• Nenhum resultado encontrado

O conflito e as intempéries do contratualismo

No documento PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (páginas 39-43)

2 O CONFLITO COMO EVENTO HUMANO FISIOLÓGICO

2.4 O conflito e as intempéries do contratualismo

O contrato social, segundo Dahrendorf (1992), não é um esqueleto imutável do corpo político, mas sim escrito e reescrito por cada geração, passível de constante aperfeiçoamento, a fim de que o poder possa ser equilibrado e as desigualdades possam ser minimizadas, o que contribui para conquista da liberdade. Afinal, sociedade e poder são indissociáveis, na medida em que, onde há sociedade há poder43.

43 Na verdade, fica patenteado desde o berço da civilização, que tanto o poder político como as leis que regem as relações sociais, são forjados pelo espírito objetivo humano – medida de todas as coisas – (e não por Deus ou seus representantes na Terra), que se corporifica, com o passar dos tempos na figura do cidadão (ser que vive nos limites territoriais da cidade/Estado e, dentro dele, tem direitos e obrigações). De qualquer sorte, o ordenamento jurídico, enquanto somatório de tradições, usos e costumes, arbítrio deste ou daquele tirano, exprimirá uma certa síntese valorativa, condicionamento de todo o Direito, que, por isto mesmo, se apresenta como variável no espaço e no

Os filósofos políticos clássicos, abordados no subitem anterior, preocupavam-se, sobretudo com a legitimidade do Estado. Nesse sentido, Santos (2002), no trecho abaixo transcrito, resume o intento comum de Hobbes, Locke e Rousseau, e chama atenção para a utilização dos argumentos desses mesmos autores como matriz ideológica de lutas sociais e revoluções.

a ideia do contrato social e seus princípios reguladores são o fundamento ideológico e político da contratualidade real que organiza a sociabilidade e a política nas sociedades modernas [...]. O contrato social visa criar um paradigma sociopolítico que produz de maneira normal, constante e consistente quatro bens públicos: legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança e identidade coletiva. O ideal é que estes bens estejam ao alcance de todos e sejam passíveis de concretização em conjunto, o que vem motivando lutas sociais e revoluções ao longo da história (SANTOS, 2002, p. 11).

Na constante busca de legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança e identidade coletiva operam-se as mudanças sociais, o que vem transformando os padrões de desigualdade e os conflitos. As diferenças políticas qualitativas entre os homens, segundo Dahrendorf (1992), tornaram-se diferenças econômicas quantitativas. A cidadania44 mudou a qualidade do conflito social moderno.

O conflito social moderno diz respeito ao ataque às desigualdades que restringem a participação cívica integral por meios políticos, econômicos ou sociais, e ao estabelecimento de prerrogativas que constituam um status rico e integral de cidadania. (DAHRENDORF, 1992, p. 52).

Como visto anteriormente, nas sociedades monárquicas havia uma relação vertical do soberano para com seus súditos, era facultado a uma minoria muito específica estabelecer a lei e regular a situação da maioria. A história mostra que, gradualmente, a verticalidade foi sendo substituída pela horizontalidade das relações, na medida em que se construíram oportunidades para que um número

tempo, refletindo sempre o ethos e político vigente em cada polis. (LEAL, 2006, p. 16).

44 Adota-se o termo cidadania na concepção de Thomas H. Marshall, para quem “cidadania é uma situação social que inclui três tipos distintos de direitos, especialmente em relação ao Estado: 1) direitos civis, que incluem o direito de livre expressão, de ser informado sobre o que está acontecendo, de reunir-se, organizar-se, locomover-se sem restrição e receber igual tratamento perante a lei; 2)direitos políticos, que incluem o direito de votar e disputar cargos em eleições livres; 3) direitos socioeconômicos, que incluem o direito ao bem-estar e à segurança social, a sindicalizar-se e participar de negociações coletivas com empregadores e mesmo o de ter um emprego”. (JOHNSON, 1997, p. 34).

maior de pessoas participasse na elaboração das leis. No entanto, inicialmente a administração do Estado era extremamente restrita.

Um grau de democracia era a característica de certas ilhas de associação nos oceanos da dominação. Muitas vezes elas eram coextensivas com cidades, desde a polis grega até o burgo medieval. A ascensão da modernidade pode ser descrita também como a disseminação gradual de tais experiências. À medida que o poder de poucos foi colocado sob o controle de mais pessoas, e, finalmente, de muitas, as desigualdades perderam seu caráter inexorável e determinista, e as posições sociais tornaram-se, pelo menos em princípio, alcançáveis, como também passíveis de serem deixadas de lado. A estrada do status para o contrato foi também a do status para a classe. (DAHRENDORF, 1992, p. 42).

A constante repactuação do contrato social tem caráter transformador, pois é capaz de metamorfosear desigualdades em avanços, fomentada pelo conflito. Dessa forma, a administração dos conflitos transpassou épocas tempestuosas do contratualismo, como nos casos de lutas sociais e revoluções, acompanhou processos históricos e sofreu alterações substanciais, desde o absolutismo monárquico, em que prevalecia a vontade do soberano.

No centro da busca da nova formatação do contrato social encontra-se, no Estado contemporâneo, o Poder Judiciário.

Para que se possam compreender os multifatores do protagonismo do judiciário, há que se diferenciar “estado polêmico” e “estado agonal”. Segundo Freund (1995, p. 72), no estado “polêmico” a hostilidade intencional, independentemente da sua origem, impõe sua presença constante. Pode ser transitório, porém, alcança rapidamente seu desiderato anárquico, até que uma das partes triunfe sobre a outra. O estado polêmico supõe conflitos abertos, bem como provocações e intimidações que podem evoluir para a violência física, dependendo das circunstâncias e causas que deram origem aos conflitos, pois os opositores comportam-se como inimigos.

O “estado agonal” inaugura uma ordem reconhecida por todos em que as pessoas não estão sob o jugo discricionário do vencedor (FREUND, 1995). É o resultado de forças dinâmicas e heterogêneas que se neutralizam, sem se anularem.

Os conflitos são substituídos por outra forma de rivalidade, conhecida como competição ou concurso, não limitada a simples jogos.

A característica essencial é que os rivais não se comportam como inimigos, mas como adversários. Refere Freund (1995, p. 73) que em um primeiro momento,

no estado agonal, a violência e a intenção hostil estão excluídas, pois a vontade de um não é imposta sobre o outro. Há renúncia ao ataque à integridade física ou moral do outro. Os meios mais utilizados perpassam pela utilização de um regramento formal e mediante a prévia interação e renúncia dos competidores a todo tipo de agressão.

Reforça Spengler (2010) que, no estado agonal, a vida submete-se à regulamentação e ao Direito na medida em que ele aproxima o conflito à concepção de jogo. Explica:

No estado agonal, os meios de jogar são definidos de antemão e ademais ambos os competidores renunciam ao ataque da integridade física recíproca. Os meios de definir tais regras circulam desde o estabelecimento de instituições até a criação do Direito. Tais regras servem para impor condutas e proibições aos rivais, bem como determinar as condições de vitória. Em resumo, o estado agonal é o fundador de uma ordem reconhecida por todos, que não está na vontade discricionária do vencedor, como ocorre ao acabem um conflito violento (SPENGLER, 2010, p. 282).

O estado agonal é tido como o “estado dos juízes” (FREUND, 1995, p. 66) em razão de que o Poder Judiciário, enquanto prestador de serviços, é reconhecido como único legitimado a punir a brutalidade. Pode também impor regras e administrar os conflitos, racionalizar a vingança e buscar meios de prevenir a violência. Não cabe ao Poder Judiciário a tarefa de erradicar os conflitos, na medida em que se trata de elementos ínsitos à própria sociedade, como visto nos subitens anteriores.

No mesmo sentido, Santos (2011b, p. 21) identifica que se experimenta uma

“expansão global do poder judiciário”. Diante do que o autor chama de primado do direito, o poder judiciário, a partir do Século XX, vem assumindo um protagonismo social e político nunca antes visto. As origens deste protagonismo estariam, para Santos, associadas à derrocada do Estado intervencionista e a execução deficiente ou inexistente de políticas públicas. No caso específico da América Latina, Santos (2011b, p. 21) explica:

Na maior parte do século XX, nos países latino-americanos, o judiciário não figurou como tema importante da agenda política, cabendo ao juiz a figura inanimada de aplicador da letra da lei emprestada do modelo europeu. A construção do Estado latino-americano ocupou-se mais com o crescimento do executivo e da sua burocracia, procurando converter o judiciário numa parte do aparato burocrático do Estado – um órgão para o poder político

controlar – de fato, uma instituição sem poderes para deter a expansão do Estado e seus mecanismos reguladores.

Fato é que, ao concentrar o monopólio da jurisdição, mediante a delegação de tarefas ao Poder Judiciário, adota-se o modelo hobbesiano de transferência de direitos e prerrogativas.45 Ou seja, ao mesmo tempo em que o cidadão perde a autonomia com relação ao enfrentamento do conflito, tem garantida a paz, pois a vingança e a violência privada e ilegítima são contidas e/ou detidas.

Ocorre que esta sistemática acaba por transformar os conflitantes em meros espectadores, como explica Spengler (2010, p. 284):

Da mesma forma que o cidadão de outrora, que esperava pelo Leviatã para que este fizesse a guerra em busca da paz, resolvesse os litígios e trouxesse segurança ao encerrar a luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulação dos litígios serem transferidos ao Judiciário, esquecidos de que o conflito é um mecanismo complexo que deriva de uma multiplicidade de fatores, que nem sempre estão definidos na sua regulamentação, portanto, não é só normatividade e decisão.

As consequências desta passividade e seus desdobramentos, assim como as formas de atuação do Poder Judiciário constituem o tema do subitem seguinte.

No documento PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (páginas 39-43)