumo de carne suína (VEREZA, 2010, p. 37).

Devemos ter em mente que o pluralismo cresceu no âmbito da modernidade ao passo que as possibilidades de escolha aumentaram, sobretudo após a Revolução Industrial, inserindo dentro do quadro geral das escolhas possíveis não somente as inovações tecnológicas, mas também os objetos de culto e a própria identidade individual, em face do estreitamento das distâncias entre as várias civilizações dentro do processo de evolução dos sistemas de transporte e de comunicação. ―Toda a vida se torna um interminável processo de redefinir quem o indivíduo é no contexto das possibilidades aparentemente infinitas apresentadas pela modernidade‖ (BERGER, 2017a, p. 27). A grande característica da situação pluralista é que os ex-monopólios religiosos já não podem contar com a submissão das populações, que por ser facultativa torna-se insegura em si mesma, situação bem diferente se experimentava no período pré-moderno, onde não havia competição e tampouco havia pressões no sentido de gerar resultados missionários como na atualidade, em que a Igreja é uma dentre tantas possibilidades no vasto território do mercado religioso. A Igreja Católica é levada a avaliar a sua estrutura social, de modo a obter resultados no mercado competitivo da religião (BERGER, 2013, p. 150). Berger fez referência ainda à coincidência entre a emergência da situação pluralista e a retomada da ênfase no laicato nas instituições religiosas (BERGER, 2013, p. 158), mas tomando os leigos apenas enquanto consumidores, subestimando a capacidade desses de produzir sistemas de crença dentro da estrutura institucional católica.

O pluralismo tem a capacidade de gestar reações aparentemente opostas, podendo redundar em fundamentalismo ou relativismo. O fundamentalismo se expressa através do nestorianismo -, trazia uma interpretação em relação à divindade de Cristo que, em larga medida, se opunha ao que ficara decidido em Niceia no ano de 325. Segundo essa doutrina, Jesus era, enquanto homem, filho adotivo de Deus, o que correspondia, em muitos aspectos, à presença muçulmana na Península e ao rígido monoteísmo do Corão que rapidamente chocou-se com os princípios básicos de Encarnação e Trindade cristãs. (PARMEGIANI, 2014b, p. 163).

124 Por ―rito moçarábico‖ se entende uma forma litúrgica usada por cristãos da Península Ibérica até o fim do século XI. Esse rito também é conhecido por outros nomes, mas ―rito de Toledo‖ ou ―moçarábico‖ permanecem as denominações mais aceitas até hoje. Disponível em: <https://apologetica.net.br/2011/12/30/rito-mocarabe/>. Acesso em: 16/03/2019.

esforço por restaurar a certeza ameaçada por fatos que aparentemente contradizem as antigas certezas, podendo se desenvolver no sentido de voltar ―a uma certeza do passado (real ou imaginário) ou em olhar com uma postura de segurança para o futuro‖ (BERGER, 2017a, p. 34). Exemplos da perspectiva reacionária antimoderna são os agrupamentos de católicos integrais, que possuem uma perspectiva extremamente intransigente na luta por manter uma ortodoxia baseada na evolução dos dogmas e fidelidade incondicional ao papa e que se posicionam contra qualquer tipo de mudança paradigmática na Igreja. Contra a liberdade de crítica à autoridade eclesiástica, os católicos integrais se unem aos ultramontanos tradicionalistas em um intento unificado de ―lutar contra os princípios modernos, no âmbito político ou intelectual, e de empreender o retorno à ordem anterior aos acontecimentos que levaram a Igreja à situação de tamanha crise‖ (CALDEIRA, 2009, p. 43-44), ou seja, retornar à sua posição de hegemonia cultural pré-moderna em uma configuração aristotélico-tomista de realidade. Três bons exemplos dessa tendência são a Associação Cultural Monfort, os

Arautos do Evangelho e a Fraternidade São Pio X. Na perspectiva de um fundamentalismo

progressista se encontra o Caminho Neocatecumenal, com um discurso que, ao se fundamentar na tradição bíblica e no magistério da Igreja, desenvolve um engenhoso projeto de resgate da influência cultural, moral e política da instituição católica no mundo moderno através da ―defesa intransigente da moral familiar‖ (CORDOVA; SANTOS, 2015b, p. 31).

Apesar da busca por uma relação com o princípio da Igreja, o Caminho Neocatecumenal está contextualizado no século XX, por isso, ao longo de todo o documento estatutário, busca-se determinar que é uma realidade para as pessoas da contemporaneidade, que desconhecem o evangelho ou se afastaram dele (NEOCATECUMENATO, Art. 5º § 1) (CORDOVA; SANTOS, 2015, p. 10).

Ao contrário do fundamentalismo reacionário anteriormente citado, o Caminho Neocatecumenal opera na contemporaneidade, não condenando a modernidade em bloco, mas nutrindo um profundo desprezo pela sociedade secular, marcada pelo indiferentismo e pela corrupção moral, porém, não tendo a intenção de retornar aos áureos tempos de domínio cultural da Igreja, inclusive criticando a tentação ao clericalismo, mas permitindo-se enquadrar até certo ponto à instituição, com vistas a obter mais vantagens para o estabelecimento de seu ideário. Seguindo a linha de Léon Bloy, ao mesmo tempo em que denuncia a não correspondência entre fé e prática de boa parte dos cristãos nominais de uma sociedade burguesa, procura ser fiel às exigências radicais do Evangelho e ferrenhamente crítico dos tempos modernos. O fundamentalismo se apresenta aqui numa clara oposição à sociedade descristianizada e no sentido da crença de que existe um projeto de perseguição

sistemática à Igreja. Esse sentido é amplamente trabalhado através do canto Una Gran Señal, que apresenta o capítulo 12 do livro de Apocalipse como arquétipo de uma Igreja peregrina e perseguida pelas forças do mal. Essa identificação com os círculos joaninos pode vir a gerar estranhamentos internos nas paróquias, uma oposição entre uma perspectiva hierárquica de Igreja e outra, como no caso do Caminho Neocatecumenal, pneumática. Um exemplo disso se encontra testemunhado pelo sacerdote Marcello Stanzione que afirma:

O catequista neocatecumenal que abriu o caminho em minha paróquia, quando veio me ver pela última vez, disse-me com raiva que não poderia haver diálogo entre eles e eu porque eu - não esquecerei suas palavras textuais - representava a Igreja de Pedro, enquanto eles representavam a Igreja de João (MILIZIADISANMICHELEARCANGELO.ORG, tradução e grifos nossos)125.

Já a reação relativista, por sua vez, se define diante da pluralidade das escolhas como a visão de que ―não há nenhuma verdade cognitiva ou normativa absoluta‖ (BERGER, 2017a, p. 37), se refletindo na ―arte da suspeita‖, que postula geralmente que por traz daquilo que se costuma entender como verdadeiro ou virtuoso existe outra razão subjacente, quais sejam desejos de poder, cobiça, luxúria, originando movimentos culturais e políticos caros à concepção de mundo pós-moderna. É bastante corrente, no entanto, que o relativismo se expresse na forma de uma ―tolerância abrangente‖, não desprezando o fato de que o grande problema teórico de quem postula o relativismo radical é como eles conseguem sustentar o fato de que somente eles conseguem enxergar a realidade tal como ela realmente é enquanto as outras pessoas estariam simplesmente envolvidas nas sombras da ilusão (BERGER, 2017a, p. 37-38). Não é difícil entender que a consequência do pluralismo é a multiplicação das estruturas de plausibilidade, o que leva os indivíduos a duvidarem de seus postulados, sobretudo no que concerne a certezas exclusivistas construídas no seio de tradições religiosas que se colocam como detentoras de verdades dogmáticas absolutas. A situação moderna põe o homem diante de uma infinidade de opções de ação e modos possíveis de pensar o mundo, incluindo-se ―a decisão de seguir essa ‗preferência religiosa‘ particular‖, pluralizando ―tanto instituições quanto estruturas de plausibilidade‖ (BERGER, 2017b, p. 33). Dentro deste enquadramento, as mentes dos indivíduos passam a apresentar diferentes graus de certeza, sendo o grau mais baixo aquilo que os indivíduos tomam por evidentemente certo; o segundo agrega as ―definições cognitivas e normativas da realidade que são amplamente aceitas‖; e um

125 Neocatecumenali, Gnosi e uso del denaro per accrescere il consenso. Disponível em: <http://www.miliziadisanmichelearcangelo.org/content/view/997/135/lang,it/>. Acesso em: 17/03/2019.

último é o grau das preferências e opiniões mantidas até que ―um bom argumento ou uma nova experiência‖ faça o indivíduo mudar de ideia. A grande questão é que no contexto de pluralidade religiosa do mundo moderno, as religiões deixam de se situar no nível de certezas indiscutíveis passando ao nível das opiniões (BERGER, 2017a, p. 69). Levando-se em consideração que

[...] em nenhum lugar numa sociedade moderna, ou até mesmo numa sociedade que está começando a se modernizar, o indivíduo está imune aos efeitos corrosivos da relativização. Assim, o gerenciamento da dúvida se torna um problema para toda tradição religiosa. [...] O fundamentalismo pode ser descrito como um projeto de eliminação total da dúvida. Pode também ser descrito como uma tentativa de restaurar, nas condições modernas, a certeza do dado-como-certo de uma sociedade pré-moderna (BERGER, 2017a, p. 73-74).

Em sentido mais amplo, o pluralismo iniciou ao mesmo tempo o ―ecumenismo‖ entendido como sendo a ―colaboração amigável entre os diferentes grupos envolvidos no mercado religioso‖, como também a redescoberta das heranças confessionais (BERGER, 2013, p. 153). O primeiro movimento está, a nosso ver, bastante relacionado com uma variante do relativismo, enquanto que o segundo é mais aproximado da uma perspectiva do fundamentalismo que de alguma forma trata-se de se diferenciar na linha de uma tradição, frente a outros grupos diferentes em um quadro que tende à padronização (BERGER, 2013, p. 160). Essas diferentes tendências reagem ao pluralismo de modo diferente, podendo se configurar de dois modos distintos:

Elas podem ou acomodar-se à situação, fazer o jugo (sic) pluralista da livre empresa religiosa e resolver da melhor forma possível o problema da plausibilidade modificando seu produto de acordo com a demanda do consumidor; ou recusar-se a se acomodar, entrincheirando-se atrás de quaisquer estruturas sociorreligiosas que possam manter ou construir e continuar a professar as velhas objetividades tanto quanto possível, como se nada tivesse acontecido (BERGER, 2013, p. 163-164).

Nos polos extremos desse movimento temos ainda as diferentes formas de ler o Concílio Vaticano II. Uma corrente que requer mudanças rápidas ―que aponta para a superação dos modelos de compreensão da História‖ e outra que ―afirma a longa duração, a mudança lenta e a conservação dos padrões do passado‖ (PASSOS, 2014, p. 25). A nosso ver, o Caminho Neocatecumenal se enquadraria na via média entre essas correntes de interpretação, uma vez que se apresenta como conservadora do ponto de vista dos costumes, mas progressista em relação à atualização da liturgia, apostando em uma prática que mescla o método indutivo e dedutivo de experienciação do Sagrado. Acreditamos que isso seja resultado de um processo de negociação institucional segundo a lógica apontada por João

Décio Passos, de acordo com o qual ―os resultados conciliares foram perdendo seu frescor e cedendo lugar para os processos de institucionalização de seus resultados, onde tem lugar e função previamente preparados a força de conservação que garante os ordenamentos, os papéis e as funções‖ (PASSOS, 2014, p. 29). A chamada ―rotinização dos carismas‖ é um resultado do processo em que

As instituições burocráticas selecionam e formam os tipos de pessoal de que elas necessitam para operar. Isso significa que tipos semelhantes de liderança emergem nas diversas instituições religiosas, independente dos padrões tradicionais nessa questão. As exigências da burocracia anulam as diferenciações tradicionais das lideranças religiosas entre ―profeta‖ e ―sacerdote‖, ―estudioso‖ e ―santo‖ e assim por diante (BERGER, 2013, p. 152, grifos do autor).

Ao sistema burocrático da administração central da Igreja, à qual Berger (2013) atribui certa resistência à modernidade, é demandado um enquadramento e controle das diversas tendências que surgem em seu bojo, no entanto, tal como assevera Hervieu-Léger, embora a Igreja disponha de meios para controlar as redes comunitárias, ―a realização desse controle institucional é uma fonte de conflitos internos geralmente intensos‖ (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 177-178), como nos casos das práticas litúrgicas do Caminho Neocatecumenal, que ao longo dos anos fomentam acirradas discussões. Um exemplo de como ocorrem estas disputas internas dentro do organismo administrativo da Igreja Católica foi o pedido feito pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos de adequação do Caminho Neocatecumenal ao ordinário da missa, tal como consta nos livros litúrgicos oficiais, refletindo as queixas de Bispos por uma maior integração das comunidades neocatecumenais à realidade total das paróquias126. Outro caso bastante ilustrativo dessas divergências internas encontra-se na entrevista concedida pelo Bispo Athanasius Schneider, que considera o Caminho Neocatecumenal como um movimento radicalmente heterodoxo.

O Caminho Neocatecumenal é uma comunidade protestante judaica dentro da Igreja, com apenas uma decoração católica. O aspecto mais perigoso é com respeito à Eucaristia, porque a Eucaristia é o coração da Igreja. Quando o coração está em mau estado, todo o corpo está em mau estado. Para os neocatecúmenos, a Eucaristia é antes de tudo um banquete fraterno. Isso é

126

Santa Sé pede ao Caminho Neocatecumenal que faça adequações. Disponível em: <https://noticias.cancaonova.com/mundo/santa-se-pede-ao-caminho-neocatecumenal-que-siga-as-adequacoes- da/>. Acesso em: 17/03/2019.

protestante, uma atitude tipicamente luterana (ADELANTELAFE.COM, tradução nossa)127.

Embora se posicione em nome de uma pretensa ortodoxia ou como dizem alguns, em favor da liturgia bimilenar, não se pode perder de vista que somente a situação pluralista permite esse tipo de confrontação, posto que para os tradicionalistas na modernidade a tradição não é transmitida pelo tecido social, mas assumida enquanto escolha voluntária. De modo contrário ao período pré-moderno em que no máximo haveria certa crítica aos indivíduos desajustados, mas, o próprio enraizamento na tradição os permitiria certa margem de tolerância. Peter Berger afirma que os fundamentalistas128 costumam ser agressivos na mesma medida em que são vulneráveis, uma vez que na situação pluralista ―a tradição não é simplesmente dada, eles a escolheram – e não podem esquecer isto‖ (BERGER, 2017a, p. 35).