• Nenhum resultado encontrado

O confronto com a falta: reconstruindo a própria imagem

Tomar consciência de que o próprio corpo está mutilado é algo doloroso demais para o sujeito e, por essa razão, difícil de ser integrado ao aparelho psíquico, uma vez que nele não há recursos para lidar com esse evento. Isso porque durante sua vida as experiências e as relações que alicerçaram sua constituição subjetiva do corpo construíram a concepção de um corpo íntegro e não de um corpo mutilado. Baseando-se nisso, a perda de uma parte do próprio corpo pode ser danosa o suficiente para representar uma forte ameaça às fronteiras egoicas já estabelecidas durante sua constituição.

Em decorrência disso, uma vez que a amputação não foi representada, o sujeito depara-se com uma dificuldade, também, de adequar-se a esse novo corpo e reconstruir a percepção de si mesmo. Isso porque, enquanto a mudança corporal não é integrada no aparelho psíquico, através da vivência dessa perda, a ação de reconstrução da autoimagem fica prejudicada. Assim, essa categoria se debruçará sobre a reintegração corporal e a sua relação com o trabalho de luto pelo membro retirado e pela antiga imagem corporal, processo de indiscutível importância quando se trata de adequação ao novo corpo.

Nesse contexto, a alteração da configuração corporal, explícita no próprio corpo, não foi integrada ao psiquismo desses sujeitos, impedindo que o trabalho de luto pela perda de uma parte de si mesmo inicie, conforme se pôde observar quando E8 referiu: “Não mudou

nada de diferente. . . . Eu me senti bem, eu me senti feliz da vida, não fiquei triste nem nada (E8, 65). E, ainda, quando os entrevistados citados abaixo também verbalizaram:

59

Mas eu não sinto nada, nada, nada. Tranquilo, tranquilo mesmo. Tranquilo como nós tamo conversando aqui, nada! Bah, hoje eu tô com meu corpo de menino, de guri, não tenho sentimento nenhum, nem positivo nem negativo [...] Tô feliz da vida (E2, 64).

É, eu só cortei os dedo e pronto né, tirei os dedo e daí tudo bem [...] Mas eu não sinto nada, nada, nada mesmo, tô sempre muito bem como se não tivesse nada, tô sempre muito, muito bem, bem mesmo (E6, 76).

Nota-se que a referência ao sentimento de bem-estar diante da amputação, que num primeiro momento pode sinalizar o uso da negação, revela, sob um olhar mais aprofundado, que a perda do membro ainda não foi representada psiquicamente por esses sujeitos. E, uma vez não representada, ela não é sentida nem vivenciada, tampouco elaborada.

Semelhante a isso, a ausência de representação também foi observada na fala de E5, porém sob a ótica da impossibilidade de nomeação da amputação, reforçando que tanto o fato da perda do membro quanto o próprio termo “amputação” não encontram um sentido que o permita ser vivenciado e, no caso, nomeado. Isso ficou explícito quando referiu “eu sabia que

eu ia ter que. . . . Que eu ia ter que fazer. . . .. Que ia ser feito aquela... Aquela conduta ali, aquela. . . . (E5, 58)”.

Ao não conseguir verbalizar o termo amputação, que foi substituído em seu discurso por: “aquela conduta ali”, E5 demonstrou a não representação psíquica desse fato e, por isso, a dificuldade de nomear algo tão doloroso, aquilo que o faz sofrer, que o põe em contato com a fragilidade que faz parte de todo o ser humano, mas que por muito tempo pôde permanecer em estado menos evidente enquanto a integridade corporal não havia sido abalada. Foi possível observar que, durante toda sua entrevista, o caráter irrepresentável da amputação não permitiu que essa intervenção fosse nomeada, tendo E5 se utilizado de vários termos para designar o que parecia impossível de ser dito, o que é corroborado na fala “aí eles me

disseram que ia ter que. . . . Que tirar. . . . Uma parte né, tirar né. Fazer o procedimento né (E4, 44).”

Nesse contexto, no estudo de Sabino, Torquato e Pardini (2013), sobre amputações e a correlação com ansiedade e depressão, foi observado que é comum alguns sujeitos amputados não verbalizarem os sentimentos, tampouco qualquer palavra que se assemelhe ao procedimento realizado, no caso, a amputação. Desse modo, quando E4 não verbaliza o nome do procedimento que fez, o termo causador de angústia, ele revela que, no momento em que a amputação tronou-se real, o impacto causado trouxe à tona não apenas a impossibilidade de representar esse fato, mas também a evidência da fragilidade humana, materializada, agora, em seu corpo.

60 Sabe-se que, por se tratar de um trauma psíquico cuja interiorização egoica é inexistente, a mutilação corporal precisa ter um sentido para ser vivenciada pelo sujeito. Somente dessa forma é que o novo corpo vai ser aceito e reintegrado por ele. Mas, para que isso aconteça, há um trabalho a ser feito, ou seja, um processo de perda do membro e da antiga vivência corporal para que a nova configuração desse corpo seja construída pelo sujeito.

Para um melhor entendimento dessa relação, salienta-se o que Freud (1917/1996) elucidou sobre o luto, explicando-o sob a lógica da perda do objeto e a consequente falta de interesse e de investimentos no mundo externo. Isso significa que, diante de uma perda, real ou simbólica, ocorre um desequilíbrio de investimentos libidinais, isto é, o sujeito enlutado desinveste dos objetos externos e a libido fica localizada no eu, através de um superinvestimento que deverá ser temporário.

Esse investimento libidinal no ego é semelhante ao que ocorre na identificação narcísica, na qual a libido também se localiza no ego, o que é fundamental para a constituição do narcisismo. Quanto a isso, ressalta-se que o narcisismo constituiu-se justamente através do investimento no próprio eu. Através dessa ação psíquica ocorre a unificação das pulsões, que se encontravam dispersas e fragmentadas durante o autoerotismo, fase anterior ao narcisismo, quando o ego ainda não estava constituído. Logo, essa ação resulta na constituição do ego e de seus limites e está intimamente relacionada a constituição dos limites corporais (Freud, 1917/1996; Laplanche & Pontalis, 2001).

Partindo disso, se o processo de luto não acontecer de maneira satisfatória, a reintegração das fronteiras do corpo será prejudicada e o sujeito terá grandes dificuldades em vivenciá-las. O que prejudicará também a reconstrução da imagem de si, ação que também depende do êxito da elaboração da perda do membro.

Sobre isso, enquanto E8, E2 e E6 demonstraram, anteriormente, que esse processo não começou a acontecer, pois referiram que a amputação não acarretou mudanças tampouco sofrimento, E7 sinalizou que a perda do membro já começou a ser elaborada, principalmente quando, ao referir-se ao corpo após a cirurgia, falou “Um dia eu ia ter que olhar né pro meu

corpo. . . . Foi difícil, bem difícil, é ainda bem complicado, mudou. . . . (choro) (E7, 66)”. De

maneira semelhante, o início desse processo de perda e elaboração foi percebido através do seguinte fragmento da entrevista de E4:

Olha, foi só depois de uns. . . .. de uns 5 meses que eu fui olhar o pé mesmo. . . .. Que aí eu fui ver como é que era e tal. Depois de uns 5 ou 6 meses que eu comecei a visualizar o pé mesmo (E4, 44)

61 Baseando-se nessas falas, pode-se inferir que o próximo passo, para que esses sujeitos reconstruam suas autoimagens, será a retomada dos investimentos no próprio eu e, assim, construir, novamente, seus limites. Para que isso ocorra o corpo precisa ser vivenciado enquanto um corpo novo, diferente e mutilado e isso só acontecerá devido ao luto. Assim, esse corpo novo deverá ser novamente erogeneizado e investido para que a imagem de si e o narcisismo sejam reestruturados.

Nota-se que a relação entre a reconstrução da imagem corporal e o trabalho de luto é de indiscutível relevância nesse contexto da amputação de membros, haja vista que se a imagem permanecer a mesma de antes da amputação, os novos limites corporais não serão elaborados e uma nova autoimagem não será construída. Além disso, foi observado que, subjacente aos relatos sobre o corpo após a amputação, estão também as dificuldades e as limitações impostas por essa realidade, refletidas na impossibilidade de aceitar essa nova condição, o que será abordado na categoria a seguir.

3.3 Para além da perda do membro: a amputação enquanto uma ferida narcísica

Partindo da compreensão de que a amputação de membros configura-se uma realidade de difícil aceitação pelos sujeitos que a vivenciaram, é importante mostrar, também, como essa realidade apresenta-se e o que ela implica. Sabe-se que a vida pós-amputação difere, em maior ou menor grau, da que vinha sendo mantida até então, pois contém restrições e limitações das mais diversas, cuja importância e influência no cotidiano dependem da função do membro retirado e do contexto de cada sujeito.

Por ser a amputação de membros um evento que leva à incapacidade física, sabe-se que o amputado defronta-se com limitações que contemplam todas as esferas de sua vida, não se restringindo apenas à perda de uma parte importante de seu corpo. Essa perda estende-se à saúde, à eficiência corporal, e causa dificuldades desde o âmbito pessoal até o profissional (Oliveira, 2004; Paiva & Goellner, 2008).

No entanto, cabe fazer uma leitura mais aprofundada do impacto causado pela perda do membro, compreendendo-a para além de dificuldades vivenciadas no dia a dia. E é justamente nessa direção que esta categoria segue, mostrando que amputar uma parte do corpo não significa apenas conviver com as limitações mencionadas, pois, ao lançar-se um olhar à subjetividade do sujeito amputado, o que se observa não é somente a perda da autonomia, mas uma perda da imagem de si mesmo e um abalo em seu narcisismo.