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3 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA versus EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO

3.1 O conteúdo e as vertentes em que se desdobra a presunção de

capítulo, oportuno trazer a lume as vertentes em que desdobra o princípio da presunção de inocência a fim de compreendermos previamente a sua verdadeira amplitude.

O princípio da presunção de inocência apresenta-se sob duas vertentes2 principais, muito embora a doutrina divirja quanto aos enfoques em que se desdobra a presunção de inocência, que se combinam para a expressão completa do princípio.

Como “regra de tratamento”, impõe às autoridades e seus agentes, e à sociedade em geral o dever de tratar toda pessoa, antes e durante o curso do processo, como se inocente fosse. Essa vertente é mais significativa, inclusive, em relação ao magistrado, especificamente, porque a este é “vedado aderir antecipadamente à opinio delicti, não podendo proferir juízo condenatório antes do prévio exaurimento probatório da acusação” (GIACOMOLLI, 2014, p. 94, grifo do autor).

É dizer, somente após o estabelecimento da culpabilidade através da formulação de um juízo de reprovação levado a efeito por uma sentença condenatória na qual tenham sido obedecidas todas as demais garantias processuais constitucionais e convencionais à disposição do individuo (como, por exemplo, o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, a ampla defesa e o contraditório, dentre outras) poderia emitir-se o título condenatório legitimando, a

1 Esse é o entendimento, por exemplo, de Luigi Ferrajoli: “[...] no sentido de ‘regra de tratamento do

imputado’, que exclui ou ao menos restringe ao máximo a limitação da liberdade pessoal; ou no sentido de ‘regra de juízo’, que impõe o ônus da prova à acusação além da absolvição em caso de dúvida. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica

et al. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 442.; Cf. Outros doutrinadores, a

exemplo de Maurício Zanóide de Moraes, defendem uma divisão diferente para as normas decorrentes da presunção de inocência: “A concepção de presunção de inocência, sob a perspectiva constitucional de um âmbito de proteção amplo, compreende um significado de ‘norma de tratamento’, relacionado mais diretamente com a figura do imputado, e outros dois significados como ‘norma de juízo’ e como ‘norma probatória’, estes últimos mais ligados à matéria probatória.” MORAES, Maurício Zanóide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise da estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 2008. Tese (Livre Docência) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 456; Gustavo Badaró, por sua vez, defende uma divisão com outra nomenclatura: “Quanto ao conteúdo da presunção de inocência, é possível distinguir três significados de tal princípio: (1) garantia política; (2) regra de tratamento do acusado; (3) regra probatória.” BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 57.

partir de então, ser alguém tratado como culpado, inclusive para efeito de aplicação da pena ou sanção.

Como “regra probatória”, cabe à acusação por meio de provas cabais comprovar3 ser de fato o acusado o autor da infração penal a ele imputada, inadmitindo-se que o ônus de provar a inocência recaia sobre ele. Portanto, como regra de prova, o princípio da inocência se apresenta como a característica de presunção relativa, porquanto persiste intacta a garantia enquanto não se ateste prova em contrário perante, no mínimo, dois graus de jurisdição.

Dessa forma, o réu não tem, durante o curso do processo, a obrigação de provar sua inocência, pois o ônus de provar a culpa recai sobre o Estado-acusação. No entanto, pode o réu, por livre e espontânea vontade, visando fortalecer sua tese de defesa, apresentar provas da veracidade de suas alegações que corroborem com sua inocência4.

Uma das consequências mais evidentes da presunção de inocência no processo penal, é que, persistindo-se a dúvida quanto à autoria do fato delituoso, por não serem as provas trazidas pela acusação suficientes para se estabelecer um juízo condenatório, deverá o juiz dar cabo ao processo com a consequente absolvição do réu5 em respeito ao chamado in dubio pro reo6, princípio este que se confunde com a própria presunção de inocência (BADARÓ, 2015, p. 58)7.

3 É o que afirma a primeira parte do caput do art. 156 do Código de Processo Penal brasileiro, in verbis: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer [...]”.BRASIL. Senado Federal. Código de processo penal. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017. p. 43.

4

Nesse sentido, afirmou Giacomolli que “partindo-se da inocência e não da culpabilidade do réu, incumbe à acusação o encargo de afastar o estado de inocência e não à defesa demonstrá-lo, em todas as dimensões processuais [...]. Contudo, isso não retira a chance de a defesa provar no processo, no intuito de preservar o estado de inocência. [...] Isso não impede que a defesa, tanto na dimensão pessoal quanto técnica, aproveite as oportunidades processuais e também produza prova e contraprova, na dialética contraditória, no espaço processual argumentativo para manter o status

libertatis”. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 94,95. (grifo do autor).

5 É o que determina a redação da parte final do inciso VII do art. 386 do CPP brasileiro, in verbis:

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: [...] VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena [...], ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; (grifo nosso). BRASIL. Senado Federal. Código de processo penal. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017. p. 95.

6 A dúvida favorece o réu (tradução nossa).

7 Nesse sentido é o pensamento de Mittermayer: “No processo acusatório, o juiz só tem a decidir qual

das alegações é bem fundada: se as do acusador, se as do acusado; e não provando o primeiro plenamente as suas, a absolvição é a consequência incontestável.” Mittermayer. Tratado da Prova em Matéria Criminal. Trad. Alberto Antônio Soares. 1871, t. II, p. 285.

Trata-se, portanto, como disse Ferrajoli (2002, p. 441), de um princípio fundamental de civilidade, “o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.

Assim, para além da expressão normativa, jurisprudencial e doutrinária do preceito da presunção de inocência, é pacífica a compreensão do estrato social, e mesmo do homem médio, da não aceitação de açodado juízo executório sem que antes a culpa tenha sido previa e cabalmente provada por intermédio de um processo penal que seja, na medida da razoabilidade, a um só tempo justo, célere e assecuratório do direito do acusado à preservação, ausentes, no entanto, os pressupostos autorizadores de uma prisão processual cautelar, do seu “status

libertatis8 enquanto não sobrevenha decisão condenatória definitiva emitida em

segundo grau de jurisdição.

3.2 O real alcance e aplicação da presunção de inocência em face da