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O caráter educativo dos movimentos sociais populares e autogestionários

4. AS APRENDIZAGENS ADQUIRIDAS

4.2. O caráter educativo dos movimentos sociais populares e autogestionários

“Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender"(Paulo Freire, Pedagogia da autonomia, 2000, p. 25).

Diante da perspectiva de que os movimentos sociais populares e autogestionários

têm caráter educativo, é necessário lembrar, “que antes do operário existe um homem que não deve ser impedido de percorrer o mais amplo horizonte do espírito, subjugado às máquinas (Gramsci, 1978, p19)”.Isto implica na integração entre os intelectuais e as camadas populares ao processo educativo, fazendo da escola e também dos demais locais em que se faz educação um espaço de integração e não de separação ou discriminação. Desta maneira, remetendo novamente ao pensador italiano, estaríamos tornando-os orgânicos da classe trabalhadora e estabelecendo uma unidade entre escola, trabalho e vida.

Portanto, os movimentos sociais populares, especialmente os que aconteceram no Brasil do final da década de 1970 e nos anos 1980, ao estabelecer relações com os movimentos dos educadores gaúchos, bem como com os demais setores da sociedade, que se mostraram preocupados com a educação para a transformação, estariam realizando um movimento em busca da construção do conhecimento a partir da criação e construção coletiva. Isto indicaria um caráter educativo e transformador, embora, tivesse que enfrentar várias dificuldades e limitações.

Para tanto, convém considerar que a classe trabalhadora nesta década viveu sob a perspectiva de ter uma constituinte livre e soberana, das diretas já e foi movida pela esperança de melhorar suas condições de vida, de realizar movimentos autônomos e que os sujeitos envolvidos, seriam capazes de “durante as lutas constituírem-se como classe (Thompson, 1979, p.232.)”.

Os movimentos sociais populares dos anos 80, segundo Gohn (1992) representam formas renovadas de educação popular(Gohn,1992, p.43),pois eles não ocorrem através de um programa previamente organizado, mas através de princípios que fundamentaram programas de educação popular formulados por agentes institucionais determinados, tais como grupos de assessorias articulados às igrejas, à partidos políticos, à universidades, à instituições governamentais nacionais e internacionais, à sindicatos, etc.. E, ainda de acordo com Gohn, a metodologia de operacionalização dos programas foi formulada por

agentes assessores dos movimentos sendo que esta metodologia desenvolveu-se a partir do trabalho das lideranças da parcela da população organizada.

Nesta perspectiva inserem-se o MEB (Movimento de Educação de Base) e os programas do Sistema Paulo Freire (Gohn Op cit, p.44), pois, eles representaram um elo de ligação entre a produção sobre a educação popular e a prática efetiva de vários movimentos sociais. Os princípios que embasavam os programas tidos como progressistas na área da educação popular, particularmente o Sistema Paulo Freire, pressupunham que “as populações mais marginalizadas e mais pobres se apropriariam de um novo saber-instrumento: um saber que pode ser usado diretamente na realização dos objetivos sociais destas camadas (Brandão, 1980, p.29)”.

João Cabral de Melo Neto, conseguiu captar este ideário em poesia. Em seu poema A Educação pela Pedra compreendeu a lógica formativa do homem simples:

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

O tema da cultura do homem simples, que na época se denominava de “cultura popular” era central nesta elaboração. Existiria uma concretude na vida e no cotidiano do homem simples que era, por si, educativa, porque formava o homem forte, autônomo, marcado pela sua identidade cultural. Essa era a educação do Brasil reivindicativo. Neste cotidiano, por sua vez, não se encontravam momentos épicos, não se veneravam heróis, porque falavam diariamente, repetidamente sobre pessoas reais, com problemas reais. E, assim, iam ensinando a lição do dia-a-dia, ensinando o povo a ser forte. Ensinando a resistir, a protestar e a lutar.

Paulo Freire compreendia, do ponto de vista educacional, esta perspectiva do homem simples. Com relação ao educador assinalava que:

E, o educador ou educadora como um intelectual tem que intervir, tem que ter posicionamento. Não pode ser um mero facilitador. (...) O que o educador deve fazer quando ensina é possibilitar os alunos a se tornarem eles mesmos. E ao fazer isso, ele ou ela vive a experiência de relacionar democraticamente como autoridade com a liberdade dos alunos.84

Esta passagem da fala de Paulo Freire expressa o papel político do educador que se posiciona numa relação entre cidadãos (no caso, educador e educando). Percebe-se a

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Esta fala faz parte do diálogo entre Freire e Myles.O encontro foi registrado em livro, publicado em 2003. Ver FREIRE, Paulo & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social Petrópolis: Vozes, 2003.

tensão permanente que esta relação provoca, mesmo na fala de Freire. O educador entende a cultura da comunidade e a respeita, mesmo que não aceitando seus valores e práticas, porque se posiciona como igual e não como possuidor de cultura superior. Mas, como cidadão e como educador posiciona-se. E posiciona-se, pois é um cidadão político. Nesta perspectiva ajuda as pessoas que querem e precisavam ler e escrever, justamente a fim de que possam ter mais possibilidade de serem elas mesmas e conquistarem a sua autonomia.

Assim como Paulo Freire tinha objetivos, também as camadas populares os tinham e, entre estes, se pode destacar: a busca do resgate da cidadania, a obtenção de condições dignas de sobrevivência, o direito à saúde, à educação e ao lazer, etc...E neste sentido é que foi conduzida a proposta da educação popular, que previa o desenvolvimento de uma ação pedagógica conscientizadora, que deveria atuar sobre o nível cultural das camadas populares, em termos explícitos dos interesses delas.

Nos anos 80 era assim. Militantes de movimentos sociais expressavam-se a partir de um ideário construído ao longo da segunda metade dos anos 70 que articulava conceitos marxistas e cristãos. Daí surgia um poderoso discurso, que se fundava na valorização da dignidade do homem pobre, da postura antiinstitucional, da luta social pela libertação política e econômica e pela organização autônoma dos pobres em pequenas estruturas de base, locais85.

Ainda, em relação aos princípios da educação popular e sua atuação, Brandão na obra anteriormente citada, na página, 29, traz a afirmação de J. Barreiro e afirma que o ponto de partida para esta questão deveria ser uma análise dos “determinantes do Estado atual da cultura do povo”. O que, segundo o autor, teria sido atingido.

Maria da Glória Gohn (1992, p.49-50), auxilia no entendimento da conexão entre os programas de educação popular e os movimentos sociais organizados, ao trazer alguns elementos como o do trabalho das assessorias. Na seqüência de sua análise, a autora assinala que não existe movimento social puro, isolado, formado apenas de participantes populares, de base, visto que há a presença de elementos externos ao grupo

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Esses conceitos foram objeto de análise de inúmeros estudos e pesquisas sociais desenvolvidos nos anos 80. O mais citado estudo sobre as matrizes discursivas e o ideário dos movimentos sociais do período é o de Eder Sader. Há, ainda, estudos sobre o ideário operário da época, tendo como conceitos articuladores a noção de autonomia e dignidade. Num texto publicado em 1999, Rudá Ricci analisou a trajetória histórica dos movimentos sociais rurais nas décadas de 80 e 90. Ver SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram em Cena. São Paulo: Brasiliense, 1988; ABRAMO, Laís. Greve Metalúrgica em São Bernardo: sobre a dignidade do trabalho. IX Encontro Anual da ANPOCS, 1985, mimeo.; MARONI, Amnéris. A Estratégia da Recusa. São Paulo: Brasiliense, 1982; RICCI, Rudá. Terra de Ninguém: representação sindical rural no Brasil. Campinas: UNICAMP, 1999.

demandatário (externos no sentido de pertencerem a outra categoria social), mas existe uma base de coesão ideológica comum que cria laços de afinidades e objetivos únicos.

Lúcia, sujeito desta pesquisa, confirma esta observação quando em sua fala relata um momento em que o sindicato dos professores através do núcleo de Três Passos/RS, integrou-se com o recém formado acampamento de trabalhadores rurais sem-terra do MST, naquela localidade, na década de 1980. Lúcia afirma que:

Os professores que participavam do núcleo do CPERGS de Três Passos e, especialmente seus dirigentes, grupo do qual eu também fazia parte, tiveram um importante papel na organização dos trabalhadores deste movimento, à medida que participávamos das discussões, das reuniões junto à liderança do movimento e também com os demais participantes, num processo de construção coletiva, de organização e de politização.

Os grupos organizados de assessorias, principalmente os vinculados à ala progressista da Igreja Católica, militaram junto aos movimentos e às populações periféricas no sentido de organizá-las para pressionar os poderes públicos.

Leda, assinala que a sua formação política se deu a partir do momento em que começou a participar das discussões promovidas pelo grupo de jovens ligados à Igreja e que:

Eu faço questão de registrar que muito do que aprendi foi participando junto com os jovens que pertenciam ao grupo da igreja. Nós nos reuníamos para jogar, para conversar, mas também para falar sobre questões muito importantes relativas à sociedade e a política. Só para você ver, ao mesmo tempo em que falávamos sobre até onde estava indo a renovação da Igreja Católica, discutíamos sobre a pressão que os militares exerciam apesar de “estarmos a um passo da democracia”.

A colega continua e afirma que:

Também a escola contribuiu com minha formação, quando estudava no ginásio ao me tornar líder de turma e participar de grupos de teatro, de grêmio literário e de gincanas, fui perdendo o medo e a timidez e me encorajando a discutir outras questões.

Gohn (1989) no artigo em que analisa os paradigmas teórico-metodológicos sobre os movimentos sociais urbanos, afirma: “entendemos os movimentos sociais como processos educativos para seus participantes, quer se trate das bases, lideranças ou assessorias dos movimentos (Gohn, 1989, p.62)”.

Nos movimentos sociais a “educação é autoconstruída no processo e o educativo surge de diferentes formas (Gohn, 1992)”. Num programa de educação isto seria fácil de identificar, mas, em se tratando de movimentos sociais, de acordo com a autora, algumas fontes precisam ser consideradas, como, por exemplo, as formas:

Da aprendizagem gerada com a experiência de contato com fontes de exercício do poder. Da aprendizagem gerada pelo exercício repetido de ações rotineiras que a burocracia estatal impõe: da aprendizagem das diferenças existentes na realidade social a partir da percepção das distinções nos tratamentos que os diferentes grupos sociais recebem de suas demandas.Da aprendizagem gerada pelo contato com as assessorias contratadas ou que apóiam os movimentos: da aprendizagem da desmistificação da autoridade como sinônimo de competência, a qual seria sinônimo de conhecimento...(Gohn,1992,p.50).

Estas fontes e formas de saber no caso dos movimentos, constituem um importante instrumento das classes populares, no sentido de atingirem seus objetivos. Este saber gera mobilizações e inquietações que põem em risco o poder constituído. O saber politizado, popular, condensado em práticas políticas participativas torna-se uma ameaça as classes dominantes à medida que reivindica espaços nos aparelhos estatais através de conselhos, com caráter deliberativo. Isto porque o saber popular estaria invadindo o campo de construção da teia de dominação das redes de relações sociais e da vida social.

Se for pensar desta forma, poderia afirmar, que com relação a constituírem-se como espaço educativo, tanto a escola quanto os movimentos sociais, apresentam possibilidades educativas, mesmo que na prática ainda se coloquem algumas restrições e que segundo Oliveira (2001) “ainda é visível na nossa sociedade, uma tentativa de privilegiar-se a escola como espaço de educação em detrimento das possibilidades educativas dos movimentos sociais”.

Portanto, embora a escola e os movimentos sociais eduquem de forma específica ambos têm em comum o sentido político da educação. Cabe, portanto, ressaltar o caráter educativo manifesto nestas experiências, assim como constatar os espaços das práticas sociais como lugares adequados ao desenvolvimento de uma educação crítica e emancipatória. Isto é, os Movimentos Sociais Populares e ou Autogestionários podem ser vistos como espaços de educação e construção coletiva.

Diante desta afirmação, o professor Adílpio faz uma importante observação:

Quando se fala em participação, construção coletiva e caráter educativo, lembro de trazer algumas idéias que podem contribuir com este aprendizado. Elas me marcaram quando nós professores fizemos um grande movimento em 1985, não só no nosso Estado, mas também em outros estados brasileiros e, nós aqui em Esteio, que é onde eu trabalhava na época, tínhamos alunos cujos pais também pressionavam a empresa em que trabalhavam e eram ameaçados de demissão. Estes pais não cediam e perguntavam porque alguns professores mesmo tendo estabilidade não aderiam ao movimento.

O professor continua falando e revela claramente um certo desapontamento com alguns companheiros de trabalho, embora diga que:

Os pais não entendiam o que acontecia e nós mesmos que estávamos praticamente à frente do movimento não conseguíamos entender porque não mobilizávamos toda a nossa categoria. Hoje eu entendo e percebo que isto era um processo e que com o passar do tempo adquiriu força.Embora fosse um processo lento e gradual. Assim como a aprendizagem nas aulas.86

Todavia, como bem lembra o próprio Marx, “os indivíduos só formam uma classe na medida em que têm que travar uma luta comum contra uma outra classe (Marx e Engels,1982, p.58). Isto porque a manifestação de interesses comuns e a realização dos que vivem sob as mesmas condições de exploração criam a possibilidade de uma consciência de classe. Quando as classes conscientes geram um movimento social e uma organização de classe, desenvolvem uma ideologia própria de classe.

Ainda, “na comunidade real, os indivíduos conseguem, na, e pela sua associação, simultaneamente a sua liberdade (Marx e Engels,Op.Cit,p.58)”.Com isto, os autores expressam a necessidade da união entre os indivíduos, o que colocaria as condições do livre desenvolvimento e movimento dos indivíduos sob o seu controle.