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CAPÍTULO 1: AS REPRESENTAÇÕES CORPORAIS DO MASCULINO

1.3. O corpo masculino e as atuais tensões com a masculinidade hegemônica

Os modos de cuidar da aparência evidenciam o quanto o corpo significa o sujeito e como sua plasticidade permite que sejam inscritos sinais que demonstram significados definidos pela relação do indivíduo com os outros. Garcia (2011) explica que a questão da reconstrução corporal masculina através destas práticas estéticas ainda desperta receio devido ao fato da ameaça à virilidade, em vista disso há uma tensão em relação a estes hábitos de cuidados com o corpo por não reforçarem o caráter dominador da virilidade do “macho latino” (NOLASCO, 1995) como as práticas de musculação, pois:

Entre os praticantes de musculação parece existir, assim, a concepção de que a verdadeira masculinidade procede diretamente da imagem corporal do macho; esse corpo deve exprimir a essência do masculino, traduzindo em músculos, gestos, posturas e olhares a hombridade contraposta a tudo que é fraco, leve, suave, feminino e que, por consequência, ameaça e angustia essa masculinidade (SABINO, 2000, p. 94).

De acordo com esta assertiva, o sujeito masculino se integra e pertence a seu grupo pelas performances corporais que permitem sua identificação neste, conforme a ocorrência da masculinidade hegemônica (KIMMEL, 1998) pela corporeidade da força, virilidade e coragem, todo aquele indivíduo masculino que apresenta alguma característica socialmente considerada incomum e inferior, principalmente em relação às inscrições e marcações corporais, é estigmatizado quer seja pelas deficiências físicas ou pelas mudanças nas aparências pelos procedimentos citados (GOFFMAN, 1988).

A coexistência das masculinidades heterossexual e homossexual estabelecidas pela relação de hegemonia e subordinação (CONNELL, 1995) cria um campo de tensão por meio das corporeidades do gesto, das posturas e da aparência corporal. E em razão da masculinidade heterossexual ter sido construída como negação da masculinidade homossexual, Nolasco (1995) assegura que a primeira posição masculina se afirma diante da inquietação homossexual, ou seja, esta segunda masculinidade se mostra como limite e possibilidade das corporeidades masculinas. No que diz respeito aos cuidados com a aparência através das práticas estéticas de cortar e pintar os cabelos, aparar e tirar a barba e o bigode, fazer as unhas, depilação, massagem e limpeza de pele, a masculinidade heterossexual se reconstrói usando o corpo como agente, e esse corpo representa um homem consciente de que esses cuidados não afetam sua sexualidade conforme declara Felipe, cliente do Salão D'Flávio:

[…] antigamente os homens não se cuidavam, e as mulheres se cuidavam. E existiam até um preconceito, eu tava falando aqui a pouco que é um preconceito... “Ah, vai fazer as unhas é homem, é...” aí é, ai começava a, a achar que, que a opção sexual tava nas unhas ou no, no cabelo ou ir no salão. Então, exatamente falando isso, e a opção sexual tiver no, na sobrancelha, no cabelo, é muito frágil isso né? É um argumento muito frágil, então assim, eu acho que hoje tá crescendo muito, ainda tem muito a crescer, como tem muita gente com preconceito, e... eu acho que tá... tá aumentando os cuidados […]3535

Esta afirmação expõe que a masculinidade em questão se mostra vulnerável diante da plasticidade dos corpos de se adaptarem às exigências das relações externas destes indivíduos como também das delimitações entre o que é ser um homem gay e um homem heterossexual. O corpo, que demarca e identifica os sujeitos, põe esta masculinidade discutida num processo de constante devir por meio destes atos performativos (BUTLER, 2003), estes, por sua vez, representados pelos hábitos corporais estéticos mencionados, ressignificam estes sujeitos criados no “modelo antigo” de masculinidade sob o qual se projeta este “novo” tipo de masculinidade (NOLASCO, 1995).

Então, é possível, como mostra a mídia por meio da exibição das estéticas corporais de atores ligados até então ao mundo predominantemente heterossexual, “que o homem [seja] bonito sem perder a masculinidade” (Luís, cliente do Salão Presidente)3636,

quer dizer, o sujeito inserido no contexto da valorização da imagem deve se sentir seguro em relação à sexualidade, a qual, segundo o depoimento do Felipe, não deve ser modificada por causa de qualquer cuidado que se venha a ter com a aparência do corpo. Tal preocupação em ressaltar a importância de ser um homem heterossexual perante estas práticas corporais estéticas se referência ao que Boris (2000) fala sobre a construção sociocultural da masculinidade fundada nos deveres e nas exigências que alguns homens ainda sofrem para provar a sua masculinidade a si mesmo e aos outros, principalmente, no que diz respeito à sexualidade quer seja pelas falas, atitudes e pelo comportamento, revelando assim o quão frágil se mostra esta tipificação.

Assim, conforme já colocado sobre a relevância das performances corporais na construção e representação das masculinidades, estes homens convivem entre o desejo de aceitação no ambiente social, as exigências de passar uma imagem de segurança com a questão de reafirmar suas masculinidades não totalmente pautadas na construção do homem “macho” mas, que, de acordo com Boris (2000), ainda apresentam características desta

35 Advogado, 52 anos, casado. Entrevista realizada no dia 28 de fevereiro de 2015

masculinidade hegemônica mesmo que de forma sútil. Considerando esta ocorrência, Badinter (1993) os classifica não como “novos homens”, mas, sim, como homens em mutação por conciliarem solidez e sensibilidade na construção de sua imagem, a qual os auxilia nos seus reposicionamentos nas relações interpessoais e sociais.

Considerando o corpo como indispensável nesta caracterização, Ory (2011) diz que o corpo se torna a engrenagem que provoca a dinâmica, o movimento dos séculos XX e XXI, “assim, o corpo ora é visto como constante no mundo de fluxos, ora como essência do fluxo” (VILLAÇA, 2014, p. 51), por causa das transformações que ocorreram nele por meio das suas imagens e práticas. Tendo o fator econômico como suporte desta mudança, o individualismo põe a pessoa no centro, antes da sociedade, em vista da busca de sua autonomia e, portanto, este se torna sujeito e objeto de uma economia da cultura do corpo assim como de um discurso “hedonista-narcisistica”. Então, a aquisição de práticas corporais, consideradas femininas de um lado e homossexuais de um outro, por homens heterossexuais não deixa de representar uma significativa mudança.

Com isso, a reconstrução da aparência corporal masculina indica uma equidade em relação ao que até então era considerado característico do comportamento feminino, pois os hábitos estéticos, além dos considerados tradicionais como barba, cabelo e bigode, que começaram a fazer parte das práticas corporais masculinas, demonstram como a corporeidade é definida culturalmente.

Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais ou então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o significado cultural por si mesma. Em ambos os casos, o corpo é representado como um mero instrumento ou

meio com o qual um conjunto de significados culturais é apenas externamente

relacionado. Mas o “corpo” é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero (BUTLER, 2003, p. 27).

Se referindo a esta assertiva para a compreensão do corpo como esboço onde se inscrevem os aspectos de uma cultura, mas também, considerá-lo como a própria cultura, como agente passivo e ativo na construção e representação das masculinidades idealizadas ao longo da história na sociedade ocidental, percebe-se essa “miríade” dos corpos como possibilidades e significações diversas de identidades em corpos já marcados socialmente. Isto quer dizer que mesmo com um corpo sexuado, que é o primeiro quesito de identificação do sujeito no mundo, o indivíduo pode assumir masculinidades desvinculadas dos estereótipos

por meio da desconstrução ou reconstrução do seu corpo, que também não deixa de ser uma nova construção dos sujeitos.

Destarte, atentando às modificações das relações do homem com a masculinidade, que atualmente se considera a existência de masculinidades, e com as formas de apresentar o seu corpo, quer seja motivado pelas convenções sociais e/ou por questões subjetivas “[...] da qual retira um benefício ao mesmo tempo narcíseo e social” (LE BRETON, 2009, p. 78), a discussão deste trabalho continua com o enfoque de estudar a relação entre as práticas estéticas corporais de um grupo de homens, frequentadores do salão de beleza unissex Presidente e do salão de beleza masculina D'Flávio, com as suas masculinidades, e tendo como problemática a importância que estes clientes dão aos cuidados com aparência por meio destes hábitos com a contradição de “ser vaidoso na medida” como muitos se classificam.

Conforme os entrevistados, esta atenção voltada ao corpo ocorre por motivos que não se restringem à “vaidade pela vaidade”, ou seja, somente à exposição do belo corpo, mas, sim, por causas consideradas “utilitárias” para a durabilidade e apresentação corporal que passe credibilidade e confiança: saúde, higiene, envelhecimento, trabalho e mulheres

Elucida-se que a relação destes homens contemporâneos com os cuidados direcionados aos seus corpos se dá por mediações das convivências sociais, que correspondem aos julgamentos do olhar dos outros no que diz respeito às mensagens que as aparências podem transmitir, a efemeridade do “corpo-matéria”, pois se há uma preocupação estética voltada para a saúde, higiene e o envelhecimento significa a consciência do desgaste físico corporal ao longo do tempo, e o desejo “narcíseo” de se sentir bem.

Então, entre mediações e “medidas”, estes homens configuram suas masculinidades nestas inscrições e nestes desempenhos corporais frequentando os espaços que prestam serviços relacionados aos cuidados estéticos, o salão de beleza unissex Presidente e o salão de beleza masculina D'Flávio, nos quais eles criam vínculos e estabelecem uma sociabilidade com os donos e os funcionários. E, desta forma, as presenças e as relações nestes espaços representam nas rotinas destes interlocutores a importância da aparência nas atuais corporalidades dos homens.