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CAPÍTULO II: O CORPO E SUAS REPRESENTAÇÕES: reais e imaginárias

2.4 O corpo e a pulsão: teoria estrutural do psiquismo

Inicio este tópico, da pesquisa, com uma citação de Martinho Lutero também citada por

Szondi (1975) na obra “Introdução à Psicologia do Destino”, pois retrata o movimento

pulsional do homem de vir a ser:

“Esta vida não é um estado de devoção, mas a conquista da devoção,

Não é ter saúde, porém conquistar a saúde, Não é ser, mas vir a ser,

Não é repouso, e sim atividade. Nós ainda não somos, seremos. A vida não está pronta e acabada, Mas em elaboração,

Não é a meta, mas é o caminho”.

A pulsão é uma das mais importantes descobertas nocionais de Freud. As pulsões são instintos imperfeitos. A teoria pulsional tem a função de mostrar como se monta o funcionamento do aparelho psíquico, além de relacionar este funcionamento ao

comportamento humano e às bases fisiológicas em uma relação tanto do homem “com ele

mesmo” em seus sentimentos e sensações (mentais e corporais), quanto nas relações externas, com os outros e com o mundo à sua volta (HANNS, 1999).

Martins (2005) afirma que “o corpo pulsional é diferente do corpo biológico” (p. 181), portanto, a pulsão é um termo que tem a difícil tarefa de abarcar o somato e o psíquico.

Vejamos o que disse Freud (1915) sobre isso na obra “Os instintos e sua vicissitudes”:

Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma ‘pulsão’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo (p. 127).

Conforme a citação acima, a pulsão é também corporal. Poderíamos conceituá-la como sentimentos sentidos por dentro e por fora (LAPLANTINTE, 1991), entre o somático (corpo) e o psíquico (representante mental). É sabido que se trata de um termo polissêmico, por isso, a rejeição ao reduzido uso do termo instinto (Instinkt) e a “preferência em deixá-lo reservado

para o comportamento dos animais” (ROUDINESCO, 1998, p. 628). As pulsões e suas

representações (Vorstellung) montam o funcionamento deste aparelho. Conforme a conceituação de Laplanche (1988b),

A pulsão não é, pois, nem um ser mítico, nem uma força biológica, nem um conceito-limite. Ela é o impacto sobre o indivíduo e sobre o Eu da

estimulação constante, exercida do interior, pelas representações-coisa recalcadas, que podemos designar como objetos-fontes da pulsão (p. 80).

Assim, o corpo pulsional é formado pelo corpo somático (biológico) e pelo aparelho psíquico. Uma tríade entre o corpo e a mente que resultam na ação, em um movimento contínuo. O movimento da vida. O que move Freud é a origem causal dos conflitos psíquicos, que nós, concordando com a leitura de vários teóricos como Szondi (1975), Schotte (1985), Laplanche (1988a), Martins (2012) e Hannz (1999), sobre obra de Freud, afirmamos que são pulsionais.

Laplanche (1988a) faz um questionamento sobre a pulsão: “para fazer o quê?” “a

pulsão, deve-se dela fazer alguma coisa?” (p. 73). Têm o sentido de força e energia, por isso a

alusão de movimento, de ação, para se “fazer” alguma coisa. Daí, a compreensão das palavras conceituais de Laplanche e Pontalis (2001) sobre o que é a pulsão: “Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo” (p. 394). Ainda para Laplanche (1988b), a pulsão é uma experiência. O autor faz uma diferenciação entre experiência (experience) e experimento (experiment). A experiência vivida e sentida, tanto no sentido de trazer significado, como diz Martins (2013a), quanto no sentir em ato e na pele.

Em nosso estudo tentamos pensar na possibilidade do movimento pulsional ser expresso na linguagem simbólica via verbos páthicos, uma leitura particular da fala dos pacientes na experiência clínica vivenciada. Guimarães (2008) diz que a clínica, faz parte do universo particular, mas no momento em que é escrita “entra no campo da experiência compartilhada ao nível da teorização, capaz de ampliar a rede de significações” (p. 93). Quanto à experiência prática, vivenciada, Laplanche (1988b), aponta quatro requisitos:

1) O determinismo psíquico: a causa é determinada pela vontade. Uma experiência interna (psíquica) que se exprime, projeta-se, no exterior. Aqui podemos perceber o movimento iniciado na mente, advindo da energia impulsora do desejo à intenção

(para nós, o verbo ‘querer’) e chama a atenção para o Isso.

2) As causas da ordem da representação: estas vão além dos múltiplos sentidos que se

pode dar, ou seja, pelas fantasias ou imaginações. A “representação- coisa no sentido

intencional, que se torna a verdadeira coisa, mas no sentido inconsciente” (LAPLANCHE, 1988b, p. 74);

4) Os fenômenos do deslocamento: neste ponto, o que intriga Laplanche, são as mesmas manifestações afetivas ligadas a representações e circunstâncias reais completamente distintas. As transferências, as metáforas e até a condensação são exemplos disso. Portanto, a pulsão não se resume as coisas do pensar humano, mas também à dimensão das experiências dos viventes, como o sentir, também no corpo efetivo material (ou corpo biológico, segundo o termo utilizado por Dejours, apresentado no tópico anterior). Martins (2012), levanta um conceito de pulsão que traz uma clareza, em uma ironia fina obscura, que demonstra a dificuldade de um conceito único e exato: “não é apenas uma coisa dentro do homem, mas uma coisa que o constitui e que o faz mover” (p. 36) (coisa como algo abstrato inominável, coisa como algo material, ou ainda coisa como força motriz. Tudo, de uma só vez). Ainda neste texto afirma, categoricamente, que o conflito do homem, em suas dimensões físicas e psíquicas entre a razão e os sentimentos, estão na pulsão. Veja a citação:

Entregue à pulsão sensível, o homem é prisioneiro de sua natureza, de suas necessidades físicas. Colocado sob o jugo excessivo da pulsão formal, o homem é coagido por sua razão, vítima de seu poder legislador, abstrato e desencarnado. Somente o jogo das faculdades – entre razão e sensibilidade – permite-lhe escapar a estes dois tipos de servidão (MARTINS, 2012, p. 36).

Para os românticos, o homem vive em constante tormenta (Storm) e pressão (Drang), sendo que a pressão é o que vem de dentro do homem (os desejos; o querer) e a tormenta é o que vem de fora, por exemplo, um impedimento natural, do poder como capacidade (können), diminuído pela doença física. Ainda Martins, quanto ao que vem de fora (a tormenta), o homem pode se proteger, quanto ao que vem de dentro, não há defesas, não há como fugir ou se esquivar (ROUDINESCO, 1998). O conflito psíquico se instala, nas concepções freudianas do recalque das moções sexuais, responsáveis pelas neuroses.

A teoria do destino, de Szondi (1975), afirma que “as pulsões e os mecanismos de

defesa fazem o destino” (p. 27). A capacidade de conscientização do homem o diferencia dos

animais, a conscientização e a escolha definem o destino. Ainda Szondi (1975) declara que são as funções do Eu e as funções da mente que condicionam o destino de livre escolha, sendo o eu o executor da escolha.

A partir da admirável descoberta de Szondi sobre a constituição de um sistema pulsional, Schotte (1985) organiza estas categorias em sistemas de circuitos pulsionais. O circuito pulsional do Eu faz uma comparação a uma viagem de trem na qual passa por quatro estações: Projeção; Introjeção; Negação e Inflação. Nesta última utilizaremos o termo Autocuidado, considerando ser mais adequada à palavra original Selbsthaltung. Veja a figura 01 (Szondi, 1975, p. 108):

Figura 01: Exposição esquemática do movimento circulatório do Eu. Fonte: Szondi (1975)

A Projeção é a mais primitiva das estações. Nela ocorre uma indiferenciação entre sujeito e objeto, ou seja, a exteriorização da própria potência de ser do Eu sobre pessoas. “Conduz, por projeção do poder próprio do eu, à formação de unidades duplas. Isto é, à vida do eu no outro” (SZONDI, 1975, p. 106). Na estação Introjeção o enriquecimento com valorização do mundo exterior e interior que permite um olhar diferente para a mesma situação da vida. A Negação trata-se do esforço do Eu em negar, inibir ou recalcar seu desespero ou sua dor. No Autocuidado ocorre o esforço do Eu em de duplicar sua potência de ser, por isso, a resolução.

Trazemos estes conceitos, embora de forma simplificada, porque o circuito pulsional aparece nas falas dos pacientes e assim, propomos uma análise pelo circuito pulsional do Eu em uma atenção específica aos verbos páthicos: querer, poder e dever, tema desenvolvido no capítulo a seguir.

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