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O CINEMA, OS ANOS 60 E A REDESCOBERTA DO BRASIL

MEMÓRIAS DA MODERNIZAÇÃO DO SERTÃO EM DUAS NARRATIVAS FÍLMICAS

5.2. O CINEMA, OS ANOS 60 E A REDESCOBERTA DO BRASIL

A proposta de produzir filmes que girassem em torno da identidade nacional alimentou diversos documentários oriundos da “Caravana Farkas”663, empreitada cinematográfica que pretendia “mostrar o Brasil para os brasileiros”664. Os filmes da coleção Farkas deveriam ajudar a desvendar a complexidade da cultura nacional. Como diria Lowenthal, “saber o que fomos confirma o que somos”665. Um dos envolvidos neste grupo, assim batizado por ser gerenciado pelo fotógrafo e produtor Thomaz Farkas, foi Geraldo Sarno. A amizade de Farkas com Sarno facilitou o acesso a determinados lugares, temas e pessoas. Nas palavras do próprio produtor: “o Geraldo (...) me trouxe muitas coisas, porque era da Bahia e sabia das coisas. Quando fui para lá com ele, vi coisas muito importantes”. Ainda segundo ele, “o primeiro núcleo queria filmar as ligas camponesas nordestinas, que eram lideradas pelo Francisco Julião. Mas a repressão ‘caía de pau’ nesse tema”. Não bastasse isto, a tentativa pouco feliz de Eduardo Coutinho, ao tentar rodar seu

Cabra Marcado para morrer666, sinalizava para os riscos de filmar as Ligas e abordar diretamente as questões ligadas à concentração de terras: “Também soubemos do caso de

662 BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2003.p.103

663Considerada “uma experiência cultural sem precedentes na história do cinema brasileiro”, a “Caravana Farkas” (1960-1980) consistiu em “reunir cineastas, fotógrafos, roteiristas e produtores em torno de um projeto coletivo”. O objetivo era realizar uma série de trabalhos sobre o interior do Brasil: “era uma experiência nova e desafiadora, e teve início em 1964, em pleno momento de ruptura democrática e instalação de um período conservador e autoritário do país”. Basicamente, a caravana produziria um conjunto de filmes sobre a cultura brasileira, destinados a funcionar como suportes pedagógicos em escolas, fornecendo ferramentas que ajudariam a motivar discussões entre professores e alunos secundaristas. Daí se afirmar que a série representava uma espécie de “brasiliana de cinema”. FARKAS, Thomaz. Notas de viagem. Apres. Rubens Fernandes Júnior. Augusto Massi, Álvaro Machado (entrevista e cronologia). São Paulo: Cosac Naify, 2006.il.p.31;12-13

664 GIOIA, Maria. Farkas faz expedição ao Brasil profundo. Folha de São Paulo. 25 de julho de 2006. Ilustrada.< http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2507200618.htm > Acesso em: 20 ago. 2006

665 Lowenthal, David. LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. In: Revista Projeto História. Trabalhos da Memória. n. 17. São Paulo: PUC, novembro de 1998, p 63-201.

Eduardo Coutinho, que fora devastado pela perseguição militar. Ele foi obrigado a parar de trabalhar e a fugir, perdeu tudo” 667.

Farkas revelou o seu lado empresarial quando viu em risco o seu maquinário importado e, em lugar da aventura arriscada, o grupo optou por mergulhar num projeto que seria tão profundo quanto outros documentários e, ao mesmo tempo, manteria distância da política nacional, além de contar com apoio financeiro estrangeiro: “Então inventamos de fazer ‘outros filmes’ que pudessem transformar o país, mostrar o Brasil aos brasileiros, já que formariam uma espécie de curso de antropologia, para as escolas”668. O documentário, assim, teria a função de atualizar os métodos de informação em curso no país. Aliando-se ao quadro-negro, ao toca-discos, ao retroprojetor, ao gravador, ao projetor de slides, o filme documentário deveria funcionar como um livro visual manipulado pelo professor que levantaria problemas, “obrigando os seus alunos a discutir, pesquisar ou reexaminar temas, propostas”669.

Fruto deste contexto, o primeiro filme dirigido por Geraldo Sarno foi Viramundo “inteiramente rodado em som direto, com exceção da música feita por Capinan e Caetano Veloso, e cantada por Gilberto Gil”670. Conforme Amir Labaki, “Viramundo é um dos primeiros exemplos acabados de documentários brasileiros influenciados pelas novas possibilidades técnicas e estéticas do Cinema Direto, lançado por Drew, Leacock e outros nos EUA do início da década de 1960”671. O documentário foi premiado em diversas mostras, a exemplo do Festival de Vinã Del Mar (1967), no Chile, Evian (1966), ganhando na França o Prix Simone e o Dubreuilh (1966), em Mannheim, Alemanha672. A estréia solo do cineasta baiano tratava do êxodo dos nordestinos para o Sudeste brasileiro devido à seca,

667Eduardo Coutinho, membro do CPC (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) planejou e iniciou as filmagens de um longa-metragem, um filme que contaria a história de João Pedro Teixeira, trabalhador rural líder das Ligas Camponesas e assassinado na Paraíba em 2 de abril de 1962. A experiência de filmar utilizando camponeses como atores foi interrompida quando o Engenho Galiléia foi invadido por tropas do Exército em 1964. O material de Coutinho foi apreendido e o filme só foi retomado em 1981. Cf. MONTENEGRO, A. Cabra marcado para morrer entre a memória e a história. In: FERREIRA, J., SOARES, Mariza de Carvalho (Orgs.). A história vai ao cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.179-192. 668 FARKAS. Op.Cit.p.121

669 Ibidem. p. 5

670 FARKAS. Op.Cit.p.15

671 LABAKI, Amir. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo: Francis, 2006. p.48

672 Viramundo foi considerado um dos 20 documentários mais importantes do cinema brasileiro. Cf. Viramundo (1964). <http://www.cinemando.com.br/200304/filmes/viramundo.htm> Acesso em: 04 jun. 2006.. Ver: SARNO, G.Viramundo. Brasil. 1965.P&B. 40min. 16mm.24q.

destacando as expectativas e as desilusões dos retirantes que idealizavam uma vida melhor ao término da longa viagem rumo a cidades como São Paulo.

O estilo de Sarno chamava a atenção e, em carta enviada a Thomaz Farkas datada de 28 de fevereiro de 1974, Louis Marcourelles comentava: “Geraldo é um artista que amadurecerá, que fará grandes coisas”673. E não só o Nordeste foi alvo das lentes de Sarno e Farkas. Ainda em 1974, os dois participaram de uma expedição pelo rio Negro, juntamente com o biólogo e compositor Paulo Vanzolini674. Através de expedições como estas, retomando a mesma inspiração que levou Mário de Andrade às regiões Norte e Nordeste entre 1927 e 1928, mas “instrumentalizados com a estética do Cinema Verdade” (Direct Cinema ou Cinema Veritè)675, Sarno, Farkas e a tal “Caravana” registraram rituais, festas, processos de fabricação artesanal. Cruzando diferentes pontos do país, eram como “homens de Marte, com aparelhos estranhos, microfones com formas de rifle, fios, gravador, máquina, tripé, teleobjetiva, todos em posição de ataque, ‘contra’ o nosso personagem”676. Com quantas “personagens” os “homens de Marte” conversaram? Sobre o que falaram? Teria a vida de Delmiro temperado algum destes diálogos?

Apesar de semelhanças, os trabalhos dos cineastas envolvidos com o Cinema

Verdade se diferenciaram daqueles produzidos pelo Cinema Novo. Por Cinema Novo, deve

ser entendida a produção ficcional, enquanto que o conjunto de trabalhos destes cineastas em documentários vincula-se à segunda escola. São como Prometeu e Io, deuses próximos e ao mesmo tempo distantes da mitologia grega. A Caravana adotou uma postura de distanciamento, presa ao contexto sufocante, enquanto o Cinema Novo, como Io, a deusa condenada ao eterno movimento, jogou-se para o abraço revolucionário, mergulhou decidido nos debates sobre os males do subdesenvolvimento. Esta divisão possibilita rever a leitura dos filmes documentários feita por Paulo Emílio Sales. Os documentários não devem ser vistos como um prolongamento mais sereno e paciente da produção cinemanovista ficcional. “Não seria o inverso?”, provoca Labaki. Sem negar que uma produção ilumine a outra, este mesmo autor estabelece outro questionamento: “Não

673 FARKAS. Op.Cit.p.143

674 Cf.FERNANDES JUNIOR,, Rubens. Farkas colorido. Viva! In: FARKAS, Thomaz. Notas de viagem. Apres. Rubens Fernandes Júnior. Augusto Massi, Álvaro Machado (entrevista e cronologia). São Paulo: Cosac Naify, 2006.il .p.17,18.

675 LABAKI, Amir. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo: Francis, 2006. p.57 676 FARKAS, Thomas. Op.Cit. p.44

constituiriam as ficções cinemanovistas, elas sim, o prolongamento do enfoque documentarista?”677. Ora, parece ser este o caso da produção sobre Delmiro Gouveia existente na filmografia. Aparecendo inicialmente em documentário, ela passará à ficção pelas mãos de Sarno, cineasta formado em idas e vindas pelos sertões do Nordeste.