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Parte III Enquadramento Teórico

Capítulo 1: O Conceito de Peregrinação

O acto de peregrinar e as peregrinações ocorrem desde os tempos mais remotos. Trata-se de um fenómeno alargado e comum a muitas religiões: babilónios, maias, astecas, hebreus, egípcios, gregos, romanos, hindus, budistas, muçulmanos e católicos. Muitos historiadores postulam a sua origem nos monumentos megalíticos, e estudos etnográficos demonstram a ocorrência de peregrinações entre sociedades primitivas35. As primeiras peregrinações do Cristianismo ganham expressão no século IV, a partir de 313. Com o reconhecimento do cristianismo por Constantino (religio licita), a prática prolifera, em especial em direcção a Jerusalém e Roma.

A palavra Peregrinação provém do Latim per agros, literalmente «pelo campo», pois era bastante comum cortar caminho pelos campos para evitar encontros indesejáveis com bandidos e salteadores. Peregrino (peregrinus) era um estrangeiro em Roma, alguém que não tinha direitos de cidadania, ou aquele que viaja no estrangeiro, que viaja pelos campos. O termo ganha uma conotação religiosa no século XII, e passa a ser usado para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa. Hoje a palavra significa uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião, tendo há muito deixado de denominar exclusivamente viagens católicas e cristãs.

Embora exista na literatura antropológica uma relativa lacuna no que respeita a este contexto específico, a temática das peregrinações tem sido alvo de atenção por parte de alguns teóricos da disciplina, e o trabalho de Victor Turner36 a este respeito é

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No sentido que é atribuído à expressão por Evans-Pritchard: «sociedades pequenas, quer em número de indivíduos, quer em território, com contactos sociais limitados» (1985: 16)

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The Forest of Symbols (1967), The Ritual Process: Structure and Anti-Structure (1969) e Image and Pilgrimage in a Christian Culture: Anthropological Perspectives (1978).

incontornável. O autor salienta que as peregrinações cristãs marcam a passagem de um estado de pecado a um estado de graça, podendo por isso ser entendidas como um rito de passagem. Na sua teorização da estrutura tripartida proposta por Van Gennep37 os ritos de passagem seriam compostos por uma fase pré-liminar de separação ritual do indivíduo da sociedade de pertença, uma fase liminar, onde aquele se encontraria num espaço entre classificações e uma última fase pós-liminar de reagregação (Turner 2008:94)38.

O enquadramento do Caminho de Santiago em tipologias de peregrinação propostas por vários autores levanta algumas questões. Para Jackowski (1987:422) as peregrinações dividem-se em locais, regionais, nacionais e internacionais. Turner (1973:202) também usa a distinção geográfica: entre aldeias, regional, nacional e internacional. Geograficamente, o Caminho de Santiago seria uma peregrinação internacional. Turner oferece ainda uma outra tipologia de tipos de peregrinações, dividindo-as em arcaicas, prototípicas, medievais e modernas. Nesta tipologia a inclusão numa categoria é mais complicada. Por um lado, é prototípica porque é regulamentada por uma religião histórica ou por agentes seus, mas, por outro, é arcaica por apresentar «traços de sincretismo com religiões, crenças e símbolos mais antigos» (Turner 1978:18). Dentro das duas categorias apresentadas por Turner para a tradição cristã, o Caminho de Santiago seria historicamente medieval, mas a apropriação do caminho pelo movimento New Age é claramente moderna.

Este modelo de Turner foi criticado por muito autores. Michael Sallnow (1981), por exemplo, salienta que os tipos ideais turnerianos apresentam alternativas mutuamente exclusivas, quando, de facto, a realidade é composta por uma grande variedade de combinações de características que Turner afecta a vários deles. Alan Morinis (1992) propõe uma outra divisão em peregrinações: devocionais, normativas, obrigatórias, romagem e iniciadoras, mas, de novo, o universo em estudo não é homogéneo, e podemos encontrar peregrinos que se enquadrem em todas as categorias.

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Charles-Arnold Kurr van Gennep (1873-1957), antropólogo francês conhecido pelos seus trabalhos sobre ritos de passagem e folclore europeu.

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O autor salienta também as diferenças entre peregrinação e ritual, afirmando que as iniciações rituais são obrigatórias, colectivas e têm lugar num determinado tempo ritual e as peregrinações são voluntárias, individuais e podem ser levadas a cabo em qualquer altura.

Abandonando então a busca de uma tipologia que permita enquadrar com rigor este fenómeno tão complexo, seguimos J. Eade e M. Sallnow (1991) que propõem uma análise mais profunda dos agentes envolvidos na peregrinação, e advertem que o conjunto dos sujeitos rituais não deve ser encarado como uma massa homogénea. Olhando a peregrinação como um ritual e «o ritual como uma forma de comunicação que interliga sistemas simbólicos complexos permitindo à sociedade ou a grupos sociais concretos formular e intensificar certas mensagens» (López 1997:16), podemos observar mais atentamente os papéis dos diferentes agentes e protagonistas desta prática, e os significados que lhes atribuem.

Os usos dados pelos peregrinos e agentes da peregrinação aos próprios conceitos são também variados e devem ser entendidos de acordo com os significados são veiculados por quem os utiliza. Peregrinação e promessa têm significados diferentes para pessoas diferentes. Numa entrevista que realizei no Caminho Francês a um peregrino, a conotação religiosa das palavras peregrinação e promessa foi retirada pelo próprio interlocutor:

«Nasci na Argentina, trabalhei 10 anos em Palma de Maiorca, casei e agora sou espanhol. Juntei algum dinheiro para fazer a peregrinação, porque prometi aos meus avós vir a pé a Santiago, quando conseguisse a nacionalidade espanhola. Esta promessa, embora não tenha sido a Deus, dá- me alento para continuar, vou chegar e chegar como cidadão espanhol, isto para mim é uma grande vitória».

Convivem no Caminho de Santiago diferentes visões do mundo. Diferentes actores sociais atribuem significados diversos às mesmas coisas e esta peregrinação não é excepção. Os próprios conceitos utilizados para descrever a peregrinação possuem sentidos diferentes e são imbuídos de características diferentes de acordo com a perspectiva em que o interlocutor se insere. Assim, a forma como se deve peregrinar, o que é considerado um comportamento adequado ou impróprio, é diferente para um peregrino que partilhe a perspectiva católica ou a New Age.

Capítulo 2: Um Caminho, várias vozes.

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