• Nenhum resultado encontrado

5. CAMPESINATO: DO PESSIMISMO TEÓRICO À REPRODUÇÃO SOCIAL

5.5 O campesinato como reivindicação agroecológica

Em detrimento às hipóteses que preconizavam o seu desaparecimento, o campesinato apresenta uma continuidade utilizando mecanismos de adaptação às pressões desenvolvidas pela expansão do capitalismo. Um desses mecanismos adaptativos está associado à sua estreita relação com a natureza, manejando-a pelo trabalho da própria unidade doméstica, a qual se caracteriza ao mesmo tempo como uma unidade de produção e consumo como preconizado por Chayanov (1974). Essa capacidade camponesa de trabalhar com a natureza lhe insere em um processo de respostas às crises associadas ao sistema agroalimentar capitalista.

De acordo com Toledo (1993), os camponeses apresentam sistemas agrícolas de produção que possuem uma racionalidade ecológica, justamente por apropriarem-se dos recursos naturais de forma correta, destacando-se como a base de um novo paradigma científico. Sem dúvida, as condições de reprodução social do campesinato durante a história estão associadas à sua interação com a natureza, sob um processo de coevolução (NORGAARD, 1994), configurando uma capacidade de manutenção dos recursos naturais ao longo do tempo que sinaliza uma racionalidade ecológica camponesa (TOLEDO, 1993).

Segundo Guzmán e Molina (2013), essa capacidade de manter as bases bióticas dos recursos naturais torna o campesinato uma categoria histórica, com condição de trabalho e conhecimento. Essa dimensão ecológica que há no trabalho e conhecimento do campesinato foi identificada pela agroecologia como como importante para a construção de sistemas agroalimentares sustentáveis, em contraposição ao sistema agroalimentar industrial. A Agroecologia surge com a revalorização de manejos agrícolas de sociedades tradicionais indígenas e camponesas da América Latina (ALTIERI, 1989; GLIESSMAN, 1990; GLIESSMAN, 2000).

A Agroecologia, diferente das ciências convencionais, reconhece as racionalidades ecológicas existentes nas formas camponesas de produzir, pois as mesmas demonstram a

capacidade dos camponeses em ajustar e desenvolver meios de vida nos ecossistemas em que vivem, expressando suas estratégias de produção econômica e reprodução social (PETERSEN; DAL SOGLIO; CAPORAL, 2009). O não reconhecimento e desperdício desses saberes tradicionais contribuem com o processo de insustentabilidade (LEFF, 2006), pois agrava os impactos socioambientais pela erronia concepção de artificializar a natureza em prol dos interesses dos Impérios Alimentares.

O campesinato se configura, portanto, como um grupo social capaz de realizar a Agroecologia, na medida em que apresenta os princípios sociais e produtivos que estruturam a ciência agroecológica. Ao mesmo tempo, o campesinato é reconfigurado pela Agroecologia por meio do incentivo de inovações sustentáveis nos territórios e a luta pela afirmação dos mesmos, sob uma perspectiva horizontalizada de saberes e atores (LA VIA CAMPESINA, 2010; ROSSET e MARTÍNEZ-TORRES, 2013). A Agroecologia insere-se em processos de cooperação social e de produção de alimentos por meio do desenvolvimento de agroecossistemas que possuam autonomia à indústria de agroquímicos, condição que requer o acesso à terra, sementes crioulas, água, crédito e mercados locais pelos camponeses (ALTIERI e TOLEDO, 2011).

Além dos aspectos técnicos, a Agroecologia valoriza a subjetividade presente nas relações camponesas, promovendo processos de recampesinização ao fortalecer a

campesinidade dos agricultores por meio da ressignificação da natureza e das suas bondades

(BOTELHO, CARDOSO e OTSUKI, 2016), estimulando uma relação dialógica entre o social e natural. A coevolução com a natureza é reconstruída, correspondendo a uma racionalidade que horizontaliza a importância de todos os seres (INGOLD, 2012), em que o ser humano e a natureza cooperam entre si em um processo de coprodução (PLOEG, 2009).

A ressignificação da natureza, promovida pela Agroecologia em relação aos agricultores dependentes de insumos químicos (agricultores familiares que estavam perdendo a natureza camponesa), desencadeia no mundo múltiplos processos de transição agroecológica, conduzindo transformações técnicas, sociais, culturais e políticas (GLIESSMAN et al., 2007; ALTIERI, 2004; BOTELHO, CARDOSO e OTSUKI, 2016). Essa transformação em aspectos práticos de produção de alimento consiste na conversão de sistemas agrícolas convencionais em sistemas agrícolas sustentáveis (ALTIERI e NICHOLLS, 2002a; ALTIERI e TOLEDO, 2011; CAPORAL e COSTABEBER, 2004), aspecto da transição agroecológica que promove a soberania alimentar e a sustentabilidade dos agroecossistemas.

Com isto, a Agroecologia passa a ser a bandeira de ações coletivas de diversos segmentos do campesinato, integrado às reivindicações de movimentos como a Via Campesina

(LA VIA CAMPESINA, 2010, GUZMÁN e ALIER 2006) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil (FRADE e SAUER, 2017), consolidando-se como um instrumento de luta do direito à terra e do fortalecimento da soberania alimentar, demandas sociais que desencadeiam processos de recampesinização (PLOEG, 2008). Diferente do agronegócio, que detém grandes extensões de terras sob seu monopólio e está minando as capacidades produtivas das terras para as futuras gerações, os camponeses possuem a capacidade de aliar a sua reprodução social com a manutenção dos recursos naturais, possuindo o que Brandão (1999) denominou como “o afeto da terra”. Nesse sentido, a Via Campesina (2010, p. 7) ressalta o seguinte:

El campesinado y los y las agricultores familiares, por otra parte, tienen raíces en la zona que tanto ellos como sus ancestros han cultivado durante generaciones, y donde sus hijos y nietos seguirán ejerciendo la agricultura en el futuro. Es su razón para cuidar la capacidad productiva del suelo y el entorno. Y es precisamente en estas comunidades donde encontramos las prácticas tradicionales sostenibles y el rápido desarrollo de la agroecologia (VIA CAMPESINA, 2010, p.7).

Estas tendências sociais do campesinato que contestam a desigualdade social e os impactos negativos ao meio ambiente, provocados pelo agronegócio, buscam (re)construir um consenso na sociedade em defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas e campesinos, buscando a implementação de políticas públicas para a construção e fortalecimento da soberania alimentar nos territórios, criando espaços de valorização aos mercados locais baseados na Agroecologia (ROSSET e MARTÍNEZ-TORRES, 2013; MARTÍNEZ-TORRES e ROSSET, 2010). É nessa perspectiva que Wanderley (2004) considera que há na atualidade o surgimento de uma nova identidade social de agricultores familiares que se definem como camponeses, defensores de uma concepção de agricultura comprometida com a natureza, que buscam produzir alimentos com qualidade por meio da construção de um pacto entre os agricultores e as populações urbanas (produtores e consumidores).

Assim, a Agroecologia passa a dar visibilidade aos meios de vida de famílias camponesas, fortalecendo sua autonomia produtiva e alimentar como resistência aos Impérios

Alimentares, possibilitando sua reprodução social e a renovação da natureza camponesa por

meio de processos de recampesinização. O lugar do campesinato na atualidade está no desenvolvimento de princípios agroecológicos mantidos e renovados entre gerações, apresentando experiências sociais e produtivas como alternativa ao hegemônico modelo capitalista.