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Por ser um produto cultural, próprio de uma ciência artificial que é o Direito, a lei não pode ser concebida como se se expressasse em sentido único. Para que seja devidamente aplicada, necessita de esforço do intérprete, que ao deitar os olhos sobre

o enunciado normativo desempenha atividade hermenêutica e, assim, extrai a norma aplicável ao caso. Esta afirmação importa no reconhecimento de que a atuação judiciária, enquanto exercício cognitivo, ao lado da função legislativa, opera na (re)construção das normas integrantes do ordenamento vigente. Com isso, a ordem jurídica experimenta a projeção exoprocessual dos provimentos jurisdicionais, os quais servirão como norte às condutas humanas e às escolhas institucionais46.

Esta faceta volitiva das decisões desvela a responsabilidade institucional com os direitos fundamentais de segurança e isonomia, os quais se apresentam como deveres gerais de um Estado Democrático Constitucional e, portanto, se mostram inafastáveis da atividade interpretativa e reconstrutiva exercida pelo Judiciário.

Justamente por isso, estavam previstos os deveres de uniformização e estabilidade da jurisprudência ainda na primeira versão do projeto que originou o CPC de 2015. A doutrina47 notadamente preocupada com o possível engessamento do sistema a partir de uma uniformização decisória e com o retorno ao formalismo-interpretativo, se movimentou fortemente para a inclusão dos deveres de coerência e integridade previstos no Código em vigor.

O primeiro dever estatuído pelo caput do art. 926, CPC, o dever de uniformizar a jurisprudência, aponta para a impossibilidade de que os tribunais sustentem interna e concomitantemente posicionamentos conflitantes acerca das mesmas questões de direito48.

Juízes e tribunais, componentes de um só poder estatal, não podem distribuir interpretações aleatórias, sob pena de assim reduzir a atividade decisória ao mero

46 MITIDIERO, Daniel. “Se o direito é duplamente indeterminado e a sua densificação depende

da interpretação que é dada pela jurisdição, então a tônica na legislação não basta para guiar os comportamentos sociais. Sendo a interpretação uma atividade adscritiva de sentido, é preciso que o direito seja visto como o produto de uma relação dinâmica e cooperativa que se estabelece entre a legislação, a doutrina e a jurisdição” p; 74.

47 Lenio Streck atribui a si a iniciativa de inclusão. STRECK, Lenio. Comentários aos arts. 926

a 928. In: STRECK, Lenio; NUNES, Dierle. CUNHA, Leonardo Carneiro da. (Org.)

Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1186. 48 Enunciado n. 453 do FPPC: A estabilidade a que se refere o caput do art. 926 consiste no

exercício de manifestação de opiniões pessoais de quem julga. Ao contrário, os membros do Judiciário devem atuar como parte integrante de um todo, desvelando verdadeira responsabilidade institucional, ainda quando isso signifique contrariar suas percepções particulares acerca da matéria em debate49. O dever de uniformizar a jurisprudência reforça, neste sentido, o ideal de isonomia que se deve observar no exercício da atividade jurisdicional.

De igual modo, tendo em perspectiva o ideário de segurança, impõe-se o dever de estabilidade. Um tribunal que altere a todo instante seus posicionamentos, não se mostra apto a inspirar confiança aos jurisdicionados pois não os permite conhecer com alguma previsibilidade quais as normas lhe serão aplicáveis.

Realmente, quando se pensa em um Estado Democrático Constitucional, modelo mais consentâneo com o atual momento vivido pela sociedade contemporânea, em que cada vez mais se exige uma participação direta e democrática da sociedade, torna-se necessário a existência de um estado de segurança jurídica, para que os cidadãos possam conhecer quais regras são válidas e poderão ser aplicadas quando se configurar determinada conduta. Pois somente assim poderão planejar suas vidas e exercer suas liberdades, somente dessa forma é preservada a autonomia individual de cada um. Um ordenamento jurídico que está em constante mudança não possibilita a configuração desse estado. Muito pelo contrário, acaba por gerar incertezas, abre espaço para o arbítrio e impossibilita um desenvolvimento econômico de longo prazo50.

É necessário, pois, que os tribunais percorram cuidadoso processo na alteração dos posicionamentos que já se encontrem consolidados, dedicando argumentação que oriente e justifique a mudança que se opera.

A coerência do mesmo modo deve ser observada, cabendo aos julgadores o dever de auto referência e de não-contradição com o que já decidido em casos análogos. Não há engessamento, pois. Há, em verdade, a preservação do histórico judicial quanto à aplicação de normas aos casos em julgamento, de sorte a apresentar verdadeiro ambiente de diálogo frente ao jurisdicionado, munindo-o da possibilidade

49 Em sentido consonante, Lucas Buril de Macêdo disserta que “O tribunal, ainda que dividido

em vários órgãos, é um só, e precisa atuar em conformidade com sua unidade, assumindo uma única posição acerca da mesma questão jurídica.” – p. 329-330

de controle do processo a partir dos argumentos que justificam a decisão que se lhe impõe.

Ao contrário do que eventualmente se possa intuir pela utilização dos vocábulos de uniformização e estabilidade no Código de Processo Civil, tais deveres não se afiguram autorizativos a conduzir a automatização da atividade decisória do julgador.

A experiência processual com a fixação de padrões decisórios não pretende – e nem poderia – obstar a realização de atividade interpretativa pelo magistrado. Ao contrário, os padrões servem como balizas à fundamentação a ser empregada na decisão, para que se possa dela extrair a coerência e integridade de seus termos para com o ordenamento51.

Nesta perspectiva, a uniformização, estabilidade, coerência e integridade guardam importância curial para a ordem processual e importam em avanço para a superação da cultura réliqua e formalista que limita a função do julgador à mera atividade declaratória. Importam, assim, na reafirmação da função interpretativa empregada pelo órgão judicial sobre os enunciados normativos legislados e, de igual modo, sobre o conteúdo das próprias decisões judiciais que lhes sejam antecedentes.

51 Enunciado 380, FPPC: A expressão ordenamento jurídico empregado pelo Código de

Processo Civil, contemplas os precedentes vinculantes. O diálogo com o que já fora decidido antes deve ser presente nas decisões, pois somente por meio da fundamentação se mostra possível verificar a consonância do julgamento atual com o ordenamento jurídico densificado pelos precedentes já formados. A título exemplificativo, veja-se este excerto de julgamento realizado pelo STJ em caso que versava sobre incidência das contribuições ao PIS e COFINS sobre os valores pagos pelas empresas de transportes às empresas rodoviárias e retidas na venda de passagens aos usuários: 6. O fundamento determinante de todos esses precedentes vinculantes é o de que os contratos firmados pelas pessoas jurídicas contribuintes não podem retirar da base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS parcela de seu faturamento ou receita a pretexto de haver retenção desses valores pela outra parte contratante antes do seu ingresso no caixa da empresa contribuinte. Para haver essa exclusão é preciso lei federal específica. 7. O CPC/2015 estabelece em seu art. 926 que é dever dos tribunais uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. A integridade e coerência da jurisprudência exigem que os efeitos vinculante e persuasivo dos fundamentos determinantes (arts. 489, §1º, V; 927, §1º; 979, §2º; 1.038, §3º) sejam empregados para além dos processos que enfrentam a mesma questão, abarcando também processos que enfrentam questões outras, mas onde os mesmos fundamentos determinantes possam ser aplicados. Tal o caso destes autos. 8. Recurso especial não provido. (STJ, 2ª Turma, REsp. 1.441.457 - RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 16/03/2017, DJe 22/03/2017)

A conjugação dos quatro elementos previstos no art. 926 propicia que a atividade judicante seja exercida em prestígio à unidade jurisdicional, ao contraditório efetivo, de sorte a entregar tutela isonômica através da consonância da decisão com o todo do sistema que integra quando proferida, encerrando espaço a arbitrariedades.

Se por um lado já não se admite a restrita vinculação ao texto legislado, por outro, a atividade interpretativa já não se mostra incondicional a ponto de autorizar a coexistência de decisões que se mostrem antagônicas.

Um Judiciário que emane orientações conflitantes corrobora para fenômeno estranho à unidade do direito e afronta os valores constitucionais de igualdade, imparcialidade e segurança jurídica52. Um cenário de dispersão jurisprudencial contribui sobremaneira para o ajuizamento desmedido de demandas, além de contribuir para a irresignação do usuário da justiça, que se utilizará das instâncias superiores a fim de ver reformado o provimento a quo, como se os instrumentos recursais servissem ao escopo de reabrir a discussão uma segunda vez, numa espécie de concessão de segunda chance à parte vencida.

A exposição de motivos do anteprojeto do CPC/2015 denunciou o desvirtuamento da liberdade interpretativa conferida aos magistrados e sinalizou a criação de expedientes projetados com o escopo de evitar a dispersão decisória e reduzir o assoberbamento judicial, mantendo-se a unidade do direito pela entrega de uma tutela jurisdicional dotada de qualidade.

As figuras mencionadas pela Comissão de Juristas, alicerçadas na eficiência53 processual, revelam o intento de confluência interpretativa e se sobressaem especialmente na previsão dos arts. 926, 927 e 928, cujo conteúdo concentra claro ideário de padronização virtuosa das decisões por meio do anúncio dos deveres de

52 MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários aos arts. 926 a 928. In: WAMBIER, Teresa Arruda

Alvim et. al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 2308

53 Valor expressamente previsto na exposição de motivos apresentadas ao anteprojeto do

Código de Processo Civil de 2015. Disponível em:

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em 08.08.2018.

uniformização, estabilidade, coerência e integridade da jurisprudência dos tribunais, a vinculação aos precedentes judiciais e o modelo de julgamento de casos repetitivos.

Clara está, neste contexto, a congruência funcional de uniformização que pode ser verificada tanto entre os precedentes obrigatórios (art. 927, CPC) quanto entre as técnicas de julgamento de casos repetitivos (art. 928, CPC).

Nada obstante, a finalidade de padronização que lhes é comum, tal característica não se mostra suficientemente hábil a enlaçá-los como se fossem sinônimos, tampouco reduzi-los a este único desígnio. Em verdade, precedentes e casos repetitivos se apresentam como institutos diversos, estabelecidos por regramentos próprios e nada obstante possam se aproximar, não haverão de se confundir, nem mesmo se sobrepor.

A vinculação aos precedentes e a técnica de julgamento de casos repetitivos se apresentam como instrumentos que tendem a promover uma realidade de padronização decisória vocacionada à estabilidade do direito e da ordem jurídica. Apesar desta característica comum, cuidam-se de expedientes distintos, com aptidões, escopos e desdobramentos igualmente diferenciados, em que pese possuírem a mesma faceta uniformizadora da jurisprudência.

Se às técnicas de casos repetitivos se atribui a finalidade de otimização judiciária, verdadeiro atributo para uma gestão processual, ordenada aos valores de economia e eficiência na atividade jurisdicional. Aos precedentes, noutro giro, se verifica o desígnio de dar unidade ao direito e racionalidade às decisões.

A conjunção virtuosa e adequada da técnica dos repetitivos com um sistema de julgamento que respeite a normatividade dos precedentes conduz ao exercício da função jurisdicional em panorama ideal de racionalização da atuação judiciária, em que seja possível julgar menos questões e, por conseguinte, julgar melhor aquelas remanescentes.

2 O MODELO DE JULGAMENTO DE CASOS REPETITIVOS COMO TÉCNICA DE GESTÃO DE PROCESSOS

O CPC/2015 elencou no art. 928 as técnicas de julgamento a que aglutinou sob a denominação julgamento de casos repetitivos. O dispositivo fez menção somente aos instrumentos previstos no diploma procedimental civil: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (arts. 976 a 987) e Recursos Especiais e Extraordinários Repetitivos (arts. 1.036 a 1.041)54, mas a doutrina tem reconhecido a aplicabilidade destes institutos também a outros ramos processuais55-56-57 como o Processo Penal, do Trabalho e Eleitoral58.

A compreensão da existência de um modelo de julgamento de casos repetitivos implica considerar que as normas relativas a estes instrumentos devam ser

54 “Com a edição do NCPC, o modelo de solução de casos repetitivos passou a ser

constituído, com maior técnica processual, pela regulamentação conjunta e sistemática do IRDR e dos recursos extraordinários e especiais repetitivos” (CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). São Paulo: RT, 2016, p. 205-206). O autor ainda defende que o modelo de repetitivos também integram o microssistema processual coletivo. Também neste sentido: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Ações coletivas e o incidente de julgamento de casos repetitivos – espécies de processo coletivo no direito brasileiro: aproximações e distinções. Revista de Processo. São Paulo, v. 256, p. 209-218, jun. 2016.

55 Aluisio Mendes defende que o IRDR tem aplicabilidade aos referidos ramos pois com eles

não se mostram incompatíveis. (MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de

resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto

processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.5).

56 Parcela da doutrina chega a afirmar que a Lei 13.015/2015 que inseriu os Recursos de

Revista Repetitivos (arts. 896-B e 896-C, CLT) na legislação processual trabalhista compõe o que se denomina microssistema de julgamento de casos repetitivos. Entendimento esboçado em: ZANETI JR., Hermes. Comentários aos arts. 926 a 946 do CPC. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Comentários ao novo Código de Processo

Civil. 2ª ed. revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1343-1344;

CABRAL, Antonio do Passo. Comentários aos arts. 976 a 987 do CPC. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2ª ed. revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1434-1435; DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v. 3. 14. ed. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 676.

57 Enunciado 346 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "A Lei 13.015, de 21 de

julho de 2014, compõe o microssistema de solução de casos repetitivos". Cumpre mencionar ainda a previsão do art. 8º da Instrução Normativa 39/2016 do TST que reconhece a aplicabilidade do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas às demandas trabalhistas.

58 Apesar de não contrapor o referido entendimento, esta pesquisa terá em conta somente os

interpretadas em lógica sistêmica, a fim de que os dispositivos se comunguem reciprocamente59, aplicando-se a ambos os institutos sempre que possível e a despeito de não constarem expressamente previstas nos capítulos destinados a cada um no CPC. Esta intepretação sistêmica, porém, não descuida de observar que a técnica dos repetitivos se manifesta em meio a mecanismos distintos: ora IRDR, ora Recursos Repetitivos.

Neste sentido, respeitadas as especificidades próprias de cada um dos institutos processuais a que se refiram, os dispositivos que regulam cada um desses expedientes devem ser compreendidos em seu conjunto, pelo que deve o intérprete ter em mente o modelo a que compõem e a conexão finalística e gerencial que lhes são comuns.

Em breve síntese, a técnica de julgamento dos repetitivos tem o intento de uniformizar o entendimento do tribunal acerca de questão de direito que seja controvertida em diversos processos, fixando tese jurídica aplicável a todas as demandas em curso. Cuida, pois, de expediente voltado a julgar questões – e não demandas ou conflitos subjetivos tal como o processo o faz usualmente – e, por conseguinte, tutelar o direito objetivo.

A feição dessubjetivadora dos repetitivos lhe confere dimensão coletiva e, a um só tempo, amplia sua abrangência para além da esfera dos direitos individuais homogêneos, já que os efeitos decorrentes da técnica transpõem o espectro pessoalizado da lide e alcança toda a sociedade litigante.

59 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Processo

Coletivo. v. 4. 11ª ed. revista, ampliada e atualizada. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 55-60 e 97-102. Conferindo a mesma interpretação, foi aprovado o enunciado 345, FPPC que prevê: "O incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente".

2.1 JULGAMENTO DE CASOS REPETITIVOS COMO MEIO PROCESSUAL