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O “corpomídia” e as reinvenções de Si na poética de DÔ

Em fevereiro de 2012, foi instaurado, na primeira etapa do processo criativo, um espaço-tempo de experimentação: corpos em cena; intervenções sonoras diversas; criações com seu corpo e com elementos externos; os atuantes em relação. Havia uma espécie de caos criativo: múltiplas sonoridades, ruídos, vocalizes, relações corpo-corpo e corpo-objeto/instrumento musical. Formaram-se dinâmicas corporais múltiplas e individualizadas, de tal maneira que cada corpo estava dentro de uma criação própria, numa vivência ímpar.

Após essas experimentações, Tadashi Endo, diretor, que estava mediando aquela situação, desenvolveu um diálogo com os atuantes acerca das possibilidades de dinamizar os movimentos, em formas e ritmos, de modo a envolver o corpo todo, em dimensões, abrangências e diferentes usos. Ele pontuou, ainda, a importância de se atentar para os detalhes na construção do movimento.

O diretor sugeriu que os atuantes investissem numa experiência criativa que convocasse diferentes movimentos, até que cada um sentisse a movimentação e dançasse, criando uma coreografia para si mesmo, entendendo que cada um "pode fazer uma coreografia para o seu próprio corpo", disse ele.

Foto 21 – Tadashi Endo e Elane Nascimento (ao fundo). Foto: João Milet Meirelles, 2012.

Dito isso, Tadashi pediu que a música caótica que permeava a experimentação fosse retomada e ele mesmo começou a dançar, livremente, criando uma coreografia própria e convidou os atuantes a fazerem o mesmo. Logo todos se envolveram num caos cênico, dançando, tocando, criando sonoridades, ruídos vocais, enfim, criando coreografias para os seus corpos. Naquele experimento acabaram reinventando modos de se movimentar, como se transculturassem as possibilidades de ação do seu corpo.

Sigamos com essas imagens em mente.

O quadro descrito há pouco, inspirado pelas situações daquele momento de experimentação, conduz à percepção de algo óbvio, mas que precisa ser reforçado como princípio das relações que ali se estabeleceram. Processos e fenômenos que atravessaram a criação e o movimento transcultural que a permeia e que por ela também é fomentado.

Aqueles são corpos em vida e como tais se constroem e se reconstroem a partir da ação, num continuum. Enquanto rede semântica, epistemológica e enunciativa, o corpo vivo estaria presente em todo tipo de ação, nos diversos fluxos da vida. É, então, a ação que gera outras redes, outras identificações, apropriações e aproximações, reinvenções. Estas, por sua vez, são propulsoras de outras ações.

Esse movimento intercambiado não se dá de forma isolada. Ele se desenvolve dentro de um contexto, de um espaço-tempo que vai impactar sobre as redes de ações desencadeadas. Envolve, nesse sentido, de acordo com as considerações de Greiner (2005), uma aliança irreversível para os estudos do corpo: a aliança entre natureza e cultura.

Essa relação “umbilical” é algo, obviamente, que não surge no nível dos estudos científicos. O seu reconhecimento é que, talvez, apareça no universo das teorias do corpo. Mas, em algumas culturas africanas, desde sempre, reconhece-se uma relação entre o corpo e a natureza. No candomblé, por exemplo, uma religião de matizes afro, compreende-se que a ancestralidade vem desse lugar, dessa relação, antes mesmo do homem se tornar o que é hoje, o que, por sua vez, é resultado dessa natureza e se desenvolveu nas relações, sob os impactos e intercâmbios culturais.

Na introdução do segundo capítulo da minha dissertação de Mestrado26, trouxe algumas noções do que seria a ancestralidade. Dentre elas retomarei aqui aquela que nasce da experiência, da vivência com as culturas afro.

Em uma das palestras ministradas para o Bando, como fonte de pesquisa para construção do espetáculo do Bença, Valdina Pinto (ou Makota Valdina, como é conhecida em função da sua iniciação ao candomblé), uma das principais representantes das religiões de matizes africanas na Bahia, expõe seu entendimento do que seria a ancestralidade:

Ancestralidade é um tempo que não é o humano. Os orixás, os ancestrais, o são porque vieram antes, porque a natureza veio antes do ser humano. Quando surgiu o protótipo do homem, já existia tudo para evolução da raça humana. Isso é que é a essência do orixá. Na natureza é que está a essência do que se cultua no candomblé. E como ancestrais, eles vieram antes e nós somos resultado disso. (Informação verbal)27

Também de acordo com alguns princípios da dança butô, como já foi pontuado aqui, em determinados conceitos relacionados ao lugar que o homem passou a ocupar, ao constituir-se enquanto sujeito no universo, há uma quebra de fronteiras que problematiza justamente os limites de “estados fundamentais”: ser vivo, ser humano, ser pessoal. Diante e por entre o “corpo morto”, enfatizou Greiner (1998, p.

26

cf. LÍRIO, 2011, p. 61. 27

59), “conceitos de inteligência, consciência, pensamento e cultura perdem a marca do antropocentrismo, prolongando-se pela natureza”.

Esses trânsitos continuamente intercambiados são fundamentais para que se possa compreender as redes estabelecidas pelo corpo em ação. São movimentos invisíveis que atravessam os corpos dos sujeitos, essa rede carregada de sentidos e significações, potencializando múltiplas corporalidades e as subjetivações nelas implicadas.

Foi nesses movimentos de trocas com o espaço-tempo que os envolve que operaram os corpos dos atuantes de DÔ, ao reinventarem-se, ao criarem suas próprias danças, coreografias próprias de cada corpo. É esse o princípio do “corpomídia”, na interpretação de Greiner (2005): o corpo como resultado de uma série de agenciamentos, negociações e mediações entre as informações, as referências que transitam por ele com aquelas que o mesmo já traz consigo.

Nesse sentido é o que os atuantes de DÔ potencializaram suas corporalidades num movimento de transculturação que perpassa pela complexa aliança natureza- cultura, pelas múltiplas culturas e redes epistemológicas em relação e em re- presentação nessa poética. Isso, segundo os próprios atuantes, pode ser sentido no corpo. Leno Sacramento diz: “Todos os meus músculos sentem depois do

espetáculo, sabe?! Eles estão lá tensos, relaxados... tá o tempo todo em movimento”. 28

Seria esse o estado e o processo que envolvem o corpo vivo, em ação, subjetivando-se, corporificando invisibilidades. Esse lugar do invisível é, também, outro elemento importante no butô, na medida em que no espaço intervalar entre o interior e o exterior dos sujeitos operam processos que não portam visibilidade plena. Nesse sentido é que Greiner (1998, p. 38) afirma que “butô é sobre o que não se vê, mas lá está, em trânsito”.

Nelson Rodrigues, no ano de 1978, em entrevista ao programa Vox Populi, disse que o “o óbvio é invisível”. Algo semelhante à compreensão de Le Breton (2011, p. 8) quanto à obviedade que os traços somáticos do corpo podem sugerir: “O corpo parece óbvio. Mas a evidência é frequentemente o mais curto caminho do mistério. O antropólogo sabe que ‘no cerne da evidência [...] há o vazio [...]”. A evidência estaria num “corpo” inerte, que não tem vida, que não está em ação.

28

Recorte de depoimento concedido em entrevista a mim por Leno Sacramento, em 03 de maio de 2013.

Quando este é atravessado por processos, ele ganha vida e estabelece relações, gerando a corporalidade e a corporeidade do atuante.

Ambas afirmações levam a uma reflexão na qual o sentido pode ser vislumbrado como algo que é criado em cada sociedade, em cada cultura, em cada corpo, à sua maneira. Esse processo é que gera uma rede semântica e, ao mesmo tempo, subjetiva o corpo por meio de diversas formas de re-presentação e, antes disso, das múltiplas possibilidades de ação.

Esse entendimento veio à tona também diante das palavras do atuante Leno Sacramento quanto ao seu lugar na cena de DÔ:

Eu me vejo um corpo. Um corpo onde se faz tudo, sabe?! O operário padrão, sabe?! Aquela pessoa que não vai dizer: “Ah, eu sou dançarino”. Não, eu não posso dizer que eu sou dançarino. Eu também não posso dizer que eu sou ator, nesse espetáculo. Nesse espetáculo, eu sou um corpo. 29

Essa percepção de Leno tem sido importantíssima para o desenvolvimento do pensamento que vem sendo construído nesse estudo. Trata-se de um reconhecimento de Si como potencialmente aberto às múltiplas possibilidades de (re)criação de sua corporalidade, das imagens e re-presentações dos matizes de suas culturas. Diz respeito a um entendimento do corpo como “lugar” de contínua reinvenção: o corpo vivo, em ação.

Esse atuante percebe o seu corpo de modo amplo, em sua complexidade: aquele corpo do sujeito que experiencia a vida, as relações socioculturais cotidianas, que constrói e reconstrói discursos, sob as diversas possibilidades de expressão, sendo ele marcado pelos traços somáticos e culturais; e, ampliando a percepção acerca do seu próprio corpo, ele reconhece, ainda, um estado, um modo de ser e estar em cena, que é atravessado pelos matizes diversos mediados cênica e culturalmente na poética da qual faz parte, nesse caso, aquela de DÔ.

Quanto a isso, Greiner (1998) sintetiza a importância de um olhar como esse de Leno, de um pensamento holístico acerca do corpo. Segundo ela, isso implicaria tomá-lo como espaço-tempo compartilhado de trânsitos diversos, de modo que não cabe uma compartimentação do corpo que está em cena e daquele outro com o qual o atuante vive no dia a dia:

Não se pode separar o corpo que dança do organismo real, do mesmo modo que não se pode dividir passado mitológico do passado biológico. De alguma maneira [...], o trânsito ali está (no

29

corpo) e traz implicações irremediáveis. [...] É na mediação entre o que se vê representado, artística e culturalmente, o passado mitológico e as marcas residuais na organização da matéria viva (pedra, corpo, planta...) que aparece o diagrama da complexidade, envolvendo a criação espaço-temporal. (Ibid., p. 70)

Essas últimas reflexões, a partir do discurso de Leno Sacramento e da fala de Greiner, arrematam, na construção do pensamento que vem sendo desenvolvendo aqui, as alianças e redes estabelecidas pelo corpo no sentido de reinventar-se. E, aí, num sentido amplo, não diz respeito apenas ao que é experimentado para estar em cena. Mas, considerando esse movimento como parte de um processo que permeia toda a experiência do indivíduo enquanto corpo vivo.

Estabelece-se, nesse caso, relações com as diferentes formas, sentidos, significações, sentimentos, energias, olhares, percepções, estados, sujeitos e suas criações. É nesse quadro e em articulações assim que se situa e se desenvolve a hibridização.

A dinâmica que envolve esse conjunto de fatores revela os vestígios dos matizes, entre sentimentos e práticas, colocando-os numa mesma rede, numa teia. Rastros de outros sentidos e/ou discursos, em atualização. Esse aspecto não confere qualquer autoridade de serem antecedentes num sentido de originais, mas somente no sentido de terem vindo antes, de serem anteriores.

Assim, o corpo enquanto espaço-tempo e mediador de transculturação, como compreende-se aqui a partir do que pode ser visto em cada atuante de DÔ, desenvolve-se justamente nesse campo de articulação dialógica que marca os processos híbridos. Isso reforça o entendimento de que “o processo de hibridização cultural gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação” (BHABHA, 1996, p. 37). É negociando com as diversas referências e atualizando-as, que o corpo desse atuante transcultura.

Em 22 de Setembro de 2012, os atuantes experimentaram algumas relações a partir e por entre os elementos a serem utilizados nas cenas (a tinta com qual pintam os corpos e bolas de diversos tamanhos, por exemplo). Esses elementos, para além do que são de fato, quando tomados enquanto “corpos” em relação com outros corpos, aqueles dos atuantes e demais sujeitos agentes de DÔ, tornam-se semanticamente carregados de discursos e atravessados pelas referências desses indivíduos, de suas culturas e dos matizes culturais suscitados por eles naquela poética.

As relações que foram estabelecidas entre os corpos dos atuantes e esses objetos externos fizeram parte desse trânsito, desse híbrido que permeou aquela cena. É por meio desse corpo, impactado e que impacta, intercambiando o que surge internamente e o que vem do externo, que simbólica, energética e concretamente aqueles atuantes colocaram-se em cena num estado específico para ela.

Construiu-se ali um encadeado de subjetivações e de reinvenções do sujeito e do seu corpo, através de uma corporalidade que tornou possível o trânsito entre o que aquele corpo pode oferecer e aquilo que o mundo, o outro, pode doar para aquele corpo.

Nesse nível é que podemos dialogar com o que propõe Le Breton (2011, p. 7): “Viver consiste em reduzir continuamente o mundo ao seu corpo, a partir do simbólico que ele encarna”. À luz dessa compreensão é que se poderia dizer que aquelas presenças só “vivem”, só existem – assim como o homem – corporificadas.

É o caso de realizar as potencialidades a que estão abertos esses corpos, as artes, as poéticas contemporâneas. Uma realização, porém, que não perpassa, num sistema de causa e efeito, por dados preexistentes. O corpo, nessas relações, atualiza-se não como possibilidade de reprodução, mas como parte de algo que se desenvolverá na multiplicidade, em criação, na diferença e não na semelhança.

Então, quando aqueles corpos dos atuantes de DÔ, em cena, apresentam-se enquanto uma rede de trânsitos e atualizações, é que se anunciaria, naquela poética, o potencial de transculturação daquelas corporalidades.

Nesse encadeamento, dialogam, entrecruzando-se, uma série de dados potenciais: os matizes culturais brasileiros (especialmente das culturas afro), que já são frutos de um movimento de transculturação; das culturas suscitadas por Tadashi Endo, por meio do butô trazido por ele, também impactado por culturas e práticas diversas; os matizes do empirismo vivenciado (MAFFESOLI, 2005) pelos sujeitos agentes; a corporalidade encarnada dos atuantes. No processo criativo, isso apareceu, de início, em virtualidades. Na criação, na poética e na experiência compartilhada na encenação, em atualização.

Em DÔ, contudo, esse movimento não operou no plano conceitual. Muito pelo contrário, nasceu da instauração e reconhecimento desses dados potenciais no corpo, no ato criativo. Para que os mesmos fossem atualizados, para que se transformassem em signo na cena, em imagem, em sua tendência de semiotização, foi preciso colocá-los para “falar”, dar voz ao corpo.

A atuante Valdinéia Soriano refletiu quanto a esse ponto no qual, em meio aos trânsitos pelos quais seu corpo passou e gerou, ela conseguia perceber que sua corporalidade havia criado uma rede enunciativa, que dispensava, por exemplo, uma dramaturgia textual como suporte para comunicação: “Tudo está sendo dito através

daqueles corpos negros, fazendo aquela movimentação oriental, sabe?!” 30.

Esse aglomerado de referências, transculturadas no/pelo corpo, subverte inclusive essa compartimentação dualista, que, no próprio discurso de Valdinéia, nos leva ao híbrido: se são “corpos negros”, estes vêm carregados de toda a sua experiência corporal, um tipo de memória que não se apaga, vivências marcadas por todas as relações socioculturais pelas quais esses corpos passaram; ao fazerem “aquela movimentação oriental”, o corpo passa a agregar a essa experiência outra gama de dados socioculturais que, em conjunto e interação com aquelas já trazidas, dão origem a um outro organismo. Diz respeito, pois, a um corpo que não se fecha. Um corpo vivo e em trânsito.

Essa percepção faz eco ao conceito proposto por Christine Greiner (2005) acerca do que seria o “corpomídia”. Ela reconhece que o corpo não configura apenas um meio por onde a informação simplesmente passa, na medida em que cada informação que chega imerge numa espécie de negociação com aquelas que já habitam naquele corpo.

Nesse sentido,

o corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. (GREINER, 2005, p. 131. Grifos meus)

Quando esse corpo ganha a cena, num estado no qual tende a semiotizar-se, isso implica uma interação entre o corpo e o psiquismo por meio de movimentos que coloquem o corpo em um sistema metafórico que funciona como uma mola propulsora para a imaginação.

Para o atuante, implica, simultaneamente, dominar o complexo conjunto de nervos e músculos que configuram e estruturam o seu corpo e, ainda, fazê-lo “falar”, interagir, comunicar, etc. Dar voz e potencializar os sentidos dessa rede.

30

Recorte de depoimento concedido em entrevista a mim por Valdinéia Soriano, em 15 de maio de 2013.

Os caminhos para isso são diversos. Cada encenador, cada artista, cada atuante, cada criador busca, na elaboração de suas poéticas, procedimentos, sejam

eles em treinamento, laboratórios, fruição etc., para potencializar a

corporalidade/corporeidade de tal forma que esta possa se tornar fonte enunciativa, uma voz integrada às múltiplas vozes de uma poética e de uma encenação.

No espetáculo Bença, de 2010, os corpos dos atuantes do Bando de Teatro Olodum multiplicaram suas vozes na relação entre um empirismo vivenciado (o discurso nativo31) e sua potencialização nos estados de alteração do corpo para cena.

Esse estado, gerado em cada um daqueles corpos, chamado naquele estudo de “Estado de Benção”32, era alcançado num movimento contínuo e cíclico de dilatação33 a partir de laboratórios criativos que envolviam suas experiências e vivências cotidianas, músicas e cânticos afros, interferências de elementos que não aqueles diretamente arraigados nas culturas afro-brasileiras e exercícios de pré- expressividade, numa atmosfera que remetia claramente aos rituais de candomblé, seja na musicalidade, na corporalidade/corporeidade e nas referências por eles suscitadas.

Nesse ponto, torna-se importante retornar à dimensão da corporeidade para podermos dialogar com mais clareza com as reflexões que se seguem. Esse termo resume, numa expressão, a relação híbrida entre corpo/mente, na medida em que, segundo João e Brito (2004), envolve as dimensões física, emocional-afetiva, mental-espiritual e sócio-histórico-cultural. Essas esferas estão entrecruzadas e indissociadas no todo que sintetiza o ser humano e é o que constitui a sua corporeidade.

Ao criar uma expressão para se referir ao movimento de alteração corpórea, em suas múltiplas dimensões, o fiz para dialogar e dar conta, no corpo de uma sistematização teórica, de um determinado estado, de corpos específicos, com

31

Expressão adotada por mim no meu estudo de Mestrado a partir do conceito trazido por Guimarães (2008) relacionado à noção de raça construída no “mundo real”. Neste estudo, a expressão deixa de lado a categorização racial e se volta para os discursos elaborados a partir de vivências reais dos sujeitos, na vida prática, logo, sem um cunho científico. cf. LÍRIO, 2010, p. 41-42.

32

Caracterizei em Bença, a partir do trânsito do corpo dos atores entre o corpo cotidiano e o corpo expressivo da cena, o que denomino de “Estado de Benção”. Cheguei a essa caracterização a partir do conceito trazido por Eugênio Barba (1994; 1995) acerca do que ele chama de “corpo dilatado”, de “dilatação”, isto é, um estado comportamental que exige um diálogo entre corpo e mente, energia, imaginação, reflexão e ação: um “[...] corpo presente, incandescente, potencializado, que irradia determinada luz, vibração” (DAMASCENO, 2006, p. 209).

33

Termo cunhado por Eugênio Barba para se referir ao processo de transição do corpo cotidiano para o corpo extra-cotidiano, o corpo da cena. cf. BARBA, 1994; BARBA; SAVARESE, 1995.

percursos criativos e de atualização ímpares. Pois, dentro daquela coletividade, no quadro daquela poética híbrida, os sujeitos tinham seus próprios caminhos para criar suas corporalidades.

Note-se que a transculturalidade na cena de Bença surgiu como fenômeno no decorrer do processo de criação que fundou aquela poética. Num movimento orgânico potencial, sem dados predefinidos a serem concretizados e reproduzidos na cena.

Em DÔ, por meio de outras abordagens, na medida em que envolve uma série de relações específicas desse processo, o princípio de deixar o corpo operar de acordo com as demandas dessa poética foi algo que se fez também presente. Tadashi Endo, tanto na entrevista concedida durante essa pesquisa, quanto nos discursos no decorrer do processo criativo junto ao elenco, reforçou muito a

Foto 22 - Corpos alterados em situação de Bença. Foto: João Milet Meirelles, 2010.

importância desse aprendizado, dessa apropriação que nasce de um desejo e de