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O Carnaval: expressão do mundo às avessas

A expressão “mundo às avessas” está muito associada a temáticas relacionadas com o Carnaval, festas de Inverno e outras e as inversões então verificadas. Essa temática tem também particular relevo nos estudos literários. No “mundo às avessas”, o homem vê, imagina e quereria a natureza que o rodeia a funcionar ao invés e a sociedade sem os poderes e regras que o constrangem. O mundo às avessas tem duas dimensões ou vertentes: uma, a que poderíamos chamar “nostálgica”, e na qual se salientam o desejo do retorno ao Paraíso e impossíveis tornados possíveis; outra que se poderia caracterizar como “subversiva”, utopia passageira em que regras não contam, poderes deixam de se impor, hierarquias são derrubadas ou viradas do avesso – quem estava em baixo, agora está por cima. A dimensão do impossível é o natural às avessas; a dimensão “subversiva” é o normal às avessas.

Como mais à frente veremos, nas “Saturnais” romanas o culto do deus Saturno exprime em festa a “memória dos tempos da abundância”, em que a agricultura não significava a dureza do trabalho, mas a exuberância dos frutos produzidos pelo lavrar do boi que o fazia sozinho. Mas nas “Saturnais” também se festejava a “memória” do tempo do “todos iguais”, em que não havia os de cima e os de baixo, não havia os “poderes”.

Na Festa dos Loucos, na Idade Média, até um rapazito era bispo e no Carnaval “aqui e agora somos todos iguais”, e “ninguém leva a mal”. Esta Festa dos Loucos tem como herança, nas festas de Inverno – e noutras – o protagonismo dos jovens, que Paula Godinho bem descreve e analisa no Nordeste de Portugal e que Natalie Davis, entre outros, também tratou ao integrar as “abbayes de jeunesse”, no século XVI, quer no meio rural de França quer nas cidades, particularmente de Lyon e Rouen.

Em 1977, a Universidade de Tours organizou um colóquio internacional sobre o tema “L’image du monde renversé et ses représentations littéraires et para-littéraires dans les domaines anglais, espagnol et français, de la fin du XVIeme siècle au milieu du XVII”, e do qual foram publicados os textos reunidos e apresentados por Lafond e Augustin Redondo (Lafont, J.; Redondo, A., 1979).

Já em 1963, mas com edição em 1981 e com um texto de apresentação por Piero Camporesi, que também fez as actualizações bibliográficas, Giuseppe Cocchiara publicou Il Mondo alla Rovescia, com um âmbito temporal maior e uma estruturação temática, diríamos, mais consistente. Por isso, parte da exposição que se segue, apoia-se mais em Cocchiara.

Na introdução, Cocchiara, depois de referir que na segunda metade do século XIX em Itália tivera grande difusão uma folha, impressa, dividida em doze quadros, e que tinha por título “O mundo às avessas” (“Il mondo allla rovescia”) e acrescentava que desde o século XVI florescera essa tradição de folhas populares (“stampe populari”), ou folhas volantes. A fonte de toda essa profusão de imagens (muitas vezes com versos a dizer a lição moral) – e Cocchiara apoia-se aqui em Francesco Novati – é a Idade Média. Mas, prossegue Cocchiara, o mesmo se poderá dizer na literatura, e para isso refere-se a vários autores, a começar por Giovani Giannini em La poesia alla rovescia, de1906, que salienta os jograis cuja poesia caracterizara assim (Cocciara, 1981:16) “Creio que a poesia às avessas ou da mentira vem da Idade Média e liga-se à dos jograis, os quais gostam de desarrazoar deliberadamente”. A origem medieval, desde o século XII, quer de imagens do mundo às avessas quer da respectiva literatura, é referida também por vários autores alemães citados por Cocchiara, devendo destacar-se Ernest Robert Curtius que, em 1948, publicou a sua obra sobre a literatura europeia e a Idade Média latina. Segundo Cocchiara, Curtius salientou que já desde o século XII encontramos topoi do mundo às avessas, não tanto como disparates propositados, mas sim como formas retóricas que se baseiam sobre o “princípio formal das associações das coisas impossíveis”. E ele (Curtius) é, aliás, de opinião que estes topoi se baseiam nos adynata do mundo clássico, amplamente conhecidos na Idade Média. Nos adynata vemos representados peixes que sobem montanhas, animais que se estreitam em amizades não naturais, plantas que produzem frutos que mudam, e assim por diante. Mas, continua Cocchiara, outros recuam muito mais que a Idade Média ou a antiguidade clássica greco- romana, para situarem as origens do tema do mundo às avessas quer no campo figurativo do Egipto antigo quer nos Sumérios. E no fim da sua obra, Cocchiara, relevando que não se deve generalizar o aspecto religioso, ou o psicológico ou ainda o social ao tratar do mundo às avessas, diz que, na investigação deste tema se reflecte o seguinte: que no nascimento e formação de todas as civilizações está a concepção da ordem. E que se, por um lado, é o produto de um facto social e também religioso, do outro é o espelho das aspirações, das inquietações e das perturbações da humanidade. A ânsia do homem é, no fundo, aspirar a um mundo melhor segundo os desejos. E esta ânsia acompanha as imagens e as categorias conceptuais relativas a um mundo invertido, em suma, um “mundo às avessas” (Cocchiara, 1981:18 e 23).

Para mostrar como é cheia de significados a forma como Cocchiara estruturou o seu Il mondo alla rovescia, aproveitamos a categorização que dessa investigação faz Piero Camporesi na apresentação do livro (Cocchiara, 198:1-9). Começa ele por dizer que, no livro,

a investigação nos territórios do possível/impossível articula-se sistemática em três direcções. A primeira parte move-se no arquipélago das crenças religiosas e das mitologias primitivas (…). A segunda configura-se, sobretudo, como um longo processo de reconhecimento entre os sinais literários da Europa medieval e moderna, e nesta perspectiva, assume particular relevo a inesgotável enumeração do impossível, da influência retórica do topos do mundo invertido, o catálogo das frequências do adynaton, o artifício formal através do qual a inversão das categorias relativas à série do normal, do natural, do lógico conduz à dimensão do anormal, do não natural, do ilógico (…). A terceira parte move-se na labiríntica galeria das imagens, quer de origem culta quer popular (…) (Cocchiara, 1981:2).

Primeiramente, Cocchiara trata da possibilidade do impossível. Começa pela nostalgia do Paraíso e apresenta inúmeros exemplos, tais como o burro tocando a lira, o lobo em paz com o cordeiro. Na segunda parte, aborda o mundo às avessas entre as imagens e as categorias conceptuais da literatura douta e popular, percorrendo a Idade Média latina até Giulio Cesare Croce. Por fim, na terceira parte, o enfoque incide sobretudo na forma e na cultura figurativa, dando inúmeros exemplos, como a caça ao caçador, o carro à frente dos bois, o homem de cabeça para baixo.

No que Cocchiara chama a “nostalgia do Paraíso” não é só da abundância que se tem saudades, por assim dizer, é da harmonia entre o homem e os animais, entre estes também e, mais tarde, em civilizações já pós primitivas, essa “memória-desejo” lembra e aspira à harmonia social, sem senhores e escravos, sem ricos e pobres.

Se o burro toca a lira, numa orquestra em que outros músicos também são animais, se o lobo vive em paz com os cordeiros, e se até um hipopótamo voa ou os gatos convivem com os ratos, como se vê numa harpa dos Sumérios de 3000 a.C. ou em papiros egípcios do século XII a.C., se os animais falam e raciocinam, como, por exemplo, nas fábulas de Esopo, poder- se-ia dizer que “não há representação do mundo às avessas onde os animais não sejam protagonistas” (Cocchiara, 1981:47) como – mais antigamente – em processo religioso, quer como divertimento e ensinamento. Com efeito,

os desenhadores de papiros, se por um lado laicizam o culto dos animais, por outro servem-se deles para ditar um ensinamento sempre válido para os homens. Até os animais podem tocar… Até a águia sobe as escadas… Até os lobos se fazem guardas das ovelhas… Parecem passagens da literatura sapiencial de que foram mestres os Egípcios. (Cocchiara, 1981:47).

Desta dimensão do “natural” às avessas faz parte, como atrás foi dito, a abundância. Basta talvez notar que até Platão “inventa a bela fábula do continente perdido, a Atlântida, que era rico e fértil e abundante em frutos e minerais e que se estendia para lá das Colunas de Hércules”. Com esta narração geográfica, Platão – e aqui juntam-se o “natural” e o “normal” às avessas – “quer projectar aquele mundo de felicidade e de perfeição, que a idade de ouro tinha posto nas origens da humanidade ou transferido para o mundo do Além, num tempo de conquista, no qual o homem precisamente vive na felicidade e na justiça. A cidade ideal da sua “República” onde há comunidade de mulheres, de filhos e de bens é o ideal da cidade em que justiça e felicidade se realizarão só se se inverterem os modos, as relações e os institutos que regem a vida usual.” (Cocchiara, 1981:67). Ou seja, “o mundo como utopia”, título que Cocchiara dá ao último ponto do capítulo 4, por sua vez intitulado “Os lobos em paz com os cordeiros” (Cocchiara, 1981:58 e 66).

Da Grécia antiga passando à Antiguidade romana, esta perspectiva de utopia, da qual o mundo às avessas se reverte, está presente em Virgílio que, segundo Cocchiara, na IV Écloga faz falar a Sibila Cumana com a mesma linguagem apocalíptica de origem hebraica difundida na Grécia. No ambiente de desilusão com a situação de Roma, havia também expectativas com aspecto profético, que se podiam ler nos Libri Sibillini. Não chegaram até nós os que se liam em Roma, mas nos que tinham os hebreus de Alexandria, havia passagens como a seguinte: “E a terra será comum a todos e não haverá mais muros nem fronteiras, nem pobres nem ricos, nem grandes nem pequenos, nem reis nem senhores, mas todos serão iguais”. Tudo isto encontrou uma reformulação no Cristianismo nascente (Cocchiara, 1981:96).

Mas também quer o tema da abundância quer o da igualdade se verificavam no regresso da idade de ouro do deus Saturno, que era festejado nas “Saturnalia”, a que voltaremos a referi- nos à frente a propósito das festas de Inverno na Idade Média.

O uso dos impossíveis para exprimir o mundo às avessas suscitando o riso ou para satiricamente criticar com humor poderes e arrogância está bem presente na Idade Média. Herança dos adynata da Antiguidade clássica, está presente não só em poemas, como em histórias fantasiosas em que os animais falam, como até nos “Carmina burana”, de que Cocchiara mostra um exemplo (Cocchiara, 1981:110). O uso de comportamentos “humanos” de animais serve para criticar hierarquias e regras do mundo laico e eclesiástico. Com os Carmina, tais como os Carmina burana, e outros poemas nos séculos XII e XII, os clérigos,

especialmente os clérigos ambulantes, não só se divertiam como mostravam o seu desacordo e revolta. A ausência de respeito para com eles da parte da Igreja e das classes dominantes e uma sociedade que não cuidava deles fizeram que “se tornassem irrequietos e vagabundos, embora doutos e cheios de doutrina”, como diz Cocchiara, que acrescenta: “…havia neles a juventude que reclamava os direitos de ser o que não se é, de ter o que não se tem. E por isso foram contra todos: contra a Igreja e a corte, contra os nobres e contra os “vilões.””.Uma das suas cantigas diz: “Não estou preso a vínculos. E a minha aspiração é morrer como taberneiro” (Cocchiara, 1981:113). O que faz lembrar – mas aqui com puro sentido de brincadeira e excesso – uma cantiga que ainda hoje se canta em ambientes animados, populares, onde o vinho impera:

Eu hei-de morrer numa adega Um tonel será meu caixão

Ai!... Já fui rapaz da ramboia!... Rambóia!… Rambóia!... Ai!... morro de copo na mão.

Apenas quatro versos, mas cantados muito lentamente e bisando-os dois a dois, demora algum tempo o canto. Mas estes quatro versos apenas deverão corresponder a um fragmento de cantiga mais extensa.

Voltando à Idade Média, Jacques Le Goff (citado por Cocchiara) diz que esses jovens trouxeram o património do “bestiário” satírico para a poesia:

O bestiário satírico dos goliardos, concebido sob o espírito do grotesco romano, desenvolve um friso de eclesiásticos transformados: faz surgir no frontispício da sociedade todo um mundo de monstros clericais. O Papa leão devora tudo; o bispo-vitelo, pastor comilão, tosquia a erva à frente do seu próprio rebanho; o seu arcediago é um lince que surpreende a presa; o seu decano é um cão de caça que, ajudado pelos seus oficiais caçadores do bispo, estende as redes e apanha a presa. Esta é a regra do jogo segundo a literatura goliárdica.

Acrescenta ainda Cocchiara:

Os clérigos ambulantes foram os testemunhos mais fiéis do seu tempo. A liberdade e independência que assumiram ao enfrentar todo o princípio da autoridade e de respeito da tradição deu à poesia aquela qualidade satírica que esteve em rebelião aberta contra um mundo a que intentavam corrigir o espírito e a direcção de vida. O século XIII vê-os desaparecerem, todavia desapareceram quando também o latim tinha acabado de exercer a sua função, deixaram em herança ao século que chegava uma ideia nova, a do valor do indivíduo e do sentido da liberdade (Cocchiara, 1981:113).

A irreverência, a sátira burlesca, a brincadeira, a confusão, o pôr tudo (ou quase) às avessas, protagonizados pelos goliardos, o baixo clero, os meninos ou rapazitos do coro das catedrais, muitas vezes com o apoio festivo e divertido do povo, caracterizavam as medievais “festas dos loucos”, festas de Inverno, de que ainda na nossa época há vestígios, de que são exemplo as festas de Inverno no Nordeste de Portugal, analisadas, como já foi referido, por Paula Godinho, entre outros.

É uma longa tradição cuja origem muitos autores situam nas “Saturnais” romanas, a que já se referia Macróbio na sua obra “Saturnalia”, nos séculos IV-V. Para entender os seus ecos ou vestígios nas festas de Inverno, vale a pena apresenta-las sinteticamente (Baroja, 1979a:298- 300).

As Saturnais realizavam-se pelo solstício de Inverno, a 17 de Dezembro, e nesse dia, era uma festa religiosa, seguindo-se festejos que iam de 17 a 23 de Dezembro, que o Imperador Augusto reduziu a três dias, para depois voltarem a durar cinco dias “de confusão barulhenta e divertimento”. O seu nome deriva de serem expressão do culto do deus Saturno, deus da agricultura, e ao qual os romanos associavam uma idade de ouro em que no seu reinado no Lácio os homens eram iguais e viviam em abundância quase sem trabalharem. No dia 17, após sacrifício público no templo de Saturno, era o banquete, público também. Nos dias 18 e 19 a festa começava com um banho e depois havia o sacrifício familiar de um bácoro. De seguida as pessoas ofereciam presentes umas às outras. Deixavam-se os escravos em liberdade durante as festas e os donos e criados comiam juntos, e muitas vezes como brincadeira os senhores serviam os escravos. À noite, as multidões enchiam as ruas aos gritos de “Io Saturnalia!” e acendiam-se tochas. Elegia-se também um rei das festas, personagem cómica, escolhida por sorteio entre os jovens.

Esta inversão social e a abundância da comezaina, típicas do Carnaval, replicam-se, sem serem cópia, nas festas de Inverno medievais até aos nossos tempos. Até poderíamos dizer que ainda hoje no Carnaval os excessos da comezaina parecem ser o único resto da idade de ouro da abundância a fazer lembrar o mito do “Pays de Cocagne”, terra de abundância com que os pobres sonhavam. As Saturnais, tal como outras festas pagãs foram cristianizadas sem, paradoxalmente (ou não), perderem as suas características de inversão.

Também Jacques Heers, citando Du Tilliot (1751), “quando os pagãos abraçaram o Cristianismo, tiveram dificuldade em perder o hábito de celebrar certas festas divertidas” (Heers, 1983:106-107), lembra que já no século VII, o Concílio de Toledo, em 633, com

Santo Isidro de Sevilha, as condenou. No século X, porém, ainda no Oriente, lamenta Du Tilliot que, na igreja de Constantinopla, tenha havido durante séculos nas festas de Natal e da Epifania, algazarras, gritarias, danças e palhaçadas no meio do Templo e diante do Santuário, e isto por iniciativa de um patriarca. Ora, poucos séculos depois, algo de parecido continuava nas chamadas “Festas dos Loucos”, onde o riso popular “celebra a sua liturgia” (Bakhtin, 1970:96).

Incluíam festas diferenciadas, tais como a Festa do Burro, a dos Inocentes, a Festa dos Loucos, inserindo-se no conjunto designado por vários autores como Festas de Inverno e que vão desde o S. Nicolau (6 de Dezembro) até ao Carnaval, incluindo o dia de Natal, logo seguido do de Santo Estêvão (26 de Dezembro), do de S. João Evangelista (27 de Dezembro), do Ano Novo, da Epifania e outros, como já referimos no capítulo1.

Segundo Jacques Heers, a finalidade e significação iniciais destas festas, mesmo da Festa do Burro, eram religiosas, mas rapidamente, e compreensivelmente, diríamos, degeneraram em divertimento popular e do baixo clero que as protagonizava, frequentemente com o apoio dos de nível mais elevado como os cónegos das catedrais. E, como diz Claude Gaignebet, “não há dúvida de que os loucos que apareciam então eram os mesmos que deveriam desempenhar um papel durante o Carnaval propriamente dito, na Terça-feira Gorda” (Gaignebet, 1979:42). As festas, continua Gaignebet, “eram organizadas no próprio interior das igrejas, as mais das vezes por grupos quase profissionais: padres, diáconos, meninos de coro”.

As descrições e análises de Bakhtin, Gaignebet e Heers permitem-nos clarificar melhor em que constituem as inversões que elas exprimem.

A inversão mais evidente é o pôr a hierarquia às avessas.

Na Festa dos Inocentes, os meninos ou rapazitos de coro tiravam os padres dos seus cadeirões que, nas igrejas, significavam a sua autoridade e dignidade; tornavam-se os senhores da igreja e do claustro; imitavam ofícios litúrgicos celebrando missas de brincadeira; entregavam-se ainda a outras irreverências; e elegiam mesmo, entre eles, um bispo.

Em Espanha, refere Julio Caro Baroja, pelo S. Nicolau e pelos Santos Inocentes elegia-se entre estudantes, nomeadamente na Universidade de Alcalá, o “bispito” (Baroja, 1979:305). Não é, porém, a inversão hierárquica a única inversão das “Festas dos Loucos”, como vemos na “Festa do Burro” que Bakhtin inclui nelas. Celebrada a 1 de Janeiro, o seu significado

religioso era evocar a fuga de Maria para o Egipto, levando o Menino Jesus, montado num burro (numa burra, aliás). O ritual da “missa do burro”, era longo e complexo, como se vê num “Ofício”, normas redigidas por Pierre de Corbeil, arcebispo de Sens, falecido em 1222, referido por Bakhtin e por Heers. Segundo Heers, no início, havia um cântico de alegria, totalmente profano (“Fora daqui quem está triste!”), seguindo-se o Conductus ad tabulam: levado o burro por dois cónegos até junto da estante de coro, um clérigo proclamava os nomes dos que participavam na festa. Cobre-se o burro com uma bela cobertura e entra-se na prosa do burro. Esta “prosa” bem conhecida em toda a França, segundo Heers, inclui gritos de triunfo, louvores das virtudes do burro, tudo entrecortado por imitações do seu zurrar “Hin- Ham!, cada vez mais alto, e o arcebispo de Sens transcreve mesmo o seguinte refrão:

Hez, sir âne, car chantez Belle bouche rechignez On aura du foin assez Et de l’avoine à planter

Terminada a missa, o padre, em jeito de bênção, devia “zurrar” três vezes e os fiéis em vez de “amen”, três vezes também deviam zurrar “Hin-Ham! Por fim, conduz-se o burro na nave e os fiéis, acompanhados muitas vezes pelo clero, dançam à volta dele, imitando os seus zurros. A cerimónia só acaba verdadeiramente quando o burro é trazido para fora, para o adro, acompanhado de cânticos e danças, seguindo-se um desfile burlesco pela cidade. Esta cumplicidade do arcebispo Pierre de Corbeil contrasta com muitas proibições deste tipo de festas. Apesar de já termos feito uma referência à “Festa do Burro” no capítulo 2, desenvolvemo-la agora um pouco mais. Pois tratando-se de distorção de um ritual, acabando por ridicularizá-lo, a inversão, parece-nos, é neste caso diferente. É-se tentado a afirmar que esta “inversão às avessas”, paradoxalmente não é o que resultaria logicamente desta expressão, o normal, mas antes o facto de aqui não ser o animal que faz de humano, mas sim o humano que faz de animal: em vez de cantar “Amen!”, zurra “Hin-Ham”!

As “Festas dos Loucos”, “paródias sagradas”, foram várias vezes condenadas por concílios, desde o de Toledo no século VII, como já se referiu, e também por parlamentos das cidades,

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