• Nenhum resultado encontrado

2 RAÍZES MEDIEVAIS DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA

2.4 O compromisso da misericórdia e a prática da caridade

Fundada a Misericórdia de Lisboa, logo começou a funcionar, afinal, a Misericórdia para além do acalento das almas dos indivíduos trazia na sua criação uma ânsia da monarquia controlar a condição socioeconômica de Portugal, pois a massa de indivíduos em condição de pobreza crescia.

A criação da Irmandade da Misericórdia trazia nas entrelinhas da sua criação interesses da Igreja e da Coroa, os quais sob o discurso de cuidado com a alma dos indivíduos e caridade para com os menos favorecidos almejava estabilizar a população que estava às margens das transformações ocasionadas pela modernidade, assim como fortalecer a presença do rei. Dessa maneira, após a fundação da irmandade, o rei D. Manuel enviou correspondência aos “homens bons” de várias vilas e cidades para que organizassem semelhante associação, e tomassem por base o compromisso (estatuto) da confraria lisboeta.34

Apesar da índole religiosa as Misericórdias eram controladas pelo poder real, portanto não estava submissa à Igreja35. Segundo Isabel dos Guimarães Sá, essa condição

contribuiu para a edificação do Estado, pois os reis passavam a serem os principais consumidores da ação caritativa, ao mesmo tempo em que as Misericórdias nunca estariam sob a autoridade da Igreja Católica, permanecendo sob o controle jurídico do rei.

Estar sob a proteção da coroa foi uma das razões que facilitou a difusão das Misericórdias tanto em Portugal quanto em suas colônias, América, África e Ásia. O crescimento das Misericórdias aumentou o número de doações testamentárias e a incorporação dos hospitais, fatores que proporcionaram à instituição o controle sobre as práticas caritativas. O aumento do poder econômico da Misericórdia foi fundamental para que o poder papal determinasse que “[...] nenhuma confraria da cidade de Lisboa pudesse ter tumba, esquife ou exercitar as obras de Misericórdia de que se ocupava a Misericórdia da cidade – situação de monopólio sem paralelo na Europa católica.”36 Essa determinação papal garantiu à Irmandade

da Misericórdia o monopólio da caridade.

34Todas as Misericórdias instituídas tanto em Portugal quanto em suas colônias, deveriam tomar como

modelo o compromisso da matriz lisboeta. Acreditamos que essa exigência, fosse uma estratégia da Coroa para manter o controle tanto sob as Misericórdias quanto sob suas práticas assistencialistas.

35Prerrogativa aprovada pelo Concílio de Trento, quando obtiveram o status de irmandades sob a

proteção real.

36LOPES, Maria Antonia. Propostas reformadoras da assistência em Portugal de finais do Antigo regime

à regeneração. In: CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES: DO ABSOLUTISMO AO LIBERALISMO, 6., 2009, Guimarães. Actas... Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2009, p. 49.

29

As Misericórdias se expandiram por Portugal e todo seu Império ultramarino, favorecidas pela proteção real e pela concessão de importantes privilégios. Sua longevidade e expansão podem ser compreendidas pelas vantagens mútuas proporcionadas ao rei e às elites locais, pois a caridade negociava a culpa e os pecados dos indivíduos de acordo com as necessidades da sociedade.

Os estudos sobre as Misericórdias no Brasil estabelecem uma linha de continuidade entre a matriz lisboeta, fundada no século XV, com as fundadas em suas colônias, até mesmo com as fundadas Brasil imperial.37 Dentre os elementos de continuidade entre as Misericórdias

brasileiras e a Matriz lisboeta, destacamos a organização da irmandade38, o compromisso da

misericórdia e a prática de assistência e caridade aos menos favorecidos. A irmandade era regida por uma mesa diretora composta pelo provedor, escrivão e 11 conselheiros, além dos irmãos da Misericórdia. O modelo de assistência praticado pela irmandade da Misericórdia é o que as diferencia das outras irmandades de assistência do período, tal como afirma Stuart Woolf,

Nas sociedades do sul da Europa, como a Itália central ou Portugal, as misericórdias incorporaram funções múltiplas que tinham evoluído no resto da Europa, pelo menos no século XVIII, para uma especialização imperfeita de funções no quadro de redes urbanas de instituições de caridade.39

A diferença na assistência prestada pelas Misericórdias, talvez seja consequência da irmandade ter suas ações orientadas por um compromisso. O compromisso da Misericórdia, além de orientar os irmãos sobre suas obrigações, continham regras que controlavam a prática e a recepção da caridade. Os receptores da caridade deviam estar enquadrados dentro das normas estabelecidas pelo compromisso40, assim como, para ser Irmão da Misericórdia, era

37Ver: KHOURY, Yara Aun. Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil:

fundadas entre 1500 e 1900. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. A autora afirma que as misericórdias do Brasil têm em Lisboa a “casa mater”.

38A organização interna da irmandade era constituída por dois tipos de Irmãos: os irmãos de 1ª condição

dos quais faziam parte os nobres, eclesiásticos e magistrados. E os irmãos de 2ª condição que era composta por mestres de ofícios, mercadores e lavradores, que foi mantida até o inicio do século XX, com raras exceções.

39WOOLF, Stuart. Prefácio. In: SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias,

caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses, 1997, p. 13.

40Incapacidade de prover a própria subsistência e residência, não se provia desconhecidos, religião,

30

necessário cumprir com as exigências expressas no compromisso41. As exigências expressas

nos compromissos eram relacionadas à conduta moral, à condição econômica e à religião. O Alvará · de aprovação da primeira Santa Casa portuguesa data de 29 de setembro de 1489, essa pode também ser a data de seu mais antigo compromisso, já que a destruição de seus arquivos pelo terremoto de Lisboa nos impede afirmar com certeza. As catorze obras de Misericórdia apareceram apenas no primeiro compromisso da irmandade em 1516. A partir do compromisso 1577, ocorreu a supressão das catorze obras da misericórdia, talvez porque a irmandade já estava instituída e tornava-se mais importante sua organização interna. 42

As obras de misericórdia representaram um programa de ajuda e coerção social que convêm ser lembrado. As 14 obras de misericórdias foram inspiradas no Evangelho de Mateus, e são as seguintes:

Espirituais: 1ª – Ensinar os simples; 2ª – Dar bom conselho a quem o pede; 3ª – Castigar com caridade os que erram; Consolar os tristes desconsolados; 5ª – Perdoar a quem nos errou; 6ª – Sofrer as injúrias com paciência; 7ª – Rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. Corporais: 1ª – Remir os cativos e visitar os presos; 2ª – Curar os enfermos; 3ª – Cobrir os nus; 4ª – Dar de comer aos famintos; 5ª – Dar de beber a quem tem sede; 6ª – Dar pousada aos peregrinos e pobres; 7ª – enterrar os mortos.43

Na prática, diversas obras espirituais foram negligenciadas, assumindo as Misericórdias a responsabilidade de outras formas de assistência especialmente as corporais. A distinção das misericórdias de outras irmandades era o fato de que elas prestavam assistência a terceiros. A maioria das irmandades organizadas na Europa tinha como objetivo central, ainda que praticasse a caridade, auxiliar seus membros. Quanto às misericórdias eram irmandades voltadas especialmente para a prática da caridade, mesmo que também prestassem socorro material e espiritual aos irmãos.

Enfim, durante muito tempo as Misericórdias foram as instituições centrais para a prestação de serviços assistencialistas, no Brasil elas se especializaram na assistência médica, porém possuíam um leque bem maior de serviços assistenciais. As misericórdias não

41Aos irmãos da Misericórdia exigia-se ser limpo de sangue, tanto eles quanto suas mulheres, livres de

infâmias, terem idade conveniente, não exercer ofícios mecânicos, ter bom entendimento, sabendo ler e escrever, e ser suficientemente abastados para que pudessem acudir a irmandade quando esta precisasse.

42A versão revista deste Compromisso, aceita pela maioria das Misericórdias do Império e que em muitas

permaneceu em vigor até o final do século XIX, adicionou mais vinte e dois artigos ao anterior, modificando não só a administração, mas o próprio espírito no qual fora concebida. Nele o princípio de igualdade entre os irmãos foi corrompido, introduzindo a divisão entre classes, o desprezo ao trabalho manual e mecânico, agravados pelo racismo e antissemitismo. Ver: MESGRAVIS, 1976, p. 31-33.

31

controlavam apenas a ajuda aos pobres, elas também controlavam outros espaços de assistência tais como os hospitais, cemitérios, asilos entre outros.