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2 “CRISE” DA ÁGUA NO MUNDO ATUAL: QUESTÕES NATURAIS E POLÍTICAS

2.2 O CENÁRIO DE CRISE E A GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

Para muitos a crise da água já existe! Faz parte de uma realidade concreta. Essa afirmação é valida, mas depende de contextos definidos em termos de espaço e tempo. Segundo a Organização das Nações Unidas – ONU, dois terços da população mundial vive em regiões em que há penúria ou escassez de água (PETRELA, 2002). Essa afirmação só pode ser considerada verdadeira porque houve modificação nos níveis de consumo de água ao longo do tempo e devido os modos de organização do espaço e da sociedade. A gestão dos recursos em geral leva um pouco mais de tempo para acompanhar o ritmo de mudança nos padrões de uso e consumo dos mesmos. Os conceitos de escassez e penúria são utilizados por organismos internacionais para fazer simulações e projeções relacionadas à disponibilidade de água per capita e para previsão das demandas para a década de 2050. Cálculos feitos com base nos recursos renováveis da água doce.

Rebouças (2008) afirma que, em primeiro lugar, busca-se associar a crise da água no mundo às previsões desanimadoras das teorias malthusianas, que ainda em 1798, anunciavam a falta de alimentos no mundo para manutenção da vida da população ainda durante o século XIX, a menos que as pessoas decidissem reduzir ou limitar o número de filhos, particularmente nos chamados países hoje chamados subdesenvolvidos. As previsões de Malthus certamente não previram as consequências advindas da Revolução Verde, do

desenvolvimento da biotecnologia na produção agrícola no mundo, das questões relacionadas à crescente produtividade agrícola, bem como da queda dos níveis de natalidade e dos avanços nos recursos da medicina que refletiram na redução das taxas de mortalidade da população. Em segundo lugar, surge a assertiva de que a crise estaria associada ao fato de que o volume total de água doce disponível é muito mal distribuído, seja porque as precipitações atmosféricas não ocorrem de modo regular ou porque vive muita gente onde se tem pouca água disponível (REBOUÇAS, 2008).

Analisando a partir de outra perspectiva é possível lembrar que há algum tempo atrás, a água era vista como abundante e gratuita. Hoje tem assumido o caráter de bem, mercadoria, recurso e matéria-prima estratégica de primeira ordem. É interessante atentar para o fato de que a água constitui-se, concomitantemente, em meio complexo e frágil, nos termos de Becker (2003) essas características são fundamentais, pois permitem entende-la como um recurso econômico e um ecossistema, na medida em que:

Quase todas as realizações humanas, sejam de produção ou de consumo, demandam a água, e sua substituição não é possível. A água natural se constitui, assim, em matéria-prima, produto de consumo e fator de produção, em todos os setores da economia. Vale lembrar que se trata de matéria-prima com especificidade de ser renovável (BECKER, 2003, p. 275).

Diante do cenário que anuncia a crise, Becker (2003) evidencia o surgimento de questões reais, situações e fatos concretos a serem fundamentalmente considerados em escala mundial, considerando que frente aos mais diferentes usos que podemos fazer da água, têm ocorrido o acirramento da disputa de um uso em detrimento dos outros.

O uso global de água nas atividades domésticas corresponde a apenas 8% do consumo total. A irrigação é apontada como a atividade que consome a maior porcentagem de água doce em escala global, chegando à ordem de 70 a 75% do consumo global (BECKER, 2003; RIBEIRO, 2008; REBOUÇAS, 2008). O uso da água na agricultura é analisado, muitas vezes, em correlação direta com o nível de desenvolvimento dos países, pois parte-se do pressuposto de que “quanto menos desenvolvido o país, mais ele consome água para irrigar, e vice-versa” (BECKER, 2003, p. 277). A análise decorrente dessa questão evidencia que os países pobres utilizam em média duas vezes mais água por hectare que os países ricos industrializados, porém sua produção agrícola é cerca de três vezes menor, e em muitos casos até mesmo o valor de mercado das culturas é inferior ao custo de produção da água.

Nas últimas quatro décadas subiu de 200 para 270 milhões de hectares a área de terra irrigada, os quais respondem por 40% da comida produzida no planeta, que são responsáveis pelo consumo de 70% da água doce consumida anualmente. Soma-se a isso a grande perda de água por deficiências nos sistemas de irrigação, que em muitos casos chegam a 60%.

Há efetivamente um sério problema de inacessibilidade à água potável por incapacidade dos serviços de água e saneamento em diversos lugares do mundo, atingindo, sobretudo, populações de países pobres. De acordo com os estudos da Organização Mundial da Saúde – OMS mais de 200 milhões de pessoas não dispõe de 1.000 m³/ano de água e mais de 400 milhões estão em situação de estresse hídrico, ou seja, dispõem de 1.000 a 2.000 m³/ano de água para seu consumo. Segundo Becker (2003, p. 278) este “estado de penúria impede qualquer desenvolvimento” nesses espaços. Segundo o estudo da autora supracitada 40% da população mundial, em 80 países, têm dificuldades de abastecimento e relativas à qualidade sanitária das águas, nestes mesmos países registram-se anualmente mais de cinco milhões de mortes por ano em decorrências de doenças hídricas e ligadas a contágios e epidemias devidos às condições de poluição das águas.

Ainda de acordo com os estudos elaborados pela OMS seriam necessários grandes investimentos financeiros de US$ 23 bilhões anuais para atender plenamente as demandas de água potável e esgotamento sanitário, mas apenas US$ 16 bilhões são efetivamente investidos, contribuindo para a morte anual de 3,4 milhões de pessoas por doenças de veiculação hídrica.

A culpa das situações de crise também não pode ser atribuída ao crescimento demográfico e urbano no mundo. Sobre esta questão, Petrela (2002), Becker (2003) e Rebouças (2008) consideram que não se pode afirmar que o processo de crescimento populacional e do processo de urbanização continuará seguindo as mesmas taxas apresentadas no século XX. Particularmente na segunda metade do século XX houve um “fenomenal crescimento demográfico” – 2,5 bilhões de indivíduos em 1950, 5 bilhões em 1990 e 6 bilhões em 2000 (BECKER, 2003, p. 279). Há a tendência de uma inflexão nesses números do crescimento populacional e uma posterior estabilização desse processo e a tendência de desenvolvimento em muitos países, o que por sua vez contribui para reduzir o crescimento demográfico (MARINEZ ALIER, 2007).

Do mesmo modo, a guerra pela água não está determinada. Se este é um recurso que pode trazer soluções para problemas pontuais de escassez, ela não será uma resposta ao conjunto do desafio lançado à sociedade. Tornando-se mais importante apostar em processos de cooperação (COSTA, 2003). Portanto, a questão da água passa a ter um caráter

socioambiental, justamente pelo fato de o problema residir no modo de sua utilização e nos níveis de consumo, ou seja, envolve a necessidade urgente de gestão do recurso e não pode ser simplesmente atribuída ao crescimento da população.