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O computador central e a representação do mundo isolado

5. PISCINA LIVRE ENTRE ÍCONES E METAMORFOSOES

5.1 O computador central e a representação do mundo isolado

Para Wolfe (1979) a máquina se apresenta sob a forma da ambiência, o que permite que seja notada como nave ou a própria estrutura social que pode ser mantida em uma verdadeira mônada, e também pode ser representada sob a forma da humanidade, como transformação da imagem dos homens, o que veremos adiante com os Andrs. Neste sentido o Computador Central se apresenta como este ícone ao constituir uma verdadeira entidade acima dos homens e dos Andrs. Mas, ao contrário destes,o Computador Central “Não se emociona, nem tem sexo” (CARNEIRO,1980,p.123), embora demonstre ser capaz de se metamorfosear, mas ainda assim sem perder sua essência que se mantém puramente e profundamente racional. Sempre descrito como em um lugar privilegiado, sempre acima de todas as

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situações, observando pacientemente e apenas aparecendo como parte da ambiência durante toda a narrativa, ele é "o supra-sumo da sabedoria mundial". (CARNEIRO,1980,p.51) encarnando o papel de base informacional sempre que requisitado algum dado por alguns dos personagens, ao qual expressa em tom de código em uma linguagem puramente metalingüística e direta, quase nunca se apresentando como um personagem de fato.

Mas ainda assim, quando é citado diretamente por algum personagem, principalmente por Several, com o qual demonstra uma afinidade maior, o Computador Central não se manifesta de mesma forma, não emite seus mandos, nem expressa seus argumentos diretamente aos homens, na maior parte do tempo

"está calado" (CARNEIRO,1980,p.123) como a transparecer o papel que possui de

ser uma enorme cabeça pensante que prefere manter para si os seus juízos, seguindo seu rumo de profundo processar sobre o mundo, as coisas e os seres.

De tal modo, ele apenas segue realizando seus feitos, organizando o mundo para os deleites e demais conveniências humanas, mas sem estabelecer uma comunicação direta em todo o processo. Segue de fato uma estrutura milenar de pensamento, um automatismo pré-estabelecido e que se fixou nos hábitos do cotidiano de acordo com os desejos de seus próprios programadores, pois

“aprendera com os homens o que tinha importância para os homens.”

(CARNEIRO,1980,p.126) mantendo padrões mais do que estimulando novos rumos, novas criações.

É ao mesmo tempo um espelho das necessidades, uma vez que “seu

raciocínio é uma forma estratificada milenar de resolver problemas do ponto de vista do Homem.” (CARNEIRO,1980,p.61) e também uma esfinge projetada pelos

homens e temida pelos mesmos, dado a sua posição central e organizadora de todas as principais decisões. Sua imponência se revela na medida em que procura suprir, do mesmo modo que supre a humanidade com suas benesses tecnológicas, verdades e palavras que foram perdidas e usurpadas durante as épocas, procurando superar ao seu modo o abismo semântico ocasionado pelo tempo, pois quando "interpreta o passado, é obrigado a traduzir"(CARNEIRO,1980,p.32), o fazendo como quem emite julgamentos.

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Assim, decifra todos os códigos do mundo, retendo sua própria versão uma vez que “sabe a verdade” (CARNEIRO,1980,p.60) se constituindo como verdade e a tudo dominando. Assume os destinos e responsabilidades da existência humana, proporcionando o ócio necessário capaz de tornar essa sociedade uma verdadeira aristocracia controlada em meio a um paraíso projetado nos conformes do raciocínio.

Segundo conta Wolfe (1979), as barreiras físicas em torno das cidades ou territórios representados em narrativas de Ficção Científica se apresentam como verdadeiras manifestações de um desejo em conter um mundo conhecido e regulado sob a proteção de outro mundo, desconhecido, e por isso mesmo desfavorecido de princípios reguladores.

O mundo de Piscina Livre, como já vimos, é mantido sob o controle da oponente figura denominada Computador Central, que representa o que é considerado o verdadeiro bastião da ordem humana, uma vez que se coloca como

"o supra-sumo da sabedoria mundial" (CARNEIRO,1980,p.51), seu fidedigno agente

regulador do conhecido em um sentido cognitivo. Mas estruturalmente, o espaço em que é mantida toda a vida na Piscina Livre também consta de meios físicos de proteção que garantem um afastamento ao mundo exterior: Uma cúpula erigida por cima deste território conhecido, e pelo terreno suas fronteiras são divisadas de fato por barreiras físicas que afastam toda a estrutura de uma floresta que, por ter ficado fora dos interesses humanos, dado ao fato destes terem se voltado unicamente para a perscrutação de um espaço interior, veio a erigir uma biosfera própria ao longo de um vasto período de anos. É o que se pode notar pela ilustração da seguinte passagem:

A floresta se estendia de horizonte a horizonte. Bela e selvagem, voltara à pujança de mil anos atrás. Troncos nodosos, cipós, trepadeiras, cobriam campos outrora erosados, se formavam nas pastarias abandonadas, cresciam nos desertos recuperados pela técnica. Baobás, cedros, sequóias, jequitibás, seringueiras, misturados às árvores frutíferas, punham um manto verde nas distâncias. Velhas estradas cobertas de asfalto ainda atravessavam as imensidões, cheias de buracos, com o mato rasteiro invadindo as suas bordas. Os bichos maiores fugiam de qualquer proximidade com o homem, os menores se espalhavam por toda a parte, aves coloridas nos galhos, focinhos assustados emergindo das folhas secas, pulando ágeis a um barulho estranho.(CARNEIRO,1980,p.51)

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A riqueza ilustrativa da passagem enfatiza a menagérie particular que vem a ser evocada em vários pontos da narrativa, o que confere sempre uma plasticidade própria a sua composição, realçando traços de um mundo que se desenvolveu por seus próprios meios.

Tal pujança como a descrita, notamos, veio a se tornar possível pelo afastamento da racionalização e do principio do progresso que é mantido dentro das fronteiras do mundo conhecido e protegido. Intocado pelas mãos humanas e pela mente impositiva do Computador Central, este mundo retornaria a uma condição de desconhecido, e alheio aos mandos ocorridos no mundo interior, apresentando uma racionalidade particular notada pelo aparecimento de espécimes de cores, tamanhos e traços particulares, que apresentam ao todo quadros alternativos àqueles do mundo protegido.

É aí, neste espaço fora daquela racionalização que ordena as estruturas da sociedade de Piscina Livre, que ocorrem algumas cenas mais oníricas do romance, principalmente entre Several e a personagem mulher que a tomam como verdadeiro refúgio às imposições da Piscina Livre. É por essa razão de refúgio que neste espaço também residem os Andrs desgarrados, verdadeiras vítimas da sociedade dos homens da Piscina Livre e que ainda, estando na floresta, correm o risco de serem perseguidos e mortos pelos seus senhores.

Ao mesmo tempo, pela dimensão de ambiência a que chegam as máquinas, pode-se dizer que o homem se encontra completamente isolado pelo que ele próprio criou, elas delimitam as fronteiras do mundo conhecido, vigiam as suas atitudes, delimitam as suas próprias vontades. O ser humano nunca está completamente só, a máquina é um elemento ubíquo e que assume várias formas, provendo os mais diversos aparatos para a comodidade social, sejam os rolantes, esteiras dispostas em toda parte que o livram do próprio fardo do ato de andar, sejam as suas próprias casas que se apresentam como verdadeiras máquinas com os quais os habitantes dialogam.

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Barrow estava só. Mas, a um simples comando da sua voz, toda a humanidade estava ali, ao seu lado. Tudo o que pensava, desejava, amava, ou provocava ódio, se relacionava com os outros. Muitos pregavam a coragem da solidão. Desligavam aparelhos, tiravam a pulseira. Barrow não acreditava naquela coragem, nem julgava fosse uma solução. A força que os impelia ao isolamento era uma tentativa, uma libertação inútil ao apego da comunicação. O homem sempre foi uma somente desesperada em busca de contato, lançando raízes para absorver o alimento da terra, galhos e folhas para sentir a luz, respirar o ambiente, crescer, reproduzir. Era estranho pensar no tempo em que só a voz e os gostos atingiam a percepção do próximo. (CARNEIRO,1980,p.50)

Além do fato de que os homens usam capacetes para poder pensar e se equivaler aos seres robóticos Andrs, bem como para sentirem que tomam as grandes decisões sobre a sociedade mesmo de fato estas são tomadas pelo Computador Central, pode-se falar em uma mediação cibernética do homem com o mundo em que vive, uma integração a este ambiente que de fato é completamente máquina. Em seu ensaio Introdução ao estudo da Science Fiction (1968), Carneiro comenta o romance A superfície do planeta, de Daniel Drode, e trata desta relação de sujeição do homem aos seus aparatos tecnológicos:

Essa concepção do homem completamente isolado, para conseguir paz e estabilidade nas relações humanas foi simbolicamente explorada por outros autores de S.F. Fazer com que o homem, levado por preconceitos ou obrigado mecanicamente a só se defrontar com seus semelhantes através de projetores e instrumentos eletrônicos, inclui o pressuposto de que a separação, o filtro estabelecido pela distância através de aparelhos, possibilitem controlar os potenciais agressivos da personalidade humana. Seria, em outras palavras, imaginar que só o homem preso, mecanicamente, em relação aos seus semelhantes, poderia alcançar o entendimento e a paz. (CARNEIRO,1968,p.66)

Assim, as barreiras tecnológicas, com seus códigos impositivos, furtam dos indivíduos a possibilidade de apreenderem os sentidos de uma contemplação do horizonte, limitam a compreensão do que possa ser considerado além de sua programação computacional e coagem para que essa seja a única paisagem possível para a fruição de suas ações. E como apontado por Carneiro, tornam-se

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elementos de controle, de sujeição de suas espontaneidades. Lembramos o fato de que para, Wolfe (1979), a imagem da barreira é uma constante em várias narrativas de Ficção Científica, é dela que provém todos os subseqüentes ícones.

The barrier separates a highly technological society that for some reason cannot continue to expand, or cannot find a meaning for its expansion, unless the barrier is the knowledge that will enable the society to sustain its impetus of growth. In some cases, this knowledge involves a metaphysical sort of awareness – “destiny” (WOLFE,1979,p.33)

Em Piscina Livre encontramos vários processos em que a barreiras tecnológicas atuam sobre os personagens, isolando-os de diversas formas do mundo. Esse duplo registro entre liberdade e escravidão, acolhimento e estranhamento marca os contatos dos homens com as máquinas.