• Nenhum resultado encontrado

Considerações preliminares

2. O contexto da atuação

O exercício da profissão de cirurgião-dentista é regulamentado pela Lei Nº 5.081, que exige do graduado registro no respectivo Conselho Regional de Odontologia (CRO).

Apesar das iniciativas de diversos órgãos e entidades profissionais na busca de conhecimento sobre as condições de exercício profissional da Odontolo- gia no país, não tem sido frequente a realização de investigações voltadas especificamente para o conhecimento do perfil do cirurgião-dentista e do seu campo de atuação, particularmente em contextos específicos, regionais ou estaduais, como é o caso do estado da Bahia.

Não são desconhecidas as carências de assistência odontológica no Bra- sil, mormente para grupos sociais menos favorecidos economicamente. Se- gundo França-Botelho (2004),

... as dificuldades econômicas do Brasil, com recessão e desemprego, têm reduzido o número de brasileiros que podem pagar um atendimento odontológico privado. Quando muito, procuram clínicas particulares, que ofere- cem um atendimento mais barato e, devido à alta rotatividade, sem a qualidade devida, contribuindo para o desprestígio da profissão. Na grande maioria das vezes, a única opção que a população encontra é o SUS. As pesso- as enfrentam filas e outras dificuldades para então recebe- rem um tratamento odontológico muitas vezes básico, que

nem sempre é o suficiente. O que é possível é feito, e mui- tas necessidades se acumulam (p. 1-4).

A heterogeneidade da qualidade dos serviços profissionais prestados e a competitividade imposta a qualquer preço pelas leis de mercado têm resulta- do, com frequência, no comprometimento ético e da qualidade do exercício profissional. Superar esse quadro, contudo, só será possível quando o cirur- gião-dentista, como categoria profissional, perceber que a solução dos seus problemas não se encontra apenas na boca do seu paciente, mas na efetiva materialização das políticas públicas de saúde dirigidas para a assistência odontológica.

Nicolielo e Bastos (2002), após minuciosa análise da satisfação profissio- nal do cirurgião-dentista conforme o tempo de formado, concluíram que

... há uma relação estabelecida entre o tempo de atuação no mercado de trabalho e a satisfação profissional, estan- do os profissionais recém-formados mais insatisfeitos, pelo menos em alguns aspectos. Além disso, notou-se que a Odontologia não tem conseguido oferecer a estes novos profissionais tudo aquilo que esperavam enquanto estu- dantes. Nem mesmo suas atuais aspirações profissionais têm sido realizadas. (p. 69-74)

Os autores concluem que se trata

...de um dado importante, pois, requer análises mais aprofundadas para que se possa averiguar suas causas e as consequências dessa insatisfação para o futuro da profis- são. Somente desta forma será possível criar e direcionar ações e programas que venham ao encontro das necessi- dades destes profissionais. (p. 69-74)

Cabe acrescentar, com certeza, que tais ações e programas devem tam- bém ser direcionados para as necessidades da população.

Nesse sentido, a implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil a partir da Constituição de 1988 significou, em primeiro lugar, uma vitória do

movimento sanitarista, que, antes da última Constituinte, construiu um novo modelo universalista de atendimento à população, tornando a saúde um di- reito de todos e um dever do Estado. Anteriormente, a saúde esteve restrita a setores organizados da sociedade, na economia e emprego formais e ligados ao Estado ou a corporações. Aos “desassistidos” restava procurar as institui- ções beneficentes.

Especialmente a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, formulou- se um modelo que prevê a cobertura de saúde a todos os cidadãos, indepen- dentemente da contribuição previdenciária, e o Estado é compreendido como promotor desse direito. O sistema descentralizado, municipalizado, com a distribuição de responsabilidades por níveis de assistência entre procedimen- tos de prevenção e de atenção básica de média e de alta complexidade, foi combinado com o controle social, a ser efetivado através de diversos conse- lhos nos quais a participação dos cidadãos é garantida legalmente. Apesar de o funcionamento e a representatividade de tais conselhos ainda deixarem muito a desejar, é indiscutível o avanço representado pela sua institu- cionalização.

Também é preciso admitir que, no Brasil, a paulatina efetivação do SUS e a criação do Programa de Saúde da Família (PSF) tiveram um impacto significativo sobre a assistência à população, a formação de recursos huma- nos e a atuação profissional.

O Programa Saúde da Família (PSF), como política nacional de aten- ção básica, teve início, em 1994, como proposta do governo federal aos municípios para implementar a atenção básica em saúde. Constitui uma das principais estratégias de reorganização dos serviços e de reorientação das práticas profissionais nesse nível de assistência, promoção da saúde, prevenção de doenças e reabilitação. Quanto à reorganização dos serviços de saúde, trata-se de uma estratégia que vai ao encontro dos debates sobre o processo de mudança do paradigma que orienta o modelo de atenção à saúde vigente desde a década de 1970. Valoriza as ações de promoção e proteção da saúde, prevenção das doenças e atenção integral aos usuários, com vistas à superação do modelo anterior, calcado na supervalorização das práticas da medicina curativa, especializada e hospitalar, no excesso de procedimentos tecnológicos e medicamentosos e, sobretudo, na fragmenta- ção do cuidado.

Em 2006, o Governo Federal, através da Portaria Nº 648 (28 de Março de 2006), estabeleceu o PSF como estratégia prioritária do Ministério da Saúde, para organizar a Atenção Básica, com vistas a possibilitar o acesso universal e

contínuo a serviços de saúde de qualidade, reafirmando os princípios básicos do

SUS: universalização, equidade, descentralização, integralidade e participa- ção da comunidade.

A partir desse contexto de mudanças, vários cursos da área de saúde, no país, adotaram, em seu Projeto Político Pedagógico, a tarefa de formar de profissionais para a saúde pública e para o PSF.

Além disso, o impacto dessa política se fez sentir no contexto de atuação dos profissionais, com uma mudança no perfil de empregabilidade de muitos profissionais, atraídos para as carreiras nas equipes de saúde da família, nas unidades básicas de saúde, no planejamento de políticas públicas e na audito- ria dos sistemas públicos de saúde.

A participação dos cirurgiões-dentistas nesse âmbito profissional se deu de forma concomitante a uma mudança nos currículos dos cursos de forma- ção, o que permitiu uma reorientação na formação dos egressos e uma reformulação na concepção da saúde tradicionalmente veiculada. De uma concepção mais curativa, individualista, clínica e dirigida para a elite domi- nante, passou-se para uma concepção mais preventiva, coletiva, social, volta- da para a universalização do acesso e a promoção da saúde.

Com a inserção de profissionais da área de Odontologia nas Equipes de Saúde da Família, através do PSF – Programa que lhes reserva um lugar obrigatório nas Unidades Básicas de Saúde –, torna-se essencial analisar de que forma essa transformação social da Saúde Pública, cujos dados publica- dos dão conta de 21.700 Equipes de Saúde da Família (MS/SAS/DAB, 2008), está interferindo no perfil desse profissional, com as novas exigências. Dados de 2010 (MS/SAS/DAB) demonstram a expansão do PSF através do quanti- tativo de 30.603 Equipes de Saúde da Família, já implantadas, no território nacional, sendo 1.722 ESF no estado da Bahia.

Nos dias atuais, cabe se questionar qual a visão desses profissionais sobre o sistema e até que ponto se deu a superação da visão curativa, individualista, clínica e elitista – que marcou historicamente a formação e a atuação profis- sional em Odontologia – em direção à concepção mais preventiva, coletiva e

social, uma vez que grande parte dos profissionais em exercício não passou no seu curso de graduação por currículos que abordassem essa nova perspec- tiva de inserção social da Odontologia no serviço público.

Ainda hoje, observa-se que as disciplinas eminentemente de saúde públi- ca são marcantes no currículo, embora, no ciclo profissionalizante de clíni- cas integradas, de cirurgia e das demais especialidades odontológicas, a pers- pectiva teórica e o treinamento técnico continuam marcadamente voltados para o exercício autônomo, seja com pacientes particulares ou conveniados. A congregação de especialistas em clínicas privadas, de um modo geral, tem como conotação o tratamento odontológico interdisciplinar, condição que parece não ter sido alcançada com a mesma eficácia nos grupos de PSF, cujo referencial básico deve ser a saúde coletiva.

Assim, mais uma vez, torna-se patente a importância do desenvolvimen- to de pesquisas que permitam uma visão em profundidade do alcance dessas transformações e que possam alimentar a renovação das iniciativas de forma- ção inicial, de formação continuada e de pós-graduação.