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CAPÍTULO IV: RELAÇÕES ENTRE A LÍNGUA, O PENSAMENTO E A

4.1. O Conceito de Língua em Sapir

As concepções de Sapir acerca da língua são muitas e variadas, o que levou a um número bastante elevado de ocorrências em nosso levantamento. Selecionamos aqui as que consideramos mais significativas, para a tentativa de depreensão da concepção de Sapir acerca do ‘relativismo linguístico’. É certo que pelo contexto histórico no qual viveu, buscando concretizar o projeto de uma Linguística científica e autônoma, observaremos que Sapir ora fornecendo indicações sobre a língua cujo maior interessado é o linguista, analista que se debruça sobre as formas linguísticas, e em outros momentos, procurando ponderar sobre a língua em correlação com os demais atributos da vida humana. Nesta primeira seção procuramos isolar os casos que são de interesse exclusivo do linguista, ou seja, permita-lhe discorrer sobre seu objeto de

reflexão aos demais cientistas, ainda que na defesa de Sapir, a língua seja sempre um fato cultural, por um lado, e a dimensão exterior do pensamento, por outro, e interessando desta maneira à Antropologia e à Psicologia, igualmente.

4.1.1. ‘Língua/Linguagem’ (Language)

A língua é vista por Sapir, ao longo de sua carreira (abaixo, em 1911 e em 1933a) como a característica que diferencia os seres humanos dos demais animais, seja ela falada por um homem culto citadino europeu, seja por um silvícola selvagem da América ou Oceania. A existência da cultura, da língua e do pensamento convergidos no ser humano independe do avanço material de uma comunidade, e está presente em todos os povos:

Talvez nenhuma única característica tão marcante retire o homem do resto do mundo animal, como o dom da fala, que só ele possui. Nenhuma comunidade de seres humanos normais, seja o seu avanço cultural leve, ainda não foi encontrada, ou será sempre susceptível de ser encontrada, que não se comuniquem entre si por meio de um complexo sistema de símbolos sonoros, em outras palavras, que não fazer uso de uma língua falada definitivamente organizada. (Sapir 1911 [CW-ES- 1]: 45)84

O dom da palavra e uma linguagem bem ordenada são característicos de cada grupo conhecido de seres humanos. Nenhuma tribo nunca foi encontrada, que estivesse sem a língua, e todas as declarações ao contrário podem ser descartadas como mero folclore. (Sapir 1933a [SW-ES]: 7)85

O ser humano é o animal que possui o “dom da fala”, possibilitada pela capacidade de fazer uso de um “sistema complexo de símbolos sonoros”, isto é, “uma linguagem oral organizada”. Ou seja, a língua é uma capacidade universal dos seres

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Perhaps no single feature so markedly sets off man from the rest of the animal world as the gift of speech, which he alone possesses. No community of normal human beings, be their advance in culture ever so slight, has yet been found, or is ever likely to be found, who do not communicate among themselves by means of a complex system of sound symbols, in other words, who do not make use of a definitely organized spoken language.

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The gift of speech and a well ordered language are characteristic of every known group of human beings. No tribe has ever been found which is without language, and all statements to the contrary may be dismissed as mere folklore.

humanos, resultada da coexistência da cultura no âmago da sociedade, e da habilidade cognitiva individual dos seres humanos, para sua interação.

Podemos prosseguir o raciocínio do autor, e pensarmos que a língua é o meio pelo qual um indivíduo se transforma genuinamente em ser humano, pois é através dela que nos tornamos membros de uma comunidade, isto é, começamos a falar, e consequentemente, a compartilhar hábitos, valores e crenças que nos distinguirão dos demais membros de nossa espécie, e dos grupos destes membros. E não apenas nos tornarmos seres humanos, em termos de comportamento, pela linguagem, como também é por ela que nos tornamos membros de um grupo específico, dentro de nossa própria comunidade.

Nossa língua não só nos diferencia dos falantes de outras línguas como também nos diferencia dos falantes de nossa própria língua, pelo fato de fazermos parte de subgrupos, no interior de nosso próprio grupo. Para Sapir, a linguagem é a grande força de socialização e endoculturação:

A língua é uma grande força de socialização, provavelmente a maior que exista. Por esta razão tem-se em vista não apenas o fato óbvio de que as relações sociais significativas sejam quase impossíveis sem a língua, mas que o simples fato de a fala comum servir como um símbolo particularmente potente da solidariedade social daqueles que falam a língua. O significado psicológico desta vai muito além da associação de línguas particulares com nacionalidades, entidades políticas, ou menores grupos locais. Entre o dialeto reconhecido ou a linguagem como um todo e a fala individualizada de um determinado indivíduo encontra-se um tipo de unidade linguística que não é muitas vezes discutida pelo linguista, mas que é da maior importância para a Psicologia Social. Este é o subforma da língua que esta, atualmente, entre um grupo de pessoas que estão unidas por laços de interesse comum. [...]. Cada um deles tende a desenvolver peculiaridades de fala que têm a função simbólica, em alguma medida, de distinguir o subgrupo do grupo maior no qual seus membros possam ser também completamente absorvido. (Sapir 1933a [SW-ES]: 15)86

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Language is a great force of socialization, probably the greatest that exists. By this is meant not merely the obvious fact that significant social intercourse is hardly possible without language but that the mere fact of a common speech serves as a peculiarly potent symbol of the social solidarity of those who speak the language. The psychological significance of this goes far beyond the association of particular languages with nationalities, political entities, or smaller local groups. In between the recognized dialect or language as a whole and the individualized speech of a given individual lies a kind of linguistic unit which is not often discussed by the linguist but which is of the greatest importance to social psychology. This is the subform of language which is currently among a group of people who are held together by ties of common interest. […]. Each of these tends to develop peculiarities of speech which have the symbolic

A importância da linguagem não se restringe ao aspecto sociocultural da vida humana. É pela linguagem também que se percebe a individualidade de cada um dos seres humanos. Sapir leva-nos a perceber a variabilidade da linguagem no nível individual, denotando uma série de características que fazem com que nosso estilo de proferir enunciados seja exclusivo. Nosso estilo individual é gerado por diferenças nos diversos níveis linguísticos, variando fonético-fonologicamente [diferenças na fonação, entoação, e velocidade de fala], ou gramaticalmente [construção das sentenças, seleção lexical] e ainda em sua adequação ao momento de enunciação, variação esta construída na relação com outro o interlocutor:

Apesar do fato de a linguagem atuar como uma força de socialização e uniformização, ela é ao mesmo tempo o mais potente fator conhecido para o crescimento da individualidade. A qualidade fundamental da voz, os padrões fonéticos do discurso, a velocidade e suavidade relativa de articulação, o comprimento e a construção das frases, o caráter e o alcance do vocabulário, a consistência escolar das palavras usadas, a prontidão com que palavras respondem às exigências do ambiente social, em particular a adequação de sua língua para os hábitos linguísticos das pessoas abordadas - todos estes são tantos indicadores complexos da personalidade. (Sapir 1933a [SW-ES]: 17)87

A seu ver, é possível pensar desta maneira a língua, enquanto o elo entre a sociedade e o indivíduo, pelo fato de que a língua marca tanto nosso papel social dentro do grupo no qual vivemos, quanto nossos hábitos específicos e individuais, ao falar, como nossa voz e nosso estilo de proferir enunciados.

Tem-se, portanto, que pensar o ser humano é ora assentá-lo sobre suas semelhanças, ora sobre suas diferenças. Ao passo que somos plenamente capazes de reconhecer o que uma língua é, e se esta é a nossa língua, ou outra língua, se este indivíduo que a fala [=nossa mesma língua] pertence a nosso grupo, ou a outro, ao function of somehow distinguishing the group from the larger group into which its members might be too completely absorbed.

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In spite of the fact that language acts as a socializing and uniformizing force, it is at the same time the most potent single known factor for the growth of individuality. The fundamental quality of one’s voice, the phonetic patterns of speech, the speed and relative smoothness of articulation, the length and build of sentences, the character and range of the vocabulary, the scholastic consistency of the words used, the readiness with which words respond to the requirements of the social environment, in particular the suitability of one’s language to the language habits of the persons addressed – all these are so many complex indicators of the personality.

analisá-la concretamente, percebemos que as variações são tantas que nenhum ser humano fala da mesma maneira que os demais. Se inúmeras são suas diferenças, quando observada a manifestação concreta da linguagem, sua plenitude formal é o fator que nos leva ao reconhecimento e distinção da língua enquanto fato humano único, diferente das demais instituições sociais e/ou condutas individuais:

Se efetuarmos uma observação panorâmica sobre as línguas do mundo, descobriremos que há certas coisas que as caracterizam como um todo e que tendem a marcá-las um tanto separadamente das outras formas de comportamento cultural. Em primeiro lugar nós ficamos chocados com a integridade maravilhosa do desenvolvimento formal de toda e cada língua sobre a qual temos conhecimento. (Sapir 1927b [CW-ES-1]: 204)88.

A língua pode ser vista como uma semelhança entre todos os membros de nossa espécie, e assim, passível de ser contraposta a outros fenômenos de ordem psicossocial, relacionadas às demais condutas humanas. Mesmo com inúmeras diferenças nas numerosas línguas do mundo, é possível estudar suas características essenciais.

Assim, o estudo da Linguística é interessante por seu escopo se espraiar em uma problemática de ordem psicológica, e porque sua plenitude formal também nos habilita a verificar suas propriedades inerentes dissociadas das particularidades encontradas nas línguas naturais. Há um grupo de características que lhe são essenciais, cuja abstração é lícita ao analista:

É claro que se quisermos relacionar os problemas fundamentais da ciência linguística aos do comportamento humano em geral - em outras palavras, para a psicologia - temos que aprender a ver a língua como possuidora de algumas características essenciais, a parte daquelas de línguas particulares, às quais podemos estar familiarizados, por estarem enraizadas em algum solo geral de comportamento que dá origem a outras formas de expressões estritamente linguísticas. (Sapir 1927b [CW-ES-1]: 204).89

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If we take a bird’s-eye view of the languages of the world we find that there are certain things that characterize them as a whole and that tend to mark them off somewhat from other forms of cultural behavior. In the first place we are struck by the marvelous completeness of formal development of each and every language that we have knowledge of.

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It is clear that if we are ever to relate the fundamental problems of linguistic science to those of human behavior in general – in other words, to psychology – we must learn to see language as possessed of certain essential characteristics apart from those of particular languages that we may happen to be familiar

O problema, ao linguista, em se limitar ao estudo da forma linguística, para Sapir, é o fato de esta ser a resultante de complexas relações históricas, tanto de ordem interna, relacionadas apenas a mudanças estruturais nos diversos sistemas linguísticos, ou de ordem externa, ligadas assim à própria história dos agentes que falam estas línguas. Ao ponderar sobre o que é uma língua humana, o linguista deve sobrepassar, desta maneira, a forma linguística, centrando-se no fato da linguagem enquanto meio psicológico de expressão e comunicação, meio este constituído por um conjunto de relações complexas entre elementos da experiência, transmitidos na linguagem via símbolos linguísticos. É do interesse do analista, neste caso, o mapa da linguagem (‘ground plan’), comum à humanidade, e subjacente ao aspecto formal imediato, expresso nos enunciados concretos das línguas naturais.

Mesmo enquanto fato psicológico, Sapir não perde de vista que o objeto ‘língua’ se espraia também no universo das questões de ordem cultural, já que, a língua, a seu ver, é sempre essencialmente um fenômeno cultural e, portanto, não simplesmente um produto de ordem biológica. O dom da fala se manifesta primeiramente não porque estejamos fadados a falar, por conta de nossa genética, mas porque pertencemos a um grupo humano, e todos os grupos humanos possuem uma língua.

Em sua argumentação, assim explícito, a capacidade de falar é vista como adquirida culturalmente, dissociada, em um momento inicial, das funções instintivas, que são de natureza puramente orgânica, como começar a andar. Aprende-se a falar através da interação com os demais membros da sociedade, os outros seres humanos; locomover-se talvez independa deste estímulo:

Caminhar é um produto orgânico, uma função instintiva, (não, é claro, em si, um instinto); a fala é uma, função “cultural” não- instintiva, adquirida. (Sapir 1921: 2).90

Para colocá-lo de forma concisa, a caminhada é uma função, inerente, biológica do homem. Não tanto é a língua. É claro que é verdade que, em certo sentido, o indivíduo está predestinado a falar, mas que é inteiramente devido à circunstância de que ele nasce não apenas na natureza, mas no colo de uma sociedade with as rooted in some general soil of behavior that gives birth to other than strictly linguistic forms of expressions.

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Walking is an organic, an instinctive, function (not, of course, itself an instinct); speech is a non- instinctive, acquired, ‘cultural’ function

que está destinada, razoavelmente destinada, a conduzi-lo em suas tradições.

(Sapir 1921: 1)91.

É lógico que o autor defende ser necessária uma dotação corpórea que habilite a execução de sua fala. O argumento do autor, entretanto, vai em direção à insistência da retirada da sociedade da trajetória individual do ser: se lhe extraída, este jamais aprenderá a falar (Sapir 1921: 1).

No que se refira ao ser humano, se assim pudermos afirmar, Sapir reconhece haver pelo menos dois tipos de fenômenos: aqueles que são puramente biológicos, inatos, pois são ligados às funções orgânicas e independem da inserção do ser humano no universo cultural através de uma sociedade, tal como andar, respirar, alimentar-se, etc.; e aqueles que são essencialmente culturais, ou seja, são aprendidos dentro de uma sociedade específica, sendo um hábito gerado pelo curso deste agrupamento humano ao longo de sua história particular, e que não será aprendido caso inexista o convívio com tal grupo, ou será diferente se inserido em outro grupo, tal como falar, cultivar alimentos [e quais alimentos], vincular-se a um conjunto de crenças religiosas, etc.

O raciocínio sobre a caracterização dos fenômenos, se biológico ou cultural, desdobra-se em direção à função de cada ação humana em relação a seu próprio corpo, já que em princípio, as funções biológicas estão atreladas à função primordial dos órgãos [sua fisiologia], e as funções culturais resultam de uma utilização secundária destes. Assim, o autor exemplifica que dobrar o joelho em um movimento, tal como andar ou pular, é biológico, mas dobrar o joelho em uma genuflexão para adorar um ente, como na religião, é cultural, pois é ensinado pela sociedade e não é a função primordial do órgão específico. E então, conclui Sapir, afirmar que a língua é um fato biológico, seria tão errôneo quanto afirmar que os joelhos surgiram no ser humano para realizar genuflexões, já que além desta ser aprendida socialmente, não possui órgãos exclusivamente designados para o exercício de sua função. Os ‘assim chamados órgãos da fala’ (so-called organs of speech) desempenham primariamente funções biológicas, tal como deglutir e/ou respirar, e apenas devido à sua ociosidade na maior parte do tempo, em relação à deglutição, ou em consonância com seu funcionamento, tal como

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To put it concisely, walking is an inherent, biological function of man. Not so language. It is of course true that in a certain sense the individual is predestined to talk, but that is due entirely to the circumstance that he is born not merely in nature, but in the lap of a society that is certain, reasonably certain, to lead him to its traditions

com a respiração, é que a fala faz uso de tais órgãos. O uso fisiológico destes órgãos, em suas palavras, é “uma função sobreposta, ou, para ser mais preciso, um grupo de funções múltiplas” (Sapir 1921: 6)92. É relevante notar que em outro trabalho (cf. Sapir 1949 [1927]), o autor reconhece que funções inerentemente biológicas podem vir a ser até certo ponto modificadas pelos hábitos culturais, como sua exemplificação em relação à respiração procura evidenciar abaixo:

É verdade que há um grande número de funções orgânicas que são difíceis de pensarmos em termos sociais, mas acho que até aqui o ponto de vista social, muitas vezes pode ser aplicada com sucesso. Poucos estudantes sociais estão interessados, por exemplo, na maneira exata pela qual um determinado indivíduo respira. No entanto, não é de se duvidar que os nossos hábitos de respiração são, em grande parte, condicionados por fatores convencionalmente classificados como sociais. Há maneiras educadas e mal-educadas de respirar. Há atitudes especiais que parecem caracterizar as sociedades que, sem dúvida, condicionam os hábitos de respiração do indivíduo que compõem estas sociedades. [...]. Assim, a respiração regularizada do iogue hindu, a respiração suave de quem está na presença de um companheiro falecido recentemente colocado em um caixão de longe e cercado por todo o ritual de observâncias do funeral, o estilo da respiração que se aprende com uma cantora de ópera que dá aulas sobre o controle adequado da voz, são, todos e cada um deles, capazes de isolamento, como modos de socialização de conduta que têm um lugar definitivo na história da cultura humana [...]. (Sapir 1927d [1927]: 545-546)93

A inserção do ser humano no universo cultural é tamanha, que podemos observar então algumas correlações entre seus hábitos culturais e determinados aspectos de seu comportamento fisiológico, como a reconfiguração de sua respiração para propósitos específicos; no entanto, aqui somos forçados a refletir que Sapir não leva a

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an overlaid function, or, to be more precise, a group of overlaid functions

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It is true that there are a great many organismal functions that it is difficult to think in social terms, but I think that even here the social point of view may often be applied with success. Few social students are interested, for instance, in the exact manner a given individual breathes. Yet it is not to be doubted that our breathing habits are largely conditioned by factors conventionally classified as social. There are polite and impolite ways of breathing. There are special attitudes which seem to characterize societies that undoubtedly condition the breathing habits of the individual who make up these societies. […]. Thus, the regularized breathing of the Hindu Yogi, the subdued breathing of those who are in the presence of a recently deceased companion laid away in a coffin and surrounded by all the ritual of funeral observances, the style of breathing which one learns from an operatic singer who gives lessons on the proper control of the voice, are, each and every one of them, capable of isolation as socialized modes of conduct that have a definite place in the history of human culture […].

ideia ao extremo, afirmando que as funções fisiológicas podem ser totalmente modificadas pela cultura. Por exemplo, o modo como o sangue circula em nosso corpo, o funcionamento de nossos rins, fígado ou estômago, o processamento de nossa visão, dentre inúmeros outros casos, ocorreriam [e de fato ocorrem] sem a presença da cultura. O argumento se restringe ao fato de que como possuímos cultura, podemos até certo

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