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Eixo II ‒ Dança Digital: uma estética tecnológica

2.1 O corpociborgue revisado

Durante o período do mestrado, tive a oportunidade de me debruçar sob os estudos do corpo na contemporaneidade, em especial, ao corpo do artista. Tais estudos culminaram na dissertação de mestrado, intitulada, Corpos Virtualizados, Danças

potencializadas: atualizações contemporâneas do corpociborgue (2013), que concebeu

o conceito de corpociborgue, enquanto atualização do cyborg, conceito apresentado pela bióloga Donna Haraway (2009).

No relato da presente pesquisa, o corpociborgue é apresentado como estruturante da ótica teórico-metodológica, pois a forma que uma proposta metodológica em dança concebe, percebe, trabalha e pensa o corpo orienta o processo didático e as demais relações de ensino-aprendizagem. O corpociborgue é um conceito construído para associar o corpo ao espaço-tempo em que ele transita; expõe a emergência dos novos fenômenos e a necessidade de uma posição política; reivindica a existência de corpos pós-humanos, confrontando as velhas identidades e orientações hierárquicas, patriarcais, centradas em valores masculinos.

No Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e socialismo-feminista para o

século XX(2009) Donna Haraway utiliza a imagem do cyborg para problematizar as relações entre corpo, tecnologias, sociedade e cultura. Ao afirmar que “[...] um cyborg

é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também de ficção [...]” (HARAWAY, 2009, p. 36), a autora sintetiza a proeminência do corpo diante do amplo entrelaçamento dos corpos humanos com as tecnologias, incluindo o debate que essa simbiose vem provocando no pensamento atual. Esse manifesto, é uma literatura que oferece um grande espectro de análise das relações entre o feminismo e as novas tecnologias; uma primeira abordagem sobre o binômio corpo e tecnologia ‒ principal arcabouço teórico para a proposição do conceito

corpociborgue.

O pensamento de Haraway apresenta não somente uma escrita que coloca em evidência seu campo de formação, mas, principalmente, uma narrativa de ordem emancipatória. Juntamente com Haraway (2009), o conceito corpociborgue questiona as dicotomias ocidentais existentes entre mente/corpo, organismo/máquina, natureza/cultura; dualidades que também dão suporte ao patriarcado. Seu foco sobre as relações de poder busca reparar a ênfase da ideologia masculina e capitalista na cultura científica. Nos estudos de Haraway o conceito de cyborg é retirado do imaginário habitual (uma espécie de androide, ou um corpo metade corpo e metade robô) para explicar como contradições na política e na teoria feminista devem ser unidos, em vez de divididos; similar à fusão do corpo com as máquinas (REGO, 2013, p. 43).

Nessa perspectiva, destaco o caráter mutável do corpo em transição perene; o corpo produtor da cultura. Um sistema auto-organizado ‒ com capacidade de responder às mudanças ‒, por meio da troca de informações, que se adapta a ambientes novos ao passo que o modifica. Os dualismos, que têm servido de fundamento ao pensamento ocidental, são reflexos de uma perspectiva linear, gerados “[...] a partir de uma série de pressupostos subjacentes e desenvolvidos ao longo de vários séculos desde o Renascimento, passando pela Revolução Francesa, até a atualidade [...]” (NAJMANOVICK, 2001, p. 7). Se a Modernidade, instaurada por René Descartes (1596-1650), fundou a concepção do homem que compreende e produz a partir da dicotomia corpo e mente, o sujeito aqui apresentado opera a reintegração do corpo, enraizando-o na condição bio-psico-social-virtual e política (REGO, 2013, p. 28).

O cyborg de Haraway traz no conceito a construção de um discurso crítico sobre os poderes hegemônicos, materializando novos significados para a natureza, para o corpo humano e para as relações de diferença. Na dissertação supracitada, é realizada uma análise crítica acerca da forma pela qual a biotecnologia, as tecnologias

comunicacionais e as tecnologias médicas estão construindo os nossos corpos. De acordo com a taxonomia proposta por Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera (1995, p. 3 apud Tomaz Tadeu, 2000, p. 10), as tecnologias ciborguinianas podem ser restauradoras, normalizadoras, reconfiguradoras e melhoradoras, conforme pode ser observado no Quadro 13.

Quadro 13 ‒ Como as tecnologias transformam os nossos corpos.

Restauradoras Normalizadoras Reconfiguradoras Melhoradoras

Permitem restaurar funções e substituir órgãos e membros perdidos. Retornam as criaturas a uma indiferente normalidade. Criam criaturas pós- humanas que são iguais aos seres humanos e, ao mesmo tempo, diferentes deles. Criam criaturas melhoradas, relativamente ao ser humano. Técnicas de correção de funções avariadas do corpo (implantes, próteses, obturações, aparelhos e ortodônticos), além de tecnologias de mutações temporárias (a maquiagem, a tatuagem temporária e a sobrancelha de rena), Psicofármacos, remédios e vacinas. Técnicas de body buildinge body modification, incluindo cirurgias com fins estéticos.

Técnicas de

conexões permitidas por serviços

informáticos e telecomunicacionais (desde o celular até a realidade

aumentada).

Fonte: Elaborado pela autora.

O Quadro 13 ilustra as intervenções das tecnologias sobre o corpo, da simbiose corpo-tecnologias que gera esse corpo pós-humano 4 , aqui denominado de corpociborgue. Celulares, aparatos médicos, psicofármacos ou próteses são artefatos

utilizados cotidianamente, configurando corpociborgues, por meio da incorporação de tecnologias que potencializam capacidades corporais, sejam elas sensórias, musculares ou perceptivas.

Donna Harawayressalta a maneira pela qual os corpos são nutridos diariamente

4 O pós-humano representa a construção do corpo como parte de um circuito integrado de informação e

matéria, o qual inclui componentes humanos e não-humanos, tanto de microchips de silício quanto de tecidos orgânicos, binary digit de informação e binary digit de carne e osso.

por produtos industrializados; reorganizados a partir da ingestão de drogas e alterados por cirurgias e procedimentos médicos, para ela “A verdade é que estamos construindo a nós próprios, exatamente da mesma forma que construímos circuitos integrados [...]” (HARAWAY, 2009, p. 24). A rede que tece o sentido perceptível, emotivo e móvel também tece o corpo no sentido social e cultural, havendo uma terceira dimensão que atravessa, tanto o primeiro quanto o segundo: “[...] a das relações tecnológicas, das simbioses do corpo e as tecnologias [...]” (IHDE apud SANTAELLA, 2005, p. 10).

Nessa perspectiva, compreende-se que a aceleração das descobertas científicas e tecnológicas vem afetando profundamente nossas habilidades para observar, interpretar, transformar e manipular as ações corporais. Sob efeito de uma crescente complexidade tecnológica o corpo, assim como a sociedade, está passando por modificações tão intensas que adotar uma perspectiva Inter e transdisciplinar nos processos educacionais, sem menosprezar as Tecnologias Digitais de Informação, Comunicação e Expressão (TICE) é uma postura responsável diante dos fenômenos sociais.

A educação deve servir para dar sentido ao mundo que rodeia o corpociborgue, para ensinar ao corpo a interagir socialmente e solucionar problemas. O potencial educativo de um software, um aplicativo, ou de qualquer outra TICE, está em considerar essa tecnologia como um potencial criativo, o qual, carregado de sentido, constrói conhecimento por meio da interação social e potencializa a criação de signos. As máquinas de calcular, as telas, os programas não são apenas objetos da experiência, pois fornecem modelos teóricos para as tentativas de conceber, racionalmente a realidade. A ação gerada por meio dessas tecnologias define a informação que retorna como resultado da ação que a gerou. Ao produzir, transformar e propagar informações, o corpociborgue amplia sua capacidade de dominar operações formalizadas num ambiente de códigos e mensagens.