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1.2. ENTRE O COTIDIANO E A DIVERSÃO: AS MULHERES E OS

1.2.3. O cinema

Da mesma forma que os bailes, o cinema também aparece como ponto de referência nas memórias, sendo eleito pelo Jornal das Moças como signo do refinamento do gosto, do progresso e da modernidade. Através das películas veiculadas, as salas cinematográficas sedimentaram-se como um dos principais mecanismos propagadores das políticas educacionais e nacionalistas, principalmente durante o governo de Getúlio Vargas51, bem como das representações de família, amor e do feminino. Todavia, além de seu caráter formativo, o cinema também se constituiu em um espaço de sociabilidade e ponto de encontro de namorados e de possíveis paqueras.

A primeira sala cinematográfica de Caicó, o Cinema-Teatro Avenida de propriedade do senhor Eunico Monteiro, localizava-se na Praça da Liberdade – atualmente chamada de Praça Senador Dinarte Mariz – e passou a funcionar no ano de 1925 com a exibição de gêneros diversificados, geralmente em sessões realizadas nos fins de semana. O cine exibiu filmes como: Amor de Mãe, um drama de sessão única, notificado pelo Jornal das Moças como capaz de sensibilizar o público; Sem Pátria, da fábrica Nordisk, exibido em cinco partes; Arrependimento do

trahidor, A propriedade de Bill Brenneu e Novidades Internacionais N° 4, todos

dramas de Far-West. De acordo com Andrade (2007), o Jornal de Caicó, em 06 de junho de 1931, notificou que o senhor Eunico continuava a exibir suas sessões, a exemplo do filme O homem de marmore, com interpretação de George Bancroft.

As novidades que envolviam o cinema eram notificadas pelo Jornal das

Moças: anunciavam sobre as exibições e novas aquisições de películas, como

também notícias avaliativas sobre as condutas e comportamentos das pessoas nesse espaço, reafirmando seu caráter disciplinador e educativo. Eunico Monteiro retrata em um artigo para o Jornal das Moças, o caráter modernizador e disciplinador do cinema:

Fui interpellado em dizer o que é o cinema.

Na minha opinião é o passatempo mais instrutivo do seculo XX. Nos paizes

cultos e nas cidades mais civilizadas o cinema constitue um grande progresso, chegando ate mesmo, a fazer parte das nossas obrigações. Ir ao cinema é o mesmo que ir a escola, por que nelle podemos ver e conhecer

tudo quanto desejamos.52 (grifo nosso).

As palavras de Eunico retratam o caráter educativo atribuído ao cinema em consonância com os objetivos dos Estados de disciplinar e difundir valores morais e nacionalistas à população. Como acresce Simis (1996), com as reformulações no sistema educacional a partir da década de 1930, o cinema tornou-se o meio de comunicação mais importante no processo educativo, depois da imprensa, para os debates acerca dos problemas políticos e econômicos do país53.

Além desse caráter educativo, o cinema também propagava a política higienista através dos cuidados com a moralidade, a saúde e a beleza, difundindo representações de amor, maternidade, família e feminino, como mostra Kaplan (1995) na análise dos filmes hollywoodianos: A Dama das Camélias (1936), de George Cukor e A Vênus Loura (1932), de Von Sternberg.

De acordo com as críticas despendidas pelo Jornal das Moças aos “maus comportamentos” de indivíduos das camadas mais populares nas salas cinematográficas54, o cinema popularizava-se (lentamente), muito embora não fosse acessível à população em geral em consequência de ser um divertimento pago. Tal assertiva aponta para a coexistência de diversões diferenciadas entre classes sociais, e da dificuldade, enfática nos depoimentos orais, de se frequentar espaços como o cinema e a Festa de Santana, anterior ao casamento ou à conquista do trabalho.

O cinema é apresentado nos depoimentos orais de forma idealizada enquanto um espaço de respeito, encontros e paqueras, mas sempre em vigilância como retratam João Pedro e Maria Aparecida, respectivamente:

Lá na Praça da Liberdade acho que ainda tem o prédio [...]. Passava era um negócio de cowboys, de briga, não era imoral não, todo mundo assistia. E passava umas séries, nós ficava “viciados”, não perdia de jeito nenhum. Era uma historia, sabe? No cinema entrava homem e mulher, não tinha

52 MONTEIRO, Eunico. Jornal das Moças, Caicó, ano 1, n. 11, p. 1, 3 maio 1926. (Grafia das

palavras conforme o original).

53 Para informações mais detalhadas sobre o cinema educativo, ver: Almeida (1999). 54 Ver: LIZ, Flor de. A nota. Jornal das Moças, Caicó, ano 1, n. 32, p. 1, 29 ago. 1926.

problema não. As mulheres iam sempre acompanhadas. As casadas iam com o marido, as solteiras iam com a família. Era coisa séria!

Chegava, sentava ali na cadeira e ficava conversando. Começava, nós ia prestar atenção à história que ia passar55.

Se nós fosse ao cinema, ele (refere-se ao seu tio Antonio) ia com a gente pra ninguém namorar as filhas dele e nem comigo também. Seu Antonio nos botava tudo na frente e ele aqui atrás. Mas quando nós dava uma fugida, ia e olhava os filmes, as coisas. Ele ficava bravo, não gostava não. Mas como as filhas dele também “perdiam o selo56”, ele também era valente com as filhas. Mas sempre era eu quem comandava as meninas, porque eu era a mais velha, sempre ia com elas para qualquer lugar. Elas já namoravam. Ai eu dizia a elas, deixem vocês crescerem que ai eu enredo a seu pai e a sua mãe, porque elas enredavam de mim57.

João Pedro, Maria Aparecida e os demais entrevistados são recorrentes na afirmação de que as mulheres estavam em constante vigilância, fosse num baile, samba, cinema, praça ou mesmo na feira semanal. Essa vigilância transcendia a família, perpassando minuciosamente toda uma rede institucional através de uma

polícia/política discursiva que agia pelo reconhecimento coletivo/social das várias

instituições: escolas, igrejas, médicos, jornalistas, juízes, promotores, entre outros. Como acrescenta Oliveira (2002), essas inovações tecnológicas, a exemplo do cinema, passaram a invadir o cotidiano das famílias, multiplicando os espaços de lazer e de divertimentos modernos. Visto pelos entrevistados como um lugar de sonhos, o cinema constituiu-se em um espaço de sociabilidade, recordado com nostalgia.