• Nenhum resultado encontrado

O CORPO ARTISTA E A ABERTURA DE NOVOS CONTEXTOS

2. UM ERRANTE CHAMADO CORPO

2.4 O CORPO ARTISTA E A ABERTURA DE NOVOS CONTEXTOS

O processo de pacificação urbana age sobre os espaços públicos de modo a inibir trocas mais exigentes entre indivíduos diferentes. Sua organização tende a produzir uma segmentação do uso dos espaços, tendo em vista especialmente aspectos econômicos e sociais, além de reduzir sua funcionalidade a mero lugar de passagem e/ou consumo. Esse tipo de experiência de baixa complexidade em termos de interação entre corpo e cidade é, simultaneamente, produto e produtora de padrões hegemônicos de organização de corpos e espaços, no sentido de uma crescente homogeneização cultural e social.

Considerando que a relação interativa entre corpo e cidade tem se sustentado predominantemente em experiências de tão baixa complexidade, é possível estabelecer um paralelo entre a pacificação urbana e o que Greiner (2005) chamou de anorexia da ação comunicativa. No sentido de que os modos dominantes de organização das cidades contemporâneas coadunam com a fragilização dos processos comunicativos do corpo.

A ideia dessa metáfora foi desenvolvida com o intuito de debater em que medida determinados fenômenos e situações tendem a inibir ou desestabilizar o processo interativo entre corpo e ambiente e as ações cognitivas do corpo.

Contudo, é preciso observar o processo de espetacularização urbana levando em conta sua complexidade, o que implica a existência constante de contradições, tensionamentos e instabilidades de dimensões variadas. Nesse sentido, não é possível tratá-lo como um fenômeno absoluto em si mesmo.

E a partir daí abre-se caminho para reconhecer ações de resistência a tal processo em concomitância a ele. A arte é um campo que não se dissocia da comunicação e muito menos do ato de conhecer, portanto, se constitui uma maneira possível de produzir rupturas na lógica “anoréxica” inerente à pacificação urbana.

É nesse sentido que a dança se apresenta nessa pesquisa, como um dos modos possíveis de tensionar a lógica da espetacularização urbana, configurando- se como um tipo de experiência com potencialidade para impregnar os contextos urbanos com padrões de informação alternativos às organizações hegemônicas dos corpos e espaços da cidade.

Para compreender como essa operação ocorre, os estudos sobre as imagens do corpo voltam a auxiliar o debate.

Como já foi mencionado anteriormente, as imagens tendem a constituir códigos, são estratégias que auxiliam o corpo a categorizar e conceitualizar suas

experiências. Nesse processo as ações do corpo que se dão a ver emergem como metáforas, pois se trata de um “transporte” de certa informação em termos de outra. Sempre de forma compartilhada e entrecruzada.

Esse argumento é apresentado por Bittencourt (2012) a partir dos estudos de Lakoff e Johnson. As imagens em fluxo que constituem o corpo se enredam num trabalho em conjunto, misturando-se e sistematizando a comunicação do corpo, por meio de operações metafóricas – pensamentos que ganham visibilidade no corpo e indicam sua lógica organizativa em relação ao mundo.

Contexto ganha texto quando o corpo e o ambiente se comunicam em trocas, o que implica em relações de enunciações. Metáforas são imagens categorizadas que, no corpo, portam aspectos visíveis que sinalizam a possibilidade de comunicação do corpo em um determinado ambiente e, portanto, posicionamentos e atitudes diante do mundo. (BITTENCOURT, 2012: 77).

De acordo com as pesquisas de Lakoff e Johnson, sob a perspectiva de Greiner (2005), nossa maneira de lidar corporalmente com as experiências que vivenciamos se dá no sentido metafórico. Nossa percepção apreende uma experiência em termos de outra, ou seja, ela não dá conta dos objetos externos tão pouco das informações internas em sua plenitude, mas realiza uma espécie de “transporte” entre o que conhecemos e as experiências que afetam esses conhecimentos, transformando-os continuamente. Essa perspectiva extrapola a ideia de metáfora como figura de linguagem para se constituir uma espécie de arranjo das informações geradas pelas trocas entre corpo e ambiente.

Nesse contexto, a dança é reconhecida como uma possibilidade do corpo utilizar o conhecimento que emerge das experiências cotidianas em favor de novas formas de testar e conhecer corpo e mundo.

No artigo “A dança como estratégia evolutiva da comunicação corporal”, publicado em 2003 e cujas reflexões se desdobram no livro “O Corpo” (2005), Greiner debate sobre as relações entre arte e comunicação e argumenta que a dança seria uma forma especializada do corpo se comunicar e conhecer, justamente porque se organiza no corpo em movimento, o germe da comunicação.

Não se trata de estabelecer uma hierarquia entre as manifestações artísticas. Todas são formas de comunicação e de produzir conhecimento. O enfoque na dança se deve ao fato de que sua emergência é codependente do corpo em movimento. A existência de toda e qualquer dança se deve exclusivamente ao momento da sua ocorrência. Fora desse instante ela deixa de ser.

Neste artigo, a pesquisa de Lakoff e Johnson é apresentada, dando-se ênfase ao entendimento de que a produção de conceitos não se restringe a uma ação intelectual, mas ocorre no modo do corpo agir no mundo, em todo instante, e se dá na condição de matéria metafórica porque pressupõe o deslocamento de informações internas e externas ao corpo.

Nesse sentido, as experiências do corpo são a fonte do processo de estruturação do conhecimento e da conceituação do mundo. E a dança, uma especialização adquirida de modo a dar continuidade a esse processo, articulando o pensamento sobre o mundo no âmbito do simbólico.

As experiências são fruto de nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional etc), de nossas interações com nosso ambiente através das ações de mover, manipular objetos, comer, e de nossas interações com outras pessoas dentro da nossa cultura (em termos sociais, políticos, econômicos e religiosos) e fora dela. Dançar é, em termos gerais, estabelecer relações testadas pelo corpo em uma situação, em termos de outra, estabelecendo, neste sentido, novas possibilidades de movimento e conceituação (GREINER, 2003: 56).

O corpo artista apresenta assim certa diferenciação dos demais não porque cria, uma vez que a criação não é um território particular da arte, mas da vida. O que ele faz, no entanto, é articular o que conhece em organizações e nexos de coerência que se deslocam do cotidiano, ainda que este seja a fonte de sua experiência. E, dessa forma, aponta novas possibilidades de relações com e no mundo, pois tende a constituir um hábito o processo de desestabilização das metáforas que impregnam os pensamentos hegemônicos de ser e estar no mundo.

O corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo. E o corpo artista é aquele em que aquilo que ocorre ocasionalmente como desestabilizador de todos os outros corpos (acionando o sistema límbico) vai perdurar. Não porque ganhará permanência neste estado, o que seria uma impossibilidade, uma vez que sacrificaria a sua própria sobrevivência. Mas o motivo mais importante é que desta experiência, necessariamente arrebatadora, nascem metáforas imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadores de outras experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos (corpos e ambientes) mapeados instantaneamente de modo que o risco tornar-se-á inevitavelmente presente. (GREINER, 2005: 123).

A dança, enquanto forma de comunicação e cognição do corpo (artista), é sempre uma potente possibilidade de estabelecer novos arranjos sobre as maneiras convencionais e hegemônicas de lidar com determinado contexto.

A dança presentifica-se como uma possibilidade eficiente de elaboração de conhecimento e do processamento de nexos de sentido. Isso decorre do fato de trabalhar a partir da matriz primária da comunicação: o corpo em movimento. Ou seja, a dança nada mais é do que um processo de comunicação altamente complexo e especializado que emergiu no corpo quando este se mostrou apto a elaborar processos simbólicos nascidos dos caldos culturais (GREINER, 2003: 51).

É portanto, nesse sentido, que algumas experiências artísticas tendem a constituir ações de microrresistência à pacificação urbana, arejando os contextos com novos textos, padrões alternativos que apontam caminhos distintos do modo hegemônico de experimentar a cidade.

Contudo, vale frisar que a relação entre espetacularização urbana e microrresistência não é percebida nesse trabalho como uma oposição dualista, um mero antagonismo. São antes consideradas duas instâncias imersas num mesmo processo interativo que constitui a dinâmica entre corpo e cidade. Ocorrem de forma simultânea e difusa, contaminando-se e se reorganizando a todo instante. Impregnando os corpos e ambientes continuamente.

Por esse ângulo, torna-se estratégico experimentar um trânsito entre generalizações e situações específicas, a fim de apontar para intermediações, em favor da desestabilização de verdades dadas e da abertura para perspectivas alternativas sobre os objetos e fenômenos analisados. Deixando evidente a transitoriedade inerente à percepção.

Em virtude disso, esse trabalho se desenvolve tendo em vista uma experiência específica, a performance de dança “Despacho”, desenvolvida pelo artista Jorge Schutze. E que é melhor apresentada e discutida no último capítulo. Trata-se de uma forma possível de pensar a dança como microrresistência, uma articulação que provavelmente caminharia por outras vias se reorganizada num outro momento.

No próximo capítulo, as reflexões se desdobram no sentido de relacionar arte e política, utilizando a experiência errática como uma referência para pensar a noção de microrresistência e um tipo de ação que pode auxiliar a investida da dança na cidade.