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CAPÍTULO 2 – LITERATURA INFANTIL NA ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL

3.3. O corpo negro: uma construção sociocultural

3.3.1 O corpo negro na literatura infantil brasileira

Segundo Ratts e Damasceno (2006), o escravismo atingiu, como sistema desumanizador, o corpo de homens e mulheres negras de várias maneiras, aprisionando-o, confinando-o em navios, expondo-o em mercados, açoitando-o e explorando-o. Algumas das formas de violência que atingiram o corpo africano eram, por exemplo, ser obrigado a andar

descalço para indicar sua condição de escravizado ou ser marcado pelo proprietário, do mesmo modo que se marca o gado. Após o período escravista, o corpo negro continuou como referência da diferença racial que, muitas vezes, o vincula ao preconceito e o acomete com distintas formas de discriminação.

Ao lado de práticas que violentavam o corpo negro, durante a escravidão, houve também a construção de um imaginário estereotipado sobre o negro africano e seus descendentes que justificava a necessidade de seu cativeiro. Com o fim da escravidão, as representações sobre o corpo negro foram se transformando, mas mantidos os aspectos negativos que desvalorizavam o seu corpo. Se antes eram considerados sem moral, agora possuíam incapacidade intelectual e física. A sexualidade foi enfatizada na representação da mulata. A pobreza tornou-se um estereótipo relacionado ao corpo negro, “Ou seja, um negro integrado socialmente é ainda visto como alguém fora do lugar, pois ainda há uma expectativa social, introjetada em nosso imaginário, de que o único lugar que lhe pertence é o de „coisa‟, de negação da subjetividade e, mais ainda, de não-humanidade, imposto pela escravidão” (GOMES, 2008, p.137).

Para Ratts e Damasceno (2006), é necessário desvincular, pelo menos em parte, a analogia entre o corpo negro e a escravidão. Homens e mulheres de origem ou ascendência africana, consideram o corpo negro como marca de identificação, portador de diferentes práticas culturais do ponto de vista dos penteados, dos adornos, da indumentária, das vestimentas, por exemplo, como a primeira referência da cultura negra, que se destaca em expressões religiosas, musicais e corporais, como o samba, a capoeira, a congada, entre outras.

Após a abolição da escravidão, a sociedade brasileira criou uma “teoria geral do corpo”, que se tornou, segundo Da Matta (apud GOMES, 2008) o “racismo à brasileira”, que apresentou duas fases distintas: a primeira diz respeito ao modelo social, hierarquizado e rígido, que tinha no corpo a principal referência; a segunda refere-se à glorificação da miscigenação e ao incentivo à mestiçagem, visando o branqueamento do povo brasileiro. Em ambos os casos, o corpo era o principal elemento da elaboração ideológica. Diz Bento (2009) que

Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua autoestima,

culpa - o pela discriminação que sofre, e por fim justifica desigualdades raciais (BENTO, 2009, p. 25).

De acordo com Inocêncio (2006), na cultura visual brasileira o corpo negro é mostrado como a antítese do que se imagina como normal. Sua representação está associada ao caricato, como se existisse para representar o contrário do humano. Ele também amedronta, pois lhe foi atribuído socialmente uma noção de força que se sobrepõe ao intelecto, ao mesmo tempo em que provoca risos, pois sua leitura está vinculada a comparações que o animalizam.

Segundo Gouvêa (2005), nos livros de LI publicados na década de 1930, a representação do corpo de brancos e negros era realizada de maneira diferente, havia quase que um paralelismo nesta representação. Enquanto o personagem branco era descrito como tendo cabeça, cabelo, lábios e nariz, o negro tinha carapinha, pixaim, beiço e ventas. Ambos representados como corporalmente distintos, e a representação desqualificando o corpo do personagem negro, animalizando-o. “Esta suposta inferioridade estética corresponderia uma desqualificação cognitiva. Ao animalizar personagens negros, os autores reproduziam uma representação que associava tal inferioridade a uma menor capacidade cognitiva” (GOUVÊA, 2005, p.88).

O rosto é também um elemento que deve ser observado, pois, segundo Inocêncio (2006), “[...] devemos nos ocupar de reflexões sobre imagens produzidas com o intuito de constranger os rostos [...] que se diferenciam do rosto ideal” (2006, p.188). Segundo este autor, a face e seus elementos constituintes, boca, olhos e nariz, também recebem tratamento diverso em nossa cultura visual, sendo que desde a mais tenra idade aprendemos a distinguir a face negra da face branca não por suas particularidades, mas pelo que representam no convívio social. A face negra, ressalta Inocêncio, muitas vezes, em filmes ou programas humorísticos, é representada de maneira caricata, com olhos arregalados. A chamada black face, as imagens que associam o nariz negro às ventas de animais, e as brincadeiras relacionada à boca da maioria das pessoas negras, denominada muitas vezes de beiço, devido ao volume da parte externa dos lábios, são algumas formas de depreciar o corpo negro e reforçar preconceitos. Devemos, deste modo, estar atentos ao modo como estes elementos estão representados também em livros de literatura infantil.

Rosemberg (1985), depois de análise de livros de LI, afirma que “a perda da individualidade se faz sentir principalmente para o não branco. Na ilustração a mulher negra simplesmente não existe: quem aparece é a doméstica negra, representada monotonamente com os mesmos traços: lábios grandes, gorda, seios avantajados, lenço na cabeça, brincos e avental” (1985, p. 83).

O corpo é uma construção histórica e social, sendo que se faz necessário olhar criticamente tanto para as imagens que desumanizam o corpo negro ou levam a pensá-lo sempre de maneira jocosa quanto àquelas que demonstram uma representação que respeita e valoriza suas características, considerando que, como afirmam diversos autores, através da LI se constroem valores éticos e estéticos.

3.4. O cabelo

O cabelo é uma característica marcante da população negra, sendo que Inocêncio (2006, p.187) nos alerta para o fato de que ainda hoje há no imaginário brasileiro valores que qualificam o cabelo como sendo “bom” ou “ruim”, dependendo da textura dos fios, liso ou crespo. “O cabelo crespo, uma vez assumido, desperta uma série de reações que vão do riso à reprovação” (Inocêncio, 2006, p.187). Ao propagarmos e aceitarmos os termos “cabelo bom” versus “cabelo ruim”, sem que se perceba, estamos aceitando a oposição maniqueísta bem versus mal e, de maneira subliminar, a negritude é associada à ruindade, a maldade em oposição à bondade.

No entanto, ao estudarmos as culturas negras em suas dimensões milenares, perceberemos que, de acordo com Inocêncio (2006), para várias civilizações africanas o cabelo possui importância irrefutável como referencial estético, cultural, identitário e, acrescentamos, em diversos grupos étnico-religiosos. Nessas culturas, há vários penteados específicos para ocasiões especiais, elaborados cuidadosamente como se fossem uma verdadeira obra de arte.

Durante o período da escravidão, ao chegar ao Brasil o cativo africano tinha a cabeça raspada, o que correspondia a uma forma de violência e, para muitos povos africanos, a uma forma de mutilação. Na modernidade, muitos jovens e grupos tornaram seus cabelos símbolos de resistência e autoafirmação. Alguns exemplos são o movimento black power, poder negro, nas décadas de 1960 e 1970, que propagava uma estética própria inspirada na África, ou os cabelos trançados, crespos, arredondados, black power ou afro, etc. De acordo com Gomes (2008), nas décadas de 1960 e 1970 o cabelo estilo afro ou black power foi utilizado pelos Panteras Negras nos Estados Unidos visando a contestação e, ao mesmo tempo, a reafirmação do negro enquanto sujeito cuja ascendência africana deveria ser valorizada. O movimento

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