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2. Disjunções na ordem de Vestfália: soberania, direito internacional e globalização No capítulo anterior, expôs-se um panorama histórico da sociedade internacional

3.1 O conceito de governança e sua genealogia

“Governança” é uma expressão de introdução relativamente recente no vocabulário de cientistas sociais, economistas e formuladores de políticas públicas, e seu uso é ainda pouco generalizado e bastante polissêmico. A expressão é de origem anglo-americana (governance), e não tem correspondente em outros idiomas. Em português a expressão correspondente a governance é “governança”, no Brasil, e “governação”, em Portugal. O francês também adaptou a expressão de modo literal, como gouvernance. Em países de língua hispânica até hoje não existe uma expressão equivalente, traduzindo-se, em geral, por “buen gobierno” ou “gobernabilidad”. Na Alemanha o termo aparece como sinônimo de “condução política” (politische Steuerung) (MAYNTZ, 1997).

Não há consenso entre acadêmicos sobre o que o termo deveria designar e os vários sentidos com que é encontrado na literatura estão associados a seus respectivos contextos de origem. Possui acepções diversas quando discutido por estudiosos de Relações Internacionais ou de Administração Pública, ou ainda de Administração de Empresas (nesse contexto designada de governança corporativa). Além disso, o conceito de governança passou por muitas e profundas transformações, à medida que o campo de debate se foi enriquecendo com novas contribuições teóricas e novos princípios normativos. Além disso, o termo pode assumir, dependendo do contexto, um significado analítico ou normativo, isto é, como boa governança. Sua elasticidade suscita críticas de alguns estudiosos, que questionam sua operacionalidade analítica, acusando-o de mero modismo intelectual.

Neste tópico, busca-se mapear os diversos significados com que esse termo aparece na literatura, aproveitando-se, inclusive, as contribuições dos críticos, a fim de construir uma definição com suficiente rigor analítico que a torne útil para a investigação.

O contexto no qual se desenvolveu o conceito de governança remonta às décadas de 1980 e 1990, e caracteriza-se pela discussão acerca do papel do Estado em economias de mercado, e, num plano mais abrangente, das relações entre a autoridade política e a sociedade civil, seja em países desenvolvidos, seja em países em desenvolvimento, seja ainda em países que apenas recentemente concluíram sua transição para economias de mercado, tais como os do leste europeu, seja, por fim, em países que passam por processos de reconstrução após conflitos ou guerras civis, como é o caso de alguns Estados africanos (SENARCLENS, 2001). Durante a década de 1980, as teorias econômicas neoclássicas predominaram largamente, tanto no debate acadêmico, quanto nos discursos dos líderes políticos ocidentais.

A culpa pelo baixo desempenho da economia mundial durante toda essa década foi atribuída ao mal funcionamento do setor público. O diagnóstico foi o de uma crise causada pelo mal funcionamento do Estado, que se desdobra em três aspectos, identificados por Bresser Pereira (1996): (1) crise fiscal, (2) crise do modo de intervenção do Estado na ordem econômica e social e (3) crise do modelo burocrático de administração pública. A indisciplina fiscal e orçamentária conduziu ao excessivo endividamento do Estado e, conseqüentemente, à perda da capacidade de investimento, bem como à perda do crédito público, resultando na crise da dívida dos países em desenvolvimento e do leste eurpeu, durante a década de 80, e a crises inflacionárias agudas. Economias fechadas e autárquicas que serviam de base para as políticas sociais amplas e para os subsídios e programas de transferência de renda dos Welfare States da Europa ocidental, para as políticas de substituição de importações dos Estados desenvolvimentistas na América Latina e para o dirigismo socialista no leste europeu deixaram de ser efetivas. A saída apontava para a redução do tamanho do setor público (rolling back the State), e para a devolução da regulação econômica aos mecanismos de mercado. O setor público deve reduzir-se ao estritamente necessário à manutenção da ordem e da segurança públicas, à garantia da propriedade e dos contratos e à proteção aos investimentos.

Como se pode perceber, a reflexão dedicada à governança assumiu, durante a década de 1980, um tom acentuadamente negativo, onde o foco era neutralizar a interferência nociva do Estado na atividade econômica e assegurar que a burocracia não prejudicasse a performance dos mercados. Assim, os princípios dessa “governança negativa”, por assim dizer, orientavam-se para tornar a administração do setor público mais parecida com a da iniciativa privada, em busca da eficiência numa época de escassez de recursos. Sendo a preocupação principal eliminar a hipertrofia do setor público, a boa governança era entendida como a governança mínima e tinha por objetivos: (1) aumento dos controles financeiros; (2) desenvolvimento de instrumentos de racionalização orçamentária, técnicas de avaliação de custos e controle orçamentário; (3) aumento da eficiência administrativa, entendida como maximização dos recursos no custeio de políticas; (4) estabelecimento de metas e gestão por desempenho; (5) administração orientada para o mercado; (6) redução do tamanho das burocracias (downsizing), com redução das instâncias, graus de hierarquia e pessoal (BENTO, 2003).

Durante esse período, portanto, o conceito de governança permaneceu associado à capacidade financeira e administrativa do Estado de tomar decisões e efetivar políticas, mantendo-se dentro dos limites da austeridade orçamentária e da responsabilidade fiscal. Essa

concepção de governança passou a integrar os programas de ajuste estrutural que constituem as “condicionalidades econômicas” de instituições internacionais de fomento e ajuda financeira, em especial do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BIRD), isto é, compromissos que os Estados assumem como condição para a concessão e continuidade de crédito e ajuda econômica, razão pela qual as reformas orientadas para a redução do setor público se disseminaram rapidamente, notadamente nos Estados economicamente fracos e endividados e, portanto, dependentes de ajuda externa e menos capazes de resistir à pressão internacional (BENTO, 2003).

A década de noventa, no entanto, assistiu à virada do pêndulo e ao renascimento das preocupações com a atividade do Estado como instituição essencial na promoção do desenvolvimento econômico, e da necessidade de uma governança em sentido forte. Diversas organizações internacionais passaram a adotar uma abordagem mais propositiva no que se refere ao papel das estruturas de governança na promoção do desenvolvimento.

Com efeito, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a definir governança como o exercício de autoridade política na gestão de recursos para o desenvolvimento econômico e social (OECD, 1993). No mesmo sentido, o FMI também formulou orientação no sentido de reconhecer a importância de bons mecanismos de governança para o crescimento econômico. Ao lado da liberação comercial, do câmbio e dos preços, as missões técnicas do Fundo passaram a assistir os países membros no fortalecimento de sua capacidade de desenhar e implementar políticas consistentes (IMF, 1997).

O significado atribuído à boa governança ganha, assim, novos aspectos. O discurso sobre boa governança nas organizações intenacionais voltadas para o desenvolvimento afasta- se de sua ênfase inicial no desmantelamento do Estado (ALCÁNTARA, 1998). Em contraste com os programas de liberalização econômica da década de 80, os programas de ajuste estrutural da década de 90 destacam a necessidade de liderança política e capacidade gerencial do setor público, bem como de instituições democráticas e transparentes, de proteção aos direitos fundamentais, de um Estado de Direito que assegure o império da lei e a despersonalização do poder político, de acesso à justiça e de liberdades básicas (SENARCLENS, 2001). Não se trata agora de reduzir o Estado, mas de reformá-lo, a fim de adaptá-lo às suas novas (mas não menores) funções e melhorar a sua performance. Isso inclui o aprofundamento da democracia e a valorização dos atores não-estatais em papéis mais ativos e criativos (STOKER, 1998). À saúde financeira e à eficiência da gestão dos recursos são incorporadas as dimensões de cidadania, participação da sociedade civil, descentralização e responsabilização (accountability) de políticos e burocratas perante a população,

transparência do Estado, ética no serviço público, compromisso com a res publica e, muito particularmente, mecanismos de combate à corrupção. Outros objetivos são integrados à agenda estatal, para além da liberação comercial, ajuste fiscal e privatização, incluindo investimentos em educação, infra-estrutura e desenvolvimento tecnológico, proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos (COSTA, 1998; VILAS, 2000; STIGLITZ, 1998).

No entanto, organizações internacionais voltadas para a promoção do desenvolvimento, tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), não possuem competência para interferir em questões políticas internas. Com efeito, seus estatutos contêm, freqüentemente, proibição expressa nesse sentido. Desse modo, em seus relatórios e recomendações, estas organizações buscavam concentrar-se exclusivamente sobre as variáveis econômicas do desenvolvimento, evitando manifestar preferências sobre um determinado conjunto de instituições políticas (ALCÁNTARA, 1998). No entanto, semelhante abordagem não demorou a degenerar no economicismo. O conceito de governança permitiu a essas organizações enfrentar a relação entre instituições públicas e privadas na promoção do desenvolvimento.

De fato, o FMI, embora reconheça a dificuldade de separar aspectos econômicos de políticos, preocupa-se em delimitar o escopo de sua atuação aos aspectos mais propriamente econômicos da governança, em particular o gerenciamento de recursos públicos e o ambiente regulatório da atividade econômica privada. A linguagem proporcionada pela governança permite aos técnicos do Fundo avaliar a capacidade de um Estado de formular e implementar políticas econômicas adequadas, sem julgar a natureza do seu regime político ou das suas instituições internas ou sua política externa, nem tampouco influenciar a orientação ideológica ou comportamento político do governo (IMF, 1997).

Ao falar de “boa governança”, em vez de falar em termos superioridade de um dado conjunto de instituições políticas e administrativas, as agências internacionais de fomento puderam abordar temas sensíveis, de indisfarçável conteúdo político, sob uma linguagem aparentemente inofensiva e ideologicamente neutra, sobretudo de elevado nível técnico, afastando, desse modo, acusações de interferência em assuntos internos dos Estados (ALCÁNTARA, 1998).

Essa nova linguagem do Banco Mundial consolida-se no Relatório de Desenvolvimento Mundial de 1997, intitulado “O Estado em um Mundo em Mudança” (“The State in a Changing World”). Todavia, o Relatório não faz o pêndulo voltar totalmente, de modo que preserva o entendimento de que as políticas que fazem do Estado o promotor direto

do desenvolvimento, a velha social-democracia e o Estado desenvolvimentista, não são mais praticáveis e reitera a visão de que Estados hipertrofiados, seja no mundo desenvolvido, seja nos países em desenvolvimento, encontram-se em crise fiscal, assim como fracassaram os dirigismos econômicos e os sistemas de governança de comando-e-controle típicos do leste europeu e da antiga União Soviética.

No entanto, o Banco Mundial reconhece, a partir de 1997, dois fatos novos que exigem uma reflexão mais propositiva acerca o papel do Estado e da governança. Em primeiro lugar, os decepcionantes resultados das reformas orientadas para o mercado praticadas durante as décadas de 1980 e 1990, especialmente quando comparados com o impressionante desempenho dos países do leste asiático – em particular a Coréia do Sul e Taiwan – cuja estratégia de desenvolvimento baseava-se no princípio oposto, de que o Estado tem uma atuação importante no incentivo ao setor produtivo. Em segundo lugar, reconhece que a ausência de um Estado forte e efetivo pode levar a colapsos na estrutura de governança e, no limite, a guerras civis, como nos casos da Libéria, de Ruanda e da Somália, com severas conseqüências humanitárias (WORLD BANK, 1997; ALCÁNTARA, 1998; STOKER, 1998). Esses dois fatores provam, na visão do BIRD, que um Estado efetivo não é um luxo, mas uma necessidade fundamental. Sem um Estado capaz de providenciar serviços essenciais, além de normas e instituições que permitam aos mercados funcionarem e prosperarem, o desenvolvimento econômico e social não é possível. Assim, Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial de 1997 é dedicado ao papel e à efetividade da governança estatal: o que o Estado deve fazer e como desempenhar melhor o seu papel em um mundo que se transforma rapidamente, em virtude da globalização, tornando-se mais complexo e mais dinâmico.

O Banco Mundial define governança de forma mais ampla, como os modos (processos, tradições e instituições) pelos quais a autoridade é exercida em uma dada sociedade. Compreende três aspectos distintos: (1) a forma do regime político; (2) os processos mediante os quais o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país, a serviço do desenvolvimento; (3) capacidade governamental de desenhar fórmulas e implementar políticas e de desempenhar funções (WORLD BANK, 1999). Nessa definição, os aspectos políticos da governança ganham especial relevo, conforme indica o aspecto (1). A forma como governos são selecionados, monitorados e substituídos em processos pacíficos e o respeito de cidadãos e autoridades públicas pelas instituições é um fator de singular importância no desenvolvimento durável de uma sociedade. As crises de governança na África, que freqüentemente conduzem a guerras civis, derivam, em parte, da fragilidade desse processo.

O intento inicial de separar os aspecto da eficiência econômica dos demais aspectos de cunho político na avaliação de sistemas de governança revelou-se ingênuo teoricamente e inaplicável na prática (PAGDEN, 1998). Essa constatação levou a uma melhor compreensão da realidade complexa da governança em sociedades modernas. A utilização da autoridade política e dos recursos da sociedade na gestão saudável do desenvolvimento nacional engloba uma quantidade formidável de requisitos institucionais.

Desde então o Banco Mundial abandonou, no seu discurso sobre boa governança, sua pretensão de neutralidade política, imposta por seu estatuto, e passou a manifestar progressivo interesse pelas condições políticas e institucionais do desenvolvimento, por exemplo, a importância da legitimidade política, ou governabilidade, o que implica mecanismos de representação de interesses, participação da população e prestação de contas de políticos e burocratas, sem o que as reformas institucionais necessárias ao desenvolvimento não podem ser efetivadas ou consolidadas, e correm o risco de retrocesso (SENARCLENS, 2001). Às autoridades públicas compete criar o ambiente institucional que permita aos atores econômicos explorarem oportunidades, o que inclui o respeito pelo Estado de Direito, que inclui não apenas a existência de um ordenamento jurídico estável, previsível e confiável, mas também o respeito às liberdades fundamentais, aos Direitos Humanos e ao meio-ambiente. O desenvolvimento compreende também uma sadia gestão dos assuntos públicos, o investimento em educação, saúde e pesquisa científica. A instituição se mostra igualmente favorável ao fortalecimento da sociedade civil a às parcerias entre Estado e ONGs (SENARCLENS, 2001).

No entanto, o Banco Mundial conserva uma concepção instrumental de governança. Mesmo incorporando a necessidade de construir instituições sólidas, aqui compreendida a dimensão cívico-política, elas são valorizadas enquanto condicionalidades econômicas, ou seja, na medida em que tornam os mercados mais eficientes, favorecem o investimento, tornam mais estável e confiável o ambiente de negócios, estimulando, assim, o desenvolvimento econômico. Em contraste, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) trabalha com uma noção mais abrangente de desenvolvimento humano, para o qual a natureza das instituições civis e políticas não são instrumentais, mas constituem dimensões substantivas desse conceito (UNDP, 1997a; UNDP, 1997b). Desse modo, o PNUD privilegia menos em seus projetos os aspectos técnicos da gestão pública e foca-se mais sobre programas em áreas sensíveis tais como Direitos Humanos, acesso à justiça, reforma do Poder Judiciário e combate à corrupção.

Para o PNUD, governança está relacionada ao modo pelo qual as coletividades administram seus problemas comuns, em todos os níveis. Compreende mecanismos, processos e instituições pelos quais cidadãos e grupos articulam seus interesses, exercem direitos, definem obrigações e medeiam suas diferenças. Governança, para o PNUD, possui três “pernas”, ou três aspectos: econômico, político e administrativo. Governança econômica inclui processos de tomada de decisão que afetam as atividades econômicas de um país e suas relações com outras economias; governança política compreende os processos de tomada de decisão em que se formulam políticas públicas; governança administrativa diz respeito às atividades de implementação dessas políticas (UNDP, 1997a; UNDP, 1997b).

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