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O caráter multifacetado do auto mediévico

3. DA TRADIÇÃO RELIGIOSA

3.2 O caráter multifacetado do auto mediévico

A sobrevivência dos costumes medievais na Colônia brasileira é reconhecível

segundo Massaud Moisés, pois: “os padrões medievais prevalecem nas gentes que

habitavam a terra brasílica, mas também se rendem à nova cultura e à nova civilização que aí se constituía”. 150 Ao defender esse ponto de vista, Moisés recorre a dois renomados especialistas nos estudos medievais quando o teórico aponta para permanências lusitanas em terras brasileiras:

permaneceriam nas terras recém-descobertas ao longo dos séculos, a par e passo, na verdade, com a sua persistência na Metrópole. Se a Renascença, no dizer de Marc Bloch, consistia na Idade Média com roupa de domingo, não surpreende que a cosmovisão medieval resistisse ao desaparecimento, sobretudo em terras, como o Brasil, colonizadas por indivíduos formados num ambiente onde a cultura, não raro, se manteve à margem do progresso gerado pelo avanço científico em outros países europeus. Com a colonização, veio-nos a Idade Média, em vez da Renascença foram os padrões medievais que nos moldaram como povo e cultura. A Idade Média foi, nas palavras convincentes de um ilustre historiador, ao concluir substancioso

estudo acerca das “Raízes Medievais do Brasil”, “nossa infância e

adolescência, fases de fragilidade, inconstância e hesitações, mas

também de crescimento, aprendizagem, experiências, consolidação”. E acrescenta: “Mesmo não tendo tido Idade Média no sentido

cronológico concebido pela historiografia, o Brasil é indiretamente

produto dela”; “O Brasil não conheceu a Idade Média, mas descende

dela, tem-na dentro de si. É seu neto ainda que não saiba” (Hilário

150

MOISÉS, Massaud. “Vestígios da Idade Média na ficção romântica brasileira”. In: Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM . LEÃO, Ângela Vaz , BITTENCOURT, Vanda de Oliveira (Orgs). Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 71.

Júnior, p. 19). E não se tratava da Idade Média na sua ampla diversidade, senão uma certa Idade Média, cavaleiresca, fantástica, ou antes, que encontrava na Companhia de Jesus, cuja ação sobre o pensamento se estendeu até o século XVIII, a sua fisionomia mais acabada. 151

A Igreja, intérprete da verdade e senhora do saber e da cultura, era a detentora da educação do homem medieval. Além de suas atribuições ideológicas, era monopolizadora da produção escrita, que, no mesmo atributo religioso, relacionava o literário à doutrina cristã. A palavra auto em sua etimologia, deriva do termo latino actu(m) e significa realização, execução, ação, ato. De acordo com Massaud Moisés, equivaleria a um ato integrante de espetáculo maior e completo, vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez destes fosse gestado. Para o autor serve para designar toda peça breve de tema religioso ou profano em voga durante a Idade Média:

Desenvolvido por Juan del Encina no século XV, o auto chegou a Portugal em 1502, quando Gil Vicente representou o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação. Ao longo do século XVI, a voga do auto alcançou o ponto máximo: o próprio Camões, apesar do estofo clássico de sua cosmovisão, lhe rendeu homenagens em duas peças,

Auto de Filodemo e El-Rei Seleuco. No século XVII, tirante o Auto do Fidalgo Aprendiz (1665), de D. Francisco Manuel de Melo, o auto foi aos poucos desaparecendo em Portugal. Na Espanha, porém, adquiriu feição de autos sacramentales, assim rotulados por glosarem, alegoricamente, os dogmas do Catolicismo. Seu mais talentoso cultor foi Calderón de La Barca. Entre nós, o auto vicentino já era conhecido no século XVI, graças ao Padre José de Anchieta, que o empregava nos trabalhos de catequese do nativo e educação do colono. Com o tempo, mesclando-se de ingredientes culturais indígenas e africanos, acabou por tornar-se manifestação popular e folclórica, em que o enredo propriamente teatral, além de reduzido ao

elementar, vinha acompanhado de danças e cantos. “As mais antigas

menções informam que os autos eram cantados à porta das igrejas, em louvor de Nossa Senhora do Rosário (quando dirigidos por escravos ou libertos), no orago ou na matriz. Depois levaram o enredo, com as danças e cantos, nas residências de amigos ou na

praça pública, num tablado” (Luís da Câmara Cascudo, Dicionário de Folclore Brasileiro, 1954, p. 71). 152

Diante do histórico exposto acerca do auto, é aceitável que durante o período medieval este gênero estivesse associado a qualquer tipo de representação, tanto às de

151

Ibidem, p. 59-60.

152

MOISÉS, Massaud, Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 49. Cumpre esclarecer que a citação acima é de Massaud Moisés e finda com a referência por parte do autor a Luís da Câmara Cascudo, por isso a referência ao Dicionário de Folclore Brasileiro.

caráter religioso quanto às de caráter profano. Esse tipo francês de encenação dividia-se em mistérios e milagres. O primeiro era assim intitulado por ser um auto baseado em passagens bíblicas que não requeriam explicações e cuja finalidade era reforçar a fé dos crentes em Deus e Jesus; e o segundo por apresentar intercessões atribuídas aos santos.153

Devido às flagrantes diferenças culturais e lingüísticas existentes, havidas entre os nativos do Brasil e os colonizadores portugueses à época dos descobrimentos, o tema litúrgico, realizado em forma de autos, tornava-se um veículo de iniciação aos preceitos católicos. O cunho didático do teatro também já era praticado na Europa por ser “a maneira mais objetiva para doutrinar o povo, uma vez que a arraia-miúda da Idade

Média era composta de completos analfabetos”. 154

Fazemos nossas as palavras de Lígia Vassalo para conceituar esse teatro dramático didático: “ele é uma extensão do teatro religioso medieval, uma vez que mantém a supremacia da temática religiosa própria do medievo e reforça o teocentrismo

de base tridentina”. 155

Ocorre que em Portugal a denominação auto aparece associada às celebrações religiosas do Natal e do Corpus Christi, porém, verificamos ser a denominação auto, aplicável a gêneros variados, ou seja, a qualquer encenação não importando os temas abordados. Além do tratamento sagrado, na linha dos mistérios e moralidades medievais, o termo, de acordo com Lígia Vassallo, é também cabível para a representação satírica de situações, para a paródia de comportamentos, para a representação da intriga moralizante, para a temática da vida dos santos e para a encenação de cenas do ciclo da Paixão, como se pode ler na transcrição a seguir:

153“O Jeu d‟Adam et d‟ Eve, de autoria desconhecida, é considerado mistério por ser um auto baseado

em cenas bíblicas, e o Jeu de San Nicola, de Jean Bodel Arras, escrito no final do século XII, é um milagre, por apresentar episódios da vida de São Nicolau. Reparemos que os dois primeiros textos dramáticos têm em seus títulos o nome Jeu, que, segundo Banet, „debemos entender (...) como “representación”, sentido que conserva o verbo jouer cando o referimos a unha actividade teatral ou cinematográfica ou outros tipos de representación artística‟(BANET, 1990, p. 10). O termo Jeu, nesse sentido, teria como palavra correspondente na língua portuguesa o termo auto, que, embora tenha surgido em títulos de dramas religiosos, durante a Idade Média, esteve presente em várias outras representações de conteúdos e enfoques variados. Um dos motivos desse uso recorrente talvez deva-se à polivalência dos artistas, que produziam indistintamente poemas épicos ou líricos, vida de santos, contos satíricos, jogos dramáticos, obras morais, etc, conforme a exigência do cliente (igreja, nobre etc), a ocasião (aniversário, festa religiosa etc) ou inspiração.” PIMENTEL, Danúbia Tupinambá. “Morte e Vida Severina: uma herança do teatro medieval”. Anais do VI Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. VISALLI, Angelita Marques, OLIVEIRA, Terezinha (Orgs). Londrina: ABREM / UEL / UEM, 2007. p, 390).

154

Ibidem, p. 391.

155

VASSALLO, Lígia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 108.

No espaço português, face à indelimitação e à confluência de gêneros, o A. [auto]. recobre, desde cedo, um conjunto de manifestações teatrais e parateatrais de ampla diversificação temática e formal. Em Gil Vicente, nomeadamente, a designação de A. [auto] indiscriminadamente a qualquer tipo de composição dramática, independentemente do seu tema, da sua extensão e da sua estrutura.

156

Tanto em Suassuna quanto em Gil Vicente percebemos essa infinidade de aplicações para o auto. Em Suassuna o auto é revisitado depois de longo processo residual, proveniente de hibridações culturais várias e representa a mentalidade medieval cristalizada em substratos mentais remanescentes na cultura nordestina. Nessa região esse gênero é atualizado nas encenações do Bumba-meu-boi, nos fandangos, nos espetáculos de mamulengos e nos pastoris, ao mesmo tempo essas representações são o embasamento cultural de que se apropriou o paraibano. O auto, ibérico por excelência e proveniente do século XII, tem um autor paradigmático, Juan Del Encina, do século XV. O auto chega a Portugal com Gil Vicente, a partir da encenação do Monólogo do Vaqueiro em 1502. Na Espanha adquire a feição de auto sacramental, embora com fortes tintas medievais, tendo como cultor Calderón de la Barca, na medida em que são alegorizados os dogmas da Igreja Católica. Na Pedra do Reino é possível entrever a feição desse tipo de auto, pois, em alguns momentos, o sertão cantado por Quaderna guarda traços do grande teatro do mundo, marcados, por exemplo, na passagem:

É por isso, então, que pude começar dizendo que neste ano de 1938

estamos ainda “no tempo do Rei”, e anunciar que a nobre vila sertaneja onde nasci é o palco da terrível “desaventura” que tenho a

contar (...) Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos, ao mesmo tempo, grotescos e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo de Baralho. Talvez por isso, o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam fidalgos Reis-de- Ouro com castanhas Damas-de-Espada, onde passam Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas regras desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. 157

156

BIBLOS – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, T. 1. Lisboa: Verbo, 1995.

157

Ao referir-se ao sertão como palco de uma terrível sina e declarar ser a vida parecida um sonho governado por regras desconhecidas, o narrador aproxima-se do auto de La Barca. Do mesmo modo, o autor espanhol tematizava a vida como representação ou sonho e, por meio da alegoria, dramatizava temas eucarísticos, sendo assim, ao mesmo tempo, justapostos o sagrado e o profano. 158 O uso alegórico do auto sacramental diz respeito ao mundo tido como teatro por causa do jogo ficção/realidade, conforme aparente no romance de Suassuna. Na narrativa, sonho, loucura, lucidez não se distinguem. Quaderna como Quixote e La Barca criaram realidades fugidias do real. Se Calderón cria um Deus alegórico para reger o mundo, os homens e o espetáculo da vida, do qual estes são atores, Quaderna, igualmente, transmuda seu sertão em palco das dores do homem, cujo ambiente é regido pela “Onça do Divino”, representação da Divindade no romance, além disso, também na Pedra do Reino, os homens são meras marionetes. Vejamos como o auto é revisitado em Suassuna, quando esse retoma aspectos do grande teatro do mundo:

É por isso, então, que, no momento de iniciar minha história, preso aqui nesta Cadeia, humilhado, perseguido, desprezado, olho para trás, e tudo o que me aconteceu parece um Sonho, uma visagem que desfilou diante de mim, num momento perigoso e alucinatório, tendo o desfile começado com a cavalgada do Rapaz-do-Cavalo-Branco, naquele dia, pela estrada (...) Todo este meu Castelo e os acontecimentos que nele sucedem para sempre, me aparecem com o elemento festivo e sangrento dos sonhos, como a encenação de um espetáculo dos que dávamos em nosso Circo, com a dança do chão, a do sol e a do subterrâneo, ao som dos cantos dementes e obscenos entoados por minha Musa macha-e-fêmea, a Gaviã do Carcará que invoquei e invoco a cada instante; Musa da vida e da morte, com a face saturnal, sombria e desértica, com a face lunar do sonho e do sangue, e com a face ensolarada e gargalheira do real. 159

158

Das características do auto sacramental assemelhadas à narrativa em análise, podemos destacar a fusão sagrado-profano, o uso alegórico e o resíduo mediévico ainda latente, conforme vemos no excerto: “A dualidade de traços religiosos e profanos vai caracterizar, então, a comemoração de Corpus Christi e, talvez, seja causa co-atuante do esplendor dessa festa no período barroco, com cuja dualidade ela se identificaria. Mas essa mescla profano-religiosa vai receber críticas ao longo de sua história e vai determinar, no século XVIII, a proibição da representação dos autos sacramentais pelo Decreto Real de 11 de junho de 1765. Sabendo-se que a procissão em que se exibia o Santíssimo Sacramento continha, também, cenas bíblicas e alegorias, podemos compreender a criação do auto sacramental como a atualização de elementos dramáticos existentes naquela procissão de Corpus Christi, elementos dramáticos que, por sua vez, haviam saído da tradição teatral da Idade Média.” MARTINI, Maria de Lourdes. “O teatro barroco: o grande teatro do mundo”. In: Calderón de La Barca, Pedro. O grande teatro do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. XIII.

159

Quaderna admite que seu narrar é um sonho e sua vida está contada em palco de circo ao som de sua Musa, divindade híbrida, regente de todos os fatos da narrativa. Ao mesmo tempo, essa Musa da qual fala Quaderna é detentora do poder sobre a vida e a morte, é, ao mesmo tempo, saturnal e lunar. Elementos esses decorrentes da síntese de elementos opostos. O auto sacramental é a reflexão do homem sobre seus próprios papéis encenados ao longo da peça. Quaderna, do mesmo modo, também é imposto ou forçosamente convidado a prestar contas de seus atos ao Corregedor, seu julgamento é a metáfora do juízo final como ocorre no auto sacramental. Se em Calderón, os personagens da comédia da vida são julgados após a morte, em a Pedra do Reino, Quaderna é julgado em vida. Ele é o personagem POBRE160 do auto espanhol, aquele que nada recebeu do MUNDO, mas serve como catalisador das ações dos demais personagens do romance. Ao longo do auto de Calderón, o espectador/leitor vai sendo encaminhado para o juízo final e, posteriormente, convidado pelo AUTOR a adorar o pão, diante do qual, céu, mundo e inferno se prostraram. Na narrativa de Suassuna o pão é o do espírito, a eucaristia é literária, já que depois de depor Quaderna é eleito escritor máximo da humanidade, pelo menos em seu teatro-sonho... Portanto, o auto sacramental é exemplo de manifestação cultural que associa o sagrado e o profano, e, residualmente, tem ecos na ficção suassuniana.

Se para alguns a Idade Média corresponde a dez séculos especificamente do V ao XV, para outros, na linha dos medievalistas que acompanham Jacques Le Goff, o medievo é período de longa duração estendido até a Revolução Francesa, e para nós residualistas, os efeitos do período ainda são remanescentes. Assim, é necessário entender que cada fase cultural corresponde a um tipo de produção sintonizada com a sociedade a que está vinculada. Sobre o matizamento cultural típico da Idade Média Lígia Vassalo expõe suas considerações:

Na Alta Idade Média, durante a fase das invasões, encontramos os mitos germânicos, que precedem as canções de gesta, já referentes à glorificação de um herói nacional. Na Plena Idade Média floresce o romance de cavalaria. O reaparecimento das cidades e do comércio, bem como o surgimento da burguesia e das universidades, embrião de uma cultura leiga, trazem uma literatura popular, a qual, com a ascensão da classe, na Baixa Idade Média, resultará em manifestações burguesas propriamente ditas. Dadas as condições sociais e históricas da Europa Ocidental, muito semelhantes durante a Idade Média, e o

160

eixo unificador representado pelo clero, a literatura deste período é universal, quanto à produção e à divulgação. 161

Dentre a multiplicidade cultural e literária que a Idade Média comporta, com destaque para o século XII, período em que se dá o surgimento das universidades e a urbanização medieval, a necessidade da escrita se faz mais gritante, tanto para o controle de atividades mercantis, quanto para o conhecimento das obras clássicas dos padres da Igreja. Nesse período, os leigos despertaram interesse, na medida em que era urgente divertir, mas, e, sobretudo, educar nos moldes cristãos essa classe que ganhava relevância. O furor intelectual incentivou o crescimento da cultura laica e, com isso, a cultura letrada deixou de ser um privilégio clerical. A cultura não-clerical ou laica foi chamada por Jacques Le Goff de folclórica e a expansão crescente desse segmento da cultura foi denominada pelo medievalista de reação folclórica.162 Para este autor, a cultura medieval era dividida em dois estratos: o clerical e o folclórico, sendo o primeiro aquele realizado nos meios eclesiásticos, e o outro, toda a produção cultural ocorrida fora dos meios clericais. Em relação aos estudos de Le Goff sobre o que este

chama de “reação folclórica”, Paulo Roberto Soares de Deus comenta a relevância de tal

reação laica na cultura do período:

Assim, o século XII teria sido marcado por uma reação da cultura laica, ainda, de certo modo, marcada por elementos pagãos. Contudo, esses elementos persistiam de uma forma quase apenas literária, pois o processo de cristianização do Ocidente, iniciado ainda na Antigüidade, já havia alterado seus significados e funções originais. A reação folclórica teria se constituído em uma relativa paganização, ou inserção de elementos não-estritamente-cristãos das crenças populares, nos fenômenos culturais cristãos mais ortodoxos. Quase um processo inverso à cristianização de lendas pagãs por parte dos clérigos ocorrida nos séculos anteriores, num esforço de facilitar a conversão. A reação não tinha, todavia, um caráter de planejamento, constituindo-se no surgimento natural de um novo padrão de construção cultural. 163

161VASSALO, Lígia. “A narrativa Medieval” In:

A narrativa ontem e hoje / organização de Lígia Vassalo – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 48.

162 Cf

: LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. Neste estudo específico Le Goff acredita haver na cultura medieval uma fronteira delimitada no que se refere à produção artística dos clérigos e não-clérigos.

163

SOARES DE DEUS, Paulo Roberto. “Viagens e espacialização da felicidade: a busca do Paraíso terrestre no final da Idade Média”. In: Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. LEÃO, Ângela Vaz, BITTENCOURT (Orgs.). Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 298.

Com o fortalecimento da cultura laica, a espiritualidade também foi alterada e a ânsia por um espaço cada vez mais mundano sugeriu modificações no imaginário do período. Esta tese entra em consonância com o que pensa o antropólogo João Hélio Mendonça164 quando afirma caminharem juntos no Brasil o folclore e a religião. Para este autor o catolicismo de muitas práticas ou expressões religiosas identifica o nosso calendário folclórico com a própria religião. Como exemplos de tais práticas destacam- se as festas cíclicas, as homenagens aos santos padroeiros nas principais praças da cidade, os folguedos, as rezas das novenas, a piedade familiar, as romarias, entre outras.

O parêntese dado em nossas considerações sobre o gênero auto, se fez necessário a fim de mencionar a manifestação profana nas representações religiosas. A presença da literatura cômica e profana desenvolveu-se em vários períodos da Idade Média. Essa recorrência é defendida por muitos estudiosos do período, dentre os quais Mikhail Bakhtin, que a examina através dos conceitos de paródia, reduplicação e carnavalização:

A literatura cômica medieval desenvolveu-se durante todo um milênio e mais ainda, se considerarmos que seus começos remontam à Antigüidade cristã. Durante esse longo período, essa literatura sofreu, evidentemente, mudanças muito substanciais (menos sensíveis, contudo, na literatura em língua latina). Surgiram gêneros diversos e variações estilísticas. Apesar de todas as distinções de época e de gênero, essa literatura permanece – em maior ou menor medida – a expressão da concepção de mundo popular e carnavalesca, e emprega, portanto, a linguagem das suas formas e símbolos. A literatura latina paródica ou semi-paródica estava extremamente difundida. Possuímos uma quantidade considerável de manuscritos nos quais toda a ideologia oficial da igreja, todos os seus