• Nenhum resultado encontrado

O “Comunismo real” nos Manuscritos de 1844

No documento Emancipação e democracia em Marx (páginas 138-142)

4.2 Tópicos sobre a Teoria do Socialismo/Comunismo

4.2.1 O “Comunismo real” nos Manuscritos de 1844

No primeiro momento que elegemos, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Marx destaca três concepções de comunismo: o “totalmente rude e irrefletido”, o “conceitualmente” formulado, mas que ainda tem a “essência” “infectada” pela propriedade privada, e aquele em que a “essência” foi realizada, ou seja, no qual a “propriedade privada” foi “suprassumida”. 408 Trataremos, aqui, dos dois extremos: “comunismo rude” versus “comunismo real”.

De acordo com Marx, em geral, o “comunismo rude” prega a ideia que a condição comum a ser estendida a todos os homens é a de que todos sejam proprietários privados. Pensam assim pelo motivo de não reconhecerem a propriedade privada como um mal em si. Apesar de críticos das desigualdades sociais, os comunistas rudes, utopistas409 — Proudhon, Fourier, Saint-Simon etc. — não identificam a instituição da propriedade privada burguesa como origem das desigualdades entre os homens. Proudhon, por exemplo, cita Marx, assinala que “o capital” é o mal a ser “suprimido” por ser ele a “forma de existência” objetiva da “propriedade privada”. Já para Fourier, é um “modo particular de trabalho”, o agrícola, enquanto trabalho dividido “e por isso não-livre — a fonte da nocividade da propriedade privada e da sua existência estranhada do homem.” Saint-Simon, por sua vez, diverge de Fourier apenas porque indica outra forma de trabalho, o “trabalho da indústria”, como matriz da degradação dos trabalhadores e, portanto, como o mal a ser combatido. 410 Na formulação de Marx, ambos não reconhecem que a fonte de depreciação da vida social é o trabalho estranhado, explorado, que se realiza em toda e qualquer forma de propriedade privada; não atentam para o fato de que o capital, o trabalho agrícola ou industrial etc., são apenas formas diferentes de existência da propriedade privada.

Marx sugere que o postulado da teoria dos comunistas rudes é o “aperfeiçoamento e a generalização” da condição do homem como trabalhador assalariado e explorado na propriedade privada. Estes “comunistas”, diz, querem que “a determinação de trabalhador

408 Cf.: MARX, Karl. Propriedade Privada e Comunismo. In: MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos.

Op. cit., p. 104-105. De acordo com Netto, nos Manuscritos de 1844, “Marx põe em causa justamente aquilo que a economia política não questiona: a propriedade privada — e nela localiza a raiz da alienação [do estranhamento]. Suprimir a propriedade privada para suprimir a alienação é instaurar o comunismo, garantia do humanismo real.” 408 (Cf.: NETTO, José Paulo. Introdução. In: MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. São Paulo:

Global, 1985, p. 22). Estas palavras de Netto resumem bem o objetivo de Marx na parte do Manuscrito em que ele trata do comunismo.

409 Esta adjetivação dos socialistas (Proudhon, Fourier, Saint-Simon, etc.) como utopistas é, na opinião de Buber,

injusta. (Cf. BUBER, Martin. O Socialismo Utópico. Tradução Pola Civelli. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005).

não seja supra-sumida [abolida], mas estendida a todos os homens”411. Eles não percebem que a existência da propriedade privada é a certeza da escravidão humana. Neste sentido, argumenta Marx, ainda que todos recebam um salário igual, como quer Proudhon, “uma elevação do salário (abstraindo de todas as outras dificuldades [...]) nada seria além de um melhor assalariamento do escravo e não teria conquistado nem ao trabalhador nem ao trabalho a sua dignidade e determinação humanas”412. Segundo Marx, para um comunista como Proudhon,

a comunidade é apenas uma comunidade do trabalho e da igualdade do salário que o capital comunitário, a comunidade enquanto o capitalista universal, paga. Ambos os lados da relação estão elevados a uma universalidade representada, o trabalho como a determinação na qual cada um está posto, o capital enquanto a universalidade reconhecida e poder da comunidade. 413

Conforme Marx, o “comunismo rude”, ingênuo, é a não-percepção do fato notório de que a fonte primeira do estranhamento do homem não é o capital, o dinheiro, uma forma específica de trabalho etc., mas sim todo e qualquer modo de trabalho imposto pelos “donos” dos meios de produção e que, portanto, o fim do trabalho como atividade produtora da desagregação dos indivíduos só virá com a extinção da propriedade privada burguesa. A despeito disso, “o comunismo rude” sonha com uma propriedade privada universal como expressão do bem, que por isso mesmo se opõe à propriedade privada burguesa como manifestação do mal. A forma de propriedade burguesa, contudo, não é incomodada pela crítica dos comunistas rudes. Na medida em que esse comunismo não questiona a propriedade privada burguesa, admite-a como mediadora das relações humanas, não se insurge contra as reais condições dos antagonismos entre os homens. Seguindo por este caminho, “o comunismo rude é apenas uma forma fenomênica da infâmia da propriedade privada que quer se assentar como a coletividade positiva”414. Seu caráter acrítico esconde de seus adeptos a ideia de que a preservação de qualquer forma de propriedade privada implica a blindagem da verdadeira causa da desestruturação da sociedade. A elevação da propriedade privada à condição de propriedade privada universal, como pregam os comunistas rudes, determina a universalização das condições de degradação do humano. Enfim, paradoxalmente, o comunitarismo e o humanismo almejados pelo “comunismo rude” nascem das mesmas condições que separam e fazem com que os homens entrem em conflito, donde se conclui

411 Cf.: ibid., p. 103-104.

412 MARX, Karl. Trabalho Estranhado e Propriedade Privada. In: MARX, Karl. Manuscritos Econômico-

Filosóficos. Op. cit., p. 88.

413 MARX, Karl. Propriedade Privada e Comunismo. In: MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Op.

cit., p. 104.

que, para Marx, tal comunismo está longe de ser a defesa da liberdade humana e da igualdade social necessárias às formas de emancipação e democracia por ele advogadas.

Em oposição ao “comunismo rude”, Marx propõe o “comunismo real”. Esta forma de comunismo proclama a abolição da propriedade privada como requisito da

[...] apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem. É o retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano. Este comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira dissolução do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução do conflito entre existência e essência, [...] entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução. O movimento total da história é [...] o ato de nascimento da sua [do comunismo] existência empírica. 415 Portanto, a

sociedade [comunista] é a unidade essencial completada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito. 416

A essência do “comunismo real”, diz Marx, é o humanismo-naturalista: a reconciliação homem/natureza. 417 Esta reconciliação significa restabelecer ao homem o direito de ele trabalhar livre e conscientemente, física e intelectualmente, para construir a sociedade. Outro ponto a destacar é o fato de Marx asseverar que o “comunismo real” é a plenitude do curso da “história”. Por essa razão, a teoria do “comunismo real” aparenta ter, nos Manuscritos de 1844, traços de um paradoxo. Por um lado, ela afirma o caráter escatológico do comunismo, ou seja, o advento da sociedade comunista como realização da história; por outro lado, ela se mostra aberta ao asseverar que o comunismo não é o fim último da evolução humana. Podemos melhor registrar o suposto paradoxo no seguinte texto de Marx.

O comunismo é a posição como negação da negação, e por isso mesmo o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico. O comunismo é a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo, mas o comunismo não é, como tal, o termo do desenvolvimento humano — a figura da sociedade humana. 418

O hipotético enigma dessa frase desaparece quando consideramos o método dialético marxiano. 419 O comunismo é “negação da negação”, ou seja: é a negação ou superação do

415 Ibid., p. 105. 416 Ibid., p. 107.

417 Segundo Fromm: “ao contrário de Hegel, Marx estuda o homem e a história partindo do homem real e das

condições econômicas e sociais em que ele tem de viver, e não primordialmente das ideias dele. Marx achava-se tão afastado do materialismo burguês quanto do idealismo hegeliano — daí poder dizer, acertadamente, não ser a sua filosofia nem idealismo nem materialismo, porém, uma sintese: humanismo e naturalismo.” (FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. Op. cit., p. 22).

418 MARX, Karl. Propriedade Privada e Comunismo. In: MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Op.

cit., p. 114.

419 Sobre a dialética de Hegel, Weber diz: “o movimento dialético requer necessidade e contingência como

momentos constitutivos, caso contrário o processo pararia.” (WEBER, Tadeu. Hegel: Liberdade, estado e história. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 29. Confira também: p. 37 e 40). Ora, é certo que Marx tomou emprestado o

período socialista que, por sua vez, é a negação da época capitalista. A negação como superação da fase socialista é o caminho para o comunismo, e este é condição necessária à emancipação humana. Se, contudo, o comunismo, embora necessário, não é a expressão acabada do progresso dos homens vivendo em sociedade, isto é assim porque o conteúdo da sociedade comunista e da emancipação humana são construtos histórico-dialéticos. Em razão disso, pode-se até elaborar uma teoria do comunismo que apresente os caracteres gerais de uma sociedade comunista, mas não é possível definir os detalhes de seu funcionamento e tampouco afirmá-la como estádio superior e final da vida humana na Terra. Marx, contudo, crê que o fato de se apoiar fortemente, quando da elaboração de suas teorias, em pressupostos materiais, lhe permite previsões mais precisas. Ele não abandona a convicção de que importam o homem real e as condições materiais em que ele vive; que, quando estas são depreciativas do humano, devem ser extintas. Assim, à medida que Marx se sustenta em pressupostos materialistas, qualquer resquício escatológico da sua concepção de “comunismo real” é dissolvido. Guiado por pressupostos materialistas, reais, Marx indica a propriedade privada como fonte dos conflitos entre os homens.

A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto somente é o nosso [objeto] se o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado. [...] [De maneira que] o lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a ser ocupado [...] pelo sentido do ter. 420

É por essa razão que Marx conclui que “a supra-sunção [extinção] da propriedade privada é a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos”421 e o subsequente estabelecimento de condições salutares de sociabilidade. Afinal, expressa Marx,

o indivíduo é o [um] ser social. Sua manifestação de vida — mesmo que ela não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros — é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica [social] do homem não são diversas. 422

Consoante Marx, a harmonia do homem com o homem, a unidade do homem com a natureza, eis a condição humana no “comunismo real”. Esse é a posição crítico-prática dos indivíduos que reconhecem ser necessário abolir a propriedade privada burguesa, o que é, por um lado, o fim da sociedade burguesa e do Estado como seu instrumento político e coercitivo Hegel” e “coloca-la sobre os pés”, isto é, fazer do “real” (material) a sua base. (Cf.: MARX, Karl. El Capital: Crítica de la Economia Política. Op. cit., p. 19-20); todavia, Marx manteve a ideia do movimento como motor da dialética e da compreensão da história. E exatamente porque dialética e história são movimentos, não se pode afirmar que o comunismo é a fase final do desenvolvimento humano.

420 MARX, Karl. Propriedade Privada e Comunismo. In: MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Op.

cit., p. 108.

421 Ibid., p. 109. 422 Ibid., p. 107.

e, por outro, o nascimento das condições materiais da sociedade comunista, ou seja, da sociedade em que os homens são efetivamente autônomos. O “comunismo real” é, enfim, para Marx, a consolidação do indivíduo como ser social livre e consciente. Assim, diz Marx, quando integro uma sociedade, “o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência de eu como ser social”423. Cada forma de o homem se relacionar com seus pares e com a natureza, seja material ou intelectualmente falando, deve sempre estar a serviço da sociabilidade humana.

No documento Emancipação e democracia em Marx (páginas 138-142)