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1. O Corpo e a Memória na Tradição Metafísica

1.3. O corpo na metafísica cartesiana

O dualismo corpo-alma, na sua formulação platônica, representa um dos mais importantes expoentes dessa concepção desde a Antigüidade. Não obstante, essa dicotomia permeia todo o pensamento ocidental, sob diversas modalidades, chegando até a modernidade pela influência da concepção do filósofo e cientista francês René Descartes.

Ele também elabora uma posição dualista ao compreender o corpo e a alma como naturezas distintas, divergentes. A partir dessa distinção, Descartes exalta a alma, pois, segundo ele, somente ela permitiria o conhecimento da verdade. Nesse sentido, ele reedita a separação radical, dividindo o homem em res cogitans, coisa pensante ou alma, e res extensa, ou corpo, que não faz parte da sua genuína natureza.

O filósofo em questão, numa época de mudanças e crises epistemológicas, se via impelido, a encontrar um método científico mais rigoroso e consistente do que os que o antecederam. Deste modo, Descartes desenvolvia suas idéias visando construir um método que conduzisse à verdade sem incorrer em erros e enganos. Para tanto, julgou que os sentidos corporais não são confiáveis para se alcançar um conhecimento verdadeiro. A

partir dessa reflexão, vemos que se reeditava o conceito de inferioridade e desprezo do corpo.

Até o momento presente, tudo o que considerei mais verdadeiro e certo, aprendi-o daprendi-os sentidaprendi-os aprendi-ou paprendi-or intermédiaprendi-o daprendi-os sentidaprendi-os; mas às vezes me dei caprendi-onta de que esses sentidos eram falazes, e a cautela manda jamais confiar totalmente em quem já nos enganou uma vez.49

Seu método consistia em duvidar de tudo até chegar a uma conclusão indubitável.

Esse método o levou a afirmar que a única coisa em que não se podia duvidar era o processo de pensamento. Apenas por essa atividade poderia chegar à certeza de que ele existia. Essa afirmação imortalizou-se na frase: penso, logo existo.

Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava.50

Mais adiante reflete sobre qual é a natureza do pensar: o que era ele enquanto pensante, de que tipo de substância seria o pensar:

[...] compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.51

A concepção cartesiana do corpo influenciou fortemente a revolução científica, uma vez que destituiu a sacralidade que envolvia a idéia de corpo até a Idade Média. Descartes posiciona, na modernidade, o corpo como objeto possível de ser estudado, já que não passava de algo exterior e inanimado, apenas um mecanismo (res extensa) distinto da

49 DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Nova Cultural. Os Pensadores. 1999, p. 250.

50 DESCARTES. Discurso do método, p. 62.

51 Ibid.

natureza pensante (res cogitans). Para este filósofo e cientista, uma vez ocorrida a morte do corpo, apenas restava a matéria sem a presença do espírito, que não passava de uma máquina que parara de funcionar.

Para evitarmos, então, esse equívoco, devemos considerar que a morte nunca ocorre por culpa da alma, mas apenas porque algumas das principais partes do corpo se deterioram; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere daquele de um morto como um relógio, ou outro autômato (ou seja, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi construído, com tudo o que se exige para a sua ação, distingue-se do mesmo relógio, ou de outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de atuar.52

Descartes definiu o corpo como uma máquina autônoma que tem o princípio dos movimentos em si mesmo: o coração era o que gerava o calor responsável pela ação dos órgãos e pelos movimentos dos membros.53

Mediante tais afirmações, Descartes fez uma distinção entre existência e aspecto físico. A existência apenas estaria vinculada ao pensamento. Ele considerava o corpo como uma imperfeição; apenas o pensamento era perfeito, caso o homem não fosse perturbado por nenhuma paixão. A faculdade do pensar não tinha nenhuma dependência do corpo, já que o pensamento provinha de uma origem transcendente. Sobre a origem da idéias, Descartes afirma:

De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha [...] para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. [...] por já haver reconhecido em mim com bastante clareza que a natureza inteligente é distinta da corporal [...].54

Sustentando essa lógica psicofísica, Descartes tornou-se um dos filósofos mais importantes da modernidade e, exceto pela concepção mecanicista do corpo, não apresenta

52 DESCARTES. As paixões da alma. Art. 6, p. 107.

53 Cf. DESCARTES. As paixões da alma. Art. 16.

54 DESCARTES. Discurso do método, p. 63-64.

grandes novidades na sua teoria dualista, reeditando, de alguma forma, a interpretação platônica do homem dividido em corpo e alma.

Vimos no desenvolvimento deste capítulo um panorama das três principais teorias

— platonismo, cristianismo e cartesianismo — que compreendem o mundo, o homem e o corpo e suas manifestações a partir da dualidade metafísica. Platão é o expoente na afirmação da dicotomia corpo-alma, bem como da vinculação da memória à alma, a outro mundo e, conseqüentemente, do esquecimento do corpo e da Terra, considerando, por sua vez, estes últimos como desprezíveis e inferiores. O cristianismo representa uma continuidade mais abrangente e de divulgação universal das idéias defendidas pela filosofia socrático-platônica. O desprezo ao corpo, a exaltação da alma e de outro mundo e a crença na precariedade do homem, passa a ser o cerne, a espinha dorsal, da moral cristã, que garante sua hegemonia ao atiçar e manipular a decadência da força instintiva do homem.

Na modernidade, com a postulação de Descartes do dualismo psicofísico, a compreensão do corpo entendido como a parte inferior de uma dicotomia foi reeditada sob uma versão mecanicista. É amparada nestas três formas dualistas de compreender o homem que a memória do corpo como tormento, como suporte de suplícios e condenações para acerto de contas e como objeto utilitário encontrou sustentação, desde os períodos clássicos até a atualidade, em que se continua conservando e entoando discursos despotencializadores, nos quais se verifica a decadência das forças instintivas.