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O cinema e a representação objetiva da realidade 

2 REPRESENTAÇÕES E LEITORES 

2.1 A FICÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE 

2.1.2 O cinema e a representação objetiva da realidade 

Obras  como  Blade  Runner  também  evidenciam  um  outro  aspecto  da 

produção  ficcional  contemporânea:  a  dissolução  das  fronteiras  entre  os  meios 

expressivos,  à  medida  que  os  filmes  tornam‐se  mais  literários  e  a  literatura  mais 

cinematográfica  (CRUZ,  1997,  p.  24).  Para  Décio  Cruz  (p.  28)  a  teoria  pós‐moderna 

concernente  à  diluição  dos  gêneros  pode  ser  aplicada  à  diluição  das  mídias,  e  o 

melhor  exemplo  disso  seria  o  filme  Blade  Runner.  Para  o  autor,  da  mesma  maneira 

que  a  literatura  toma  emprestados  discursos  de  outras  mídias,  especialmente  do 

cinema, também os filmes tomam emprestado artifícios e técnicas literárias. 

Cruz discorda daqueles que vêem limites intransponíveis entre literatura e 

cinema  e  afirma  existir  uma  notável  relação  entre  esses  meios,  em  seus  aspectos 

mutuamente  visuais,  dialógicos  e  narrativos  (cf.  CRUZ,  1997;  2004). Alguns  críticos 

preferem associar o cinema às artes visuais, pondo em evidência o aspecto imagético 

sobre  o  narrativo.  Cruz  nos  lembra  que  a  literatura  também  promove  a  figuração, 

pois os leitores criam imagens mentais à medida que se deslocam pelo texto, e que, 

por  isso  mesmo,  a  literatura  foi  igualmente  associada  às  artes  visuais  em  estudos 

importantes (CRUZ, 1997, p. 25).  

físico da mensagem. Sob este aspecto, um filme está mais próximo dos livros (sempre 

reproduzíveis) que de uma apresentação teatral (sempre variável). O cinema baseia‐

se  na  captura  de  imagens  e  sons  num  suporte  (película)  manipulável.  Esse  recurso, 

em  si  mesmo  técnico,  permite  que  o  material  bruto  seja  cortado,  fragmentado  e 

rearranjado livremente. Que esse rearranjo (montagem) eventualmente possa se dar 

de  forma  a  atender  um  uma  série  de  convenções  estéticas  e  sintáticas  foi  o  que 

permitiu a D.W. Griffith inspirar‐se em Charles Dickens para lançar as bases de uma 

linguagem narrativa propriamente cinematográfica (cf. EISENSTEIN, 2002).  

Há, todavia, um outro aspecto importante  que torna  a escolha do campo 

cinematográfico  especialmente  oportuna  no  tocante  ao  objeto  desta  pesquisa:  a 

sétima arte realiza, de modo particular, uma tendência presente na estética ocidental 

de representação objetiva da realidade e captura do espectador/leitor para o espaço 

virtual da obra.  

Este  ideal  de  representação  pode  ser  discernido  como  técnica  a  partir  da 

invenção  da  perspectiva  pela  pintura  renascentista.  Segundo  Marie‐Laure  Ryan 

(2001), antes da Renascença a pintura era mais uma representação simbólica de uma 

essência espiritual do que a tentativa de produzir a ilusão de sua presença: seu modo 

semiótico  era  mais  o  da  significação  que  o  da  simulação.  O  espaço  pictórico  era 

estritamente bidimensional, e, portanto, excluía o corpo tridimensional do espectador 

(p.  2).  Tudo  isso  mudou  quando  a  descoberta  da  perspectiva  permitiu  a 

representação  do  espaço  tridimensional  através  de  sua  projeção  numa  superfície 

a imaginação para muito além dos limites da tela. De seu ponto de vista espacial, o 

olhar  do  espectador  percebe  os  objetos  pintados  como  virtualmente  presentes, 

mesmo que a superfície funcione como uma parede invisível que impede a interação 

física (p. 3).  

Para  Cohen  e  Braudy,  o  cinema  representa  o  momento  de  culminação 

técnica  e  estética  de  um  ideal  mimético  que  a  arte  ocidental  persegue  desde 

Aristóteles: 

The main tradition of Western aesthetics, deriving from Aristotle’s Poetics,  adopts the view that art “imitates” nature or, in Hamlet’s phrase, holds “the  mirror  up  to  nature.”  Painting,  from  early  Renaissance  to  the  late  nineteenth  century,  from  Giotto  to  Manet  and  the  Impressionists,  pursued  this  ideal  with  ever‐increasing  success.  Later  the  novels  of  Balzac  and  Tolstoy  provided  a  more  detailed  representation  of  nature  and  society  than  anything  literature  had  previously  known,  and  the  plays  of  Ibsen  and  Chekhov seemed to carry Hamlet’s ideal of the theater to its limit. All these  achievements  were  eclipsed,  however,  by  the  invention  of  photography.  For  the  camera,  and  especially  the  motion  picture  camera,  was  unique  in  its  ability to represent nature. If the ideal of art is to create an illusion of reality,  the motion picture made it possible to achieve this ideal in an unprecedented  way. (MAST; COHEN; BRAUDY, 1992, p. 3)7   Em seu estudo sobre a origem da sétima arte, Ismail Xavier afirma que o          7  “A principal tradição da estética ocidental, derivada da Poética de Aristóteles, adota a visão de que a  arte ‘imita’ a natureza ou, segundo a frase de Hamlet, segura ‘o espelho sobre a natureza’. A Pintura,  do início da Renascença ao final do século XIX, de Giotto a Manet e os Impressionistas, persegue esse  ideal  com  sucesso  cada  vez  maior.  Mais  tarde,  os  romances  de  Balzac  e  Tolstoy  ofereceram  uma  representação  mais  detalhada  da  natureza  e  da  sociedade  do  que  qualquer  coisa  conhecida  anteriormente pela literatura, e as peças de Ibsen e Chekhov pareceram levar o ideal hamletiano de  teatro  a  seus  limites.  Todas  essas  conquistas  foram  eclipsadas,  entretanto,  pela  invenção  da  fotografia.  Pois  a  câmera,  e  em  especial  a  câmera  de  cinema,  era  única  em  sua  habilidade  de  representar  a  natureza.  Se  o  ideal  da  arte  é  criar  a  ilusão  da  realidade,  a  imagem  em  movimento  tornou possível atingir esse ideal de uma forma sem precedentes.” (MAST; COHEN et al., 1992, p. 3,  tradução nossa) 

cinema  surge  no  fim  do  século XIX  nos  EUA  e  na  Europa  de  um  quadro  onde  se 

impunham: 

Um  credo  de  fé  na  ciência  positiva,  a  perspectiva  otimista  de  seu  progresso  material  ilimitado,  conduzindo  o  homem  ao  domínio  crescente  da  natureza,  a  hipertrofia  do  aspecto  técnico  da  cultura  como depósito das mais altas significações. Uma ideologia da solução  material  dos  problemas  humanos  como  efeito direto  do  aumento  da  capacidade produtiva da sociedade e da racionalização crescente das  relações entre os homens, entendida como harmonização obtida pelo  “bom senso” próprio à atitude do sábio perante seu objeto. (XAVIER,  1978, p. 24)  Não é de surpreender que o cinema tenha passado a ser um dos ícones do  século XX. Como produto e signo da técnica, ele tem incorporadas à sua significação  desde sua origem, “as condições que a técnica adquiria como força de manipulação  da natureza e fonte de um progresso, bem‐vindo aos olhos dos que dele usufruam, e 

admirável  aos  olhos  de  todos,  porque  uma  ideologia  dominante  o  instaurava 

socialmente como símbolo do poder da humanidade em geral” (p. 24). 

O cinema consolida, segundo Xavier, a valorização de um modo particular 

de  figuração  do  real  (ponto  de  vista  —  perspectiva  renascentista)  e  a  instauração 

deste  tipo  de  olhar  como  modelo  de  objetividade  visual.  Segundo  o  autor,  é  a 

proximidade deste modelo com o modo de ver da lente que constitui uma das bases 

para o efeito de realismo da fotografia: a fidelidade da reprodução cinematográfica a 

um modelo de olhar é que sanciona sua objetividade. Mais ainda, este efeito realista 

multiplica‐se  pela  presença  fundamental  do  movimento,  uma  vez  que  o  poder  de 

ilusão  da  fotografia  animada  se  exerce  tanto  pela  animação  quanto  pela  fotografia. 

advento  do  cinema:  uma  noção  de  “objetividade  visual”  que  se  encontra  repetida 

pelo  modo  de  ver  da  lente;  uma  valorização  desta  objetividade  como  finalidade  da 

representação e parâmetro de medida da figuração visual dos objetos; uma noção das 

aparências  na  qual  o  movimento  é  um  componente  privilegiado,  logo  decisivo  na 

tentativa de reprodução (XAVIER, 1978, p. 22‐23). 

Para Xavier a inclusão do som no cinema reforça essa lógica, pois o ideal 

de  representação  objetiva  da  realidade  implica  reproduzir  as  condições  naturais  da 

percepção  de  um  elemento  qualquer  em  termos  de  imagem,  mas  também  de  som. 

Neste sentido, o cinema e o fonógrafo constituem duas cristalizações deste ideal: “Se 

por algum tempo estiveram separados, a sua fusão no cinema falado coroou todo um 

processo  de  desenvolvimento  técnico  promovido  dentro  da  orientação  rumo  à 

duplicação ‘objetiva’ do real percebido” (XAVIER, 1978, p. 23). 

As observações de Xavier referem‐se ao contexto original que possibilitou 

o  advento  do  cinema.  Como  salienta  Ryan  (2001,  p.  5),  o  ideal  mimético  não  é 

uniforme  e  conhece  altos  e  baixos  na  história  das  artes  e  do  próprio  cinema. 

Movimentos  como  Cubismo,  Surrealismo  e  experimentalismos  de  linguagem  em 

geral  tendem  a  abrir  mão  da  objetividade  representativa  e  a  denunciar  a 

artificialidade  do  meio  expressivo,  rompendo  com  a  condição  fundamental  de 

captura  do  leitor  na  ilusão  realista:  a  transparência  do  meio.  Não  obstante,  dada  a 

filiação  original  explícita  da  sétima  arte  ao  ideal  de  representação  objetiva  da 

realidade,  a  opção  por  analisar  a  representação  da  irrealidade  em  obras