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O carácter sagrado da ponte

No documento Lugares de memória : a Ponte da Misarela (páginas 62-65)

A ponte apresenta o simbolismo da passagem, de um modo quase universal.

“No mabinogi de Branwen, filha de Llyr, os exércitos galeses invadem a Irlanda para vingar a triste sorte de Branwen provocada pelo seu marido Matholwch, rei da Irlanda, são detidos por Shannon, rio mágico no qual não existe qualquer ponte e que nenhum barco consegue atravessar. O rei Bran deita-se, então, a toda a largura do rio, de uma margem à outra, e os exércitos passam sobre o seu corpo. O texto galês vê neste episódio mítico a origem do aforisma Quem é chefe seja ponte.”185

Também entre os romanos encontramos o mesmo sentido. A palavra pontífice deriva de pontem facere. Assim, “o título de Pontifex, que outrora foi reservado ao imperador romano e agora continua a ser o do Papa, significa construtor de pontes. O pontífice é ao mesmo tempo o construtor e a própria ponte, como mediador entre o céu e a terra”186.

A tradição da construção de pontes apresenta-se, então, antiga e honrosa. A este nível, os romanos deixaram-nos pontes que são consideradas obras de grande valor. Destas destacamos, na Península Ibérica, a ponte de Alcántara, sobre o rio Tejo. Esta ponte tem a particularidade de ter, junto ao rio, um pequeno templo romano dedicado ao seu construtor, chamado Lácer e cristianizado na Idade Média com o nome de São Julião.

Também em Amarante, a Igreja de S. Gonçalo se situa junto à ponte, construída ou reconstruída, em meados do século XIII, por S. Gonçalo. E ainda que esta ponte se tenha desmoronado a 10 de Fevereiro de 1763, a nova ponte, de 1790, com projecto de Carlos Amarante, continua a chamar-se Ponte de S. Gonçalo.

Vejamos, ainda o milagre de Frei Lourenço Mendes:

“entrou no desígnio de fazer a ponte de Cavez no rio Tamega, com as esmolas que pedia: fundando-a no lugar que divide o Minho de Trás-os-Montes, e andando os officiaes no trabalho cahio um no rio e morreu, lastimados os companheiros acudiu Fr. Lourenço aos gritos e chegado ao rio tocou com o seu bordão e o mandou levantar, o que ele fez, restituído a seus sentidos”187.

De acordo com a lenda local, Frei Lourenço Mendes sentiu tamanha alegria quando concluiu a ponte, que morreu fulminado. Foi, então, sepultado junto a uma das

185CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos, 2ª ed. Lisboa: Teorema, 2010, p. 534. 186

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cabeceiras da ponte e, sobre o seu túmulo foi gravada a inscrição: Esta é a ponte de Cavez

e aqui jaz quem a fez.

Fernando da Silva Correia, no seu estudo Origens e Formação das Misericórdias

Portuguesas, refere o seguinte:

“o interesse pela construção de pontes levou na Idade Média à formação de verdadeiras comunidades religiosas, como a dos ‘hospitaleiros pontífices’ ou ‘pontistas’, que tomava a seu cargo essa missão, formadas por irmãos, verdadeiros e competentes arquitectos, engenheiros e operários, vivendo em comunidade e fazendo voto de pobreza, celibato e isolamento, dedicando-se não só à construção de pontes como à de diques e caminhos, e à instituição de barcas para a passagem de rios, garantindo a conservação das obras por meio de pequenas importâncias que os que passavam pagavam de portagem”188.

A título de exemplo, referimos S. Benezet que, em 1165, fundou a devota confraria dos Pontífices, à qual se deve a ponte de Avinhão, construída em 1188.

“Organizaram-se então verdadeiras campanhas a favor da construção de pontes. As indulgências para quem custeasse essa construção eram grandes. Mas a maior parte delas foi feita à custa de milhares de esmolas que ocorriam de toda a parte, em virtude das indulgências também concedidas a quem desse o seu óbolo, por pequeno que fosse.”189

Contribuir para a construção de uma ponte seria, assim, similar a contribuir para a construção de um templo: rendia indulgências, a remissão dos pecados concedida pela Igreja. O que traduz o carácter sagrado da ponte.

Contudo, também aqui há uma ambivalência do sagrado. Uma vez que “Quem atravessava um rio, ou lhe punha uma ponte, profanava o seu domínio”190. Esta ambivalência do sagrado é comum, Eliade diz-nos que “sacer pode significar ao mesmo tempo maldito e santo”191, da mesma forma, «hagios pode exprimir ao mesmo tempo a noção de puro e de poluído”192.

A própria Igreja que dava um cariz sagrado ao acto de construir uma ponte, procedia, ainda assim, à bênção das pontes novas. Leite Vasconcelos vê nesta bênção de uma ponte nova, pela Igreja, “vestígios de propiciação de antigas divindades fluviais a cuja

188

CORREIA, Fernando da Silva – Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas, 1ª ed. Lisboa: Henrique Torres Editor, 1944, p. 145.

189

IBIDEM.

190VASCONCELOS, José Leite de – Opúsculos, 1ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1938, Vol. V. p. 522. 191

ELIADE, Mircea, Tratado de História das Religiões, 1ª ed. Lisboa: Edições Asa, 1992, p. 42.

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protecção as pontes ficavam entregues”193. Assim, na simbólica da ponte, “dois elementos se destacam, portanto: o simbolismo da passagem, e o carácter frequentemente perigoso dessa passagem, como é o de toda a viagem iniciática”194.

Para Jung, a própria mudança é, muitas vezes, simbolizada pelo acto de atravessar um curso de água195. Contudo, esta mudança nunca é inconsequente, ou livre de perigos. Do mesmo modo, atravessar uma ponte não estava isento de perigo, sobretudo à noite. Mas, é precisamente a meio da noite que o povo vê, no acto de atravessar uma ponte, um meio de cura e de regeneração.

Albano Bellino referindo-se às superstições do povo minhoto, refere a crença popular de que “esconjuram-se graves doenças procurando à meia noite nas pontes construídas pelos mouros”196. Tradição igualmente referida por Leite Vasconcelos e Pedroso.

“Uma légua ao norte de Guimarães há uma ponte por baixo da qual passa o rio Ave, denominada – Ponte de S. João. Quando alguém daqueles sítios está doente e descrê dos socorros da medicina, vai ao meio da ponte, à meia-noite em ponto, acompanhado por um padre, com meio alqueire ou um alqueire de milho alvo ou painço; o padre lê-lhe os exorcismos e o doente atira o milho da ponte abaixo, seguindo de três punhados de sal, e o diabo a quem o padre impõe a obrigação de largar a criatura, lá fica entretido a contar os grãos de milho, até à consumação dos séculos.”197

Vasconcelos refere ainda que no rio Homem, “Por baixo da ponte (…) existe um

púlpito construído pelo Diabo. Assegura-se que duas pessoas, que andem desavindas, se

reconciliam passando por lá.”198.

Apesar do seu carácter sagrado, a cultura popular estabelece uma relação entre as pontes e o Diabo, como veremos no capítulo seguinte.

193

VASCONCELOS, José Leite de – Opúsculos, 1ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1938, Vol. V. p. 523.

194

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain – Dicionário dos Símbolos, 2ª ed. Lisboa: Teorema, 2010, pp. 533,534.

195

JUNG, Carl Gustav – The Man and his Symbols, 1ª ed. New York: Doubleday & Company Inc., 1964, p. 198.

196

BELLINO, Albano – Archeologia Christã, 1ª ed. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal 1900, p. 178.

197

PEDROSO, Consiglieri – Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e outros Escritos Etnogáficos. 1ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, p. 246.

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No documento Lugares de memória : a Ponte da Misarela (páginas 62-65)