• Nenhum resultado encontrado

O corp(us) exposto: “Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”

CAPÍTULO 2 – PRIMEIRO PROGRAMA

2.1 O corp(us) exposto: “Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”

Os corpora analisados neste capítulo foram os contos “Paraíba” e “Módulo lunar pouco feliz”, narrativas que constituem, com mais cinco histórias, o livro Os solteirões (1975) de Gasparino Damata. O anônimo narrador-personagem, protagonista do conto “Paraíba”, operário da construção civil e migrante nordestino é um garoto de programa que se prostitui clandestinamente em um cinema de “pegação”, na Cinelândia, Rio de Janeiro. É possível notar no conto uma divisão diegética. Primeiro, há um diálogo entre o narrador-personagem e o outro garoto de programa, Zé Orlando, por meio do qual o protagonista defende sua identidade masculina heteronormativa ao se prostituir com homossexuais. Segundo, assumindo a voz em primeira pessoa, o personagem narra em detalhes todo o modus operandi e as experiências como corpo-prostituto no cinema de “pegação”.

No conto “Módulo lunar pouco feliz”, há uma rede de homens que vivem exclusivamente da prostituição, todos desterritorializados, identificados pela origem geográfica (Pernambuco, São Paulo, Rio grande do Sul) e dentre eles figura o anônimo

corpo-prostituto, com apenas dezoito anos, protagonista da narrativa, que viaja em função do seu trabalho sexual. Além de narrar pequenos fragmentos da infância do personagem e de resgatar episódios dele enquanto corpo-prostituto de rua, o conto possui como núcleo dramático uma difícil noite do personagem em busca de programas na região da Cinelândia.

Se não é possível afirmar a existência de um projeto literário de Damata em retratar a prostituição masculina, há o fato inconteste da presença marcante do corpo-prostituto no livro Os solteirões. De acordo com nosso mapeamento, é a primeira obra da literatura brasileira de expressão homoerótica a abordar a ideia de mercado do sexo masculino sob a perspectiva da exclusividade do trabalho de natureza sexual e as lógicas de funcionamento das redes de sociabilidades. Também, junto aos dois contos centrados na figura do corpo-prostituto, existem mais três narrativas, mesmo que numa perspectiva mais tangencial, que inscrevem sujeitos os quais intercambiam sexo e dinheiro/outras trocas materiais.

Desse modo, no conto “O inimigo comum” aparecem, no discurso do jovem Otávio ao conversar com seu amante/mantenedor, os boys de programa William e Saul, bem como seus modos de agir. Em “O voluntário”, além da prostituição institucionalizada no corpo de fuzileiros navais entre superiores militares e recrutas, o tenente Fernando, antes de ser oficial prostituía-se em Copacabana. No conto “A desforra”, o protagonista, Ferreira, amante de artes plásticas, mantém na cabeceira de sua cama uma aguada de Roberto Burle-Marx intitulada Puteiro de homens na Bahia (obra que documentaria um famoso bordel de Salvador para homens), traduzindo assim a inveterada prática do personagem de pagar e/ou manter jovens. Para ele, só haveria espaço para o “amor comprado”, mas também, além dele, o seu círculo de amigos também age dessa maneira, a exemplo dos personagens mais velhos Felipe e Botelho que se relacionam com garotos que se prostituem.

Nesta tese, embora analisemos duas narrativas da compilação de Damata publicada em 1975, pensamos ser relevante trazer a obra na sua integralidade, por acreditarmos na ideia de projeto estético do autor que constitui um conjunto de textos inter-relacionados não só pela mesma autoria, mas também pelas condições e contexto de produção. Assim, as narrativas d’Os solteirões apresentam e discutem a condição homossexual explicitamente. Trata-se de uma produção literária em que o representar ficcional aponta

para a expressão de uma estética realista. Nesse sentido, Tânia Pellegrini no ensaio Realismo: postura e método (2007) assinala a permanência do conceito de realismo no contexto da contemporaneidade, quando diz:

[…] creio que hoje ainda se pode usar com proveito o conceito de 'realismo' para significar uma tomada de posição diante de novas realidades (postura) expressas justamente na característica especial de observação crítica muito próxima e detalhada do real ou do que é tomado como real (método), que em literatura não só a técnica descritiva representou e muitas vezes ainda representa, ao lado de outras, podendo, deste modo ser encontrada em várias épocas, como refração da primeira (PELLEGRINI, 2007, p. 149, grifos da autora). Seja como “postura” seja como “método”, conforme estipulado pela estudiosa, o escritor Gasparino Damata conseguiu imprimir em Os solteirões um retrato muito vibrante da (sub)cultura homossexual carioca dos anos 1960/1970 com suas vicissitudes: medos, frustrações, conflitos, desejos, o jogo de ambivalências do “armário” e as coerções sociais face à subjetividade homoerótica.

As histórias incorporam, de modo muito vivo, o universo dos homens que orientam seu desejo por iguais em vários aspectos: na linguagem (gírias e termos do meio); na descrição e na presença constante enquanto ambientes de ação narrativa: os lugares de homossociabilidade e de práticas homoeróticas (bares, restaurantes, boates, cinema de “pegação”); na inserção em algumas passagens dos contos das “bonecas” e seu comportamento camp (roupas, maquiagem, trejeitos, humor); nos lugares e nos seus códigos de “pegação” (mictórios, bares); na referência curiosa ao fato de um personagem comprar vaselina40 (produto utilizado no período para prática de lubrificação para

penetração anal entre homossexuais); e em um dos índices mais expressivos da cultura homossexual referente ao funcionamento das redes de amigos e suas sociabilidades entre os personagens, as quais, segundo o escritor e filósofo francês Didier Eribon (2008) em Reflexões sobre a questão gay, fundam-se “[…] primeiramente e antes de tudo, numa prática e numa “política” da amizade”, estabelecimento de contatos, encontro de pessoas,

40 Segue a passagem do conto O voluntário, no momento em que o oficial de Marinha, Leocádio, adquire

o produto oleaginoso antes de encontrar-se com o aspirante a marinheiro, Ivo: “Desceu a Sete de Setembro, entrou na Silva Araújo e comprou um tubinho de vaselina, tomou um café pequeno, em seguida saiu caminhando absolutamente tranquilo, autoconfiante, contando com a vinda de Ivo, certo de que o tinha nas mãos” (DAMATA, 1975, p. 78, grifos nossos).

amigos que aos poucos vão “constituir um círculo de relações escolhidas” (ERIBON, 2008, p. 38).