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3. A questão da origem do sujeito

3.1 O conceito de forma-sujeito

Se consideramos que a constituição de um embrião/feto/recém-nascido em sujeito não prescinde do desejo do outro (da mãe, do pai, do grupo social), o estatuto da mulher enquanto sujeito-outro implicado na questão tem centralidade e é pelo conceito de forma- sujeito que o pensamos.

Recorrendo a Haroche (1992), partimos da etimologia que apresenta como primeiro sentido de “sujeito”, no século XII, o significado “submetido à autoridade soberana”, sendo que as palavras derivadas “assujeitar” e “assujeitamento” aparecem no século XV; a partir do século XVI, o sentido passa ser “pessoa que é motivo de algo, pessoa considerada em suas aptidões”, observando-se com isso a ambiguidade que recobre o termo, isto é, o sujeito é, ao mesmo tempo, submisso e livre. Esse deslize no sentido se relaciona ao fato de que, nas sociedades capitalistas ocidentais, primeiro o sujeito é determinado pela ordem religiosa e posteriormente pela ordem jurídica. Esse caráter histórico que recobre as formas de existência dos sujeitos é explicado por Althusser a partir do conceito de forma-sujeito. Segundo o autor:

Que os indivíduos humanos, isto é, sociais, sejam ‘ativos’ na história como ‘agentes’ das diferentes práticas sociais [...] é um fato. Mas considerados como ‘agentes’, os indivíduos humanos não são sujeitos ‘livres’ [...] no sentido filosófico desse termo. Eles agem em e sob as determinações das ‘formas de existência’ histórica das relações sociais [...] A forma sujeito é [...] a forma de existência histórica de todo indivíduo, agente das práticas sociais: as relações sociais [...] compreendem necessariamente, como parte ‘integrante’, ‘as relações sociais [jurídico] ideológicas’, que, para ‘funcionar’, impõem a todo indivíduo – agente – a forma de ‘sujeito’. (ALTHUSSER apud HAROCHE 1992, p.177)

A operação que constitui indivíduos em sujeitos é sintetizada na tese “a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” (ALTHUSSER, 1970, p. 94) e, por sua vez, coroada pelo

conceito de assujeitamento, entendido como uma ilusão de liberdade do sujeito mesmo quando este se submete. Dessa forma, a partir da noção de forma-sujeito como representação da forma de existência histórica de todo indivíduo, Haroche compreende que não há caráter invariável e homogêneo da noção de sujeito e das formas de expressão da subjetividade, mas sim determinações históricas. Assim, temos na Idade Média a forma sujeito religioso, passivo frente às determinações da ordem religiosa e, a partir da Idade Moderna, a forma sujeito-de- direito, “livre”, marcado pela determinação da ordem jurídica (1992, p. 178). Cabe esclarecer, como faz a autora recorrendo a Miaille, que a mudança de sujeito religioso para sujeito-de- direito não implica em uma espécie de progresso, ela indica apenas que “o modo de produção da vida social mudou... Não é ‘natural’ que todos os homens sejam sujeitos-de-direito. Isto é efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista” (1992, p. 179).

É, portanto, a partir da forma sujeito-de-direito que se deve pensar a designação mulher. Voltando à tese da interpelação formulada por Althusser, é valido esclarecer que ela é utilizada para explicar a proposição de que “só existe ideologia pelo sujeito e para sujeitos” (ALTHUSSER, 1970, p. 93), ou seja, a ideologia só é possível a partir do funcionamento da categoria sujeito. Segundo o autor, a categoria de sujeito é uma evidência primeira e este fato não constitui problema; assim, somos todos sujeitos livres, morais e isso é um efeito ideológico. A evidência da existência do sujeito é comparada à evidência do sentido – evidência de transparência da linguagem – e esse é justamente o ponto destacado por Pêcheux (2014, p.139) como determinante para se considerar como necessária a formulação de uma teoria materialista do discurso.

Pêcheux avança em sua tese sobre o sujeito do discurso acrescentando o conceito de efeito de pré-construído

como uma modalidade discursiva da discrepância pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito... ao mesmo tempo em que é “sempre-já sujeito”, destacando que essa discrepância (entre a estranheza familiar desse fora situado antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito identificável, responsável, que dá conta de seus atos) funciona “por contradição” (Ibidem, p. 142).

Essa forma de assujeitamento, forma plenamente visível da autonomia, apaga o fato de que o sujeito é resultado deste processo de interpelação-identificação que produz a forma sujeito-de-direito. É esta, por sua vez, que funciona nas estruturas utilizadas pelas leis jurídicas “aquele que causar um dano...”, conforme destacado por Pêcheux (2014, p. 145)

Para o autor, é a ideologia que fornece as evidências, marcadas no discurso pela constatação e pela norma identificadora tal como no exemplo: “um soldado francês não recua” que significa, portanto, “se você é um verdadeiro soldado francês, o que, de fato, você

é, então você não pode/deve recuar” (Ibidem p. 146). Da mesma forma, é possível fazer a seguinte associação: “uma mulher/mãe não aborta/mata seus filhos”, o que significa, se você é uma verdadeira mãe/mulher, então você não pode/deve matar seus filhos/praticar um aborto. Conforme explica Pêcheux,

evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’ aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (Ibidem).

Resumindo o que foi dito até agora, é pelo conceito de forma-sujeito que Althusser e Pêcheux buscaram denunciar o idealismo que atua na noção de sujeito, observando, como explicita Haroche (1992, p.199), a ilusão de autonomia que lhe é classicamente reconhecida.

Frente ao exposto, como pensar a questão do sujeito mulher que não funciona sob a evidência de que toda gravidez ou todo nascimento é um acontecimento feliz? O que dizer então da não-espera pela criança implicada no desejo pelo aborto? O assujeitamento não deixa de funcionar, mas o não-desejo pelo filho leva à não constituição desse outro sujeito e à reivindicação do aborto como um direito.

No capítulo seguinte, buscaremos mostrar como se constitui esse sujeito mulher que quer poder fazer um aborto sem ser criminalizada frente à atribuição ao feto de um estatuto de sujeito autônomo, de direito, como reflexo de leis naturais ou desígnios divinos, que não leva em conta o processo simbólico que o constitui; que sentidos são mobilizados nos argumentos favoráveis e contrários à descriminalização e como é significado esse suposto sujeito embrião/feto cuja (expectativa de) vida é objeto de disputa no discurso.