• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I: Encarceramento em massa no Brasil e seu impacto no aparato prisional

2. O crescimento do aparato prisional brasileiro

Se as políticas de segurança pública nos diversos estados brasileiros assentam-se no policiamento ostensivo realizado, primordialmente, pelas polícias militares, e a justiça criminal assume o encarceramento como medida punitiva prioritária, o resultado obtido é o crescimento intensivo do aparato prisional, crescimento que vem sendo acompanhado de significativas transformações legais, estruturais e operacionais.

Apresentando uma série história de crescimento da população prisional no período de 1990 a 2014, o Infopen – Junho de 2014 informa que na primeira década representada, a população prisional parte de aproximadamente 90 mil pessoas para atingir a marca de 232 mil. Neste mesmo período, o total da população brasileira cresceu de quase 150 milhões, para cerca de 175 milhões de pessoas29. Ou seja, se a população brasileira

28 As diferenças no que tange aos percentuais apresentados no Mapa do Encarceramento e no trabalho de

Campos são representativas das dificuldades, mencionadas em ambos os trabalhos, em se obter dados seguros acerca dos sistemas de segurança pública, de justiça criminal e de administração penitenciária. Não obstante, tais diferenças não anulam a evidência do crescimento de prisões geradas pela “guerra às drogas”. Outrossim, reforça-se a necessidade de implementação de uma Política de Gestão Prisional, da qual a produção e disseminação de dados faz-se parte integrante.

43 cresceu algo em torno de 15%, o contingente de pessoas privadas de liberdade aumentou cerca de 60%, evidenciando uma política ostensiva de encarceramento.

Entretanto, é a partir dos anos 2000 que haverá maior impulso às taxas de encarceramento, com o aprisionamento crescendo numa “média dez vezes maior que o crescimento total da população brasileira” (DEPEN, 2015a, p. 15), de modo que “em junho de 2016, a população prisional brasileira ultrapassou, pela primeira vez na história, a marca de 700 mil pessoas privadas de liberdade, o que representa um aumento da ordem de 707% em relação ao total registrado no início da década de 90” (DEPEN, 2017, p. 09).

Esse crescimento massivo do quantitativo de pessoas encarceradas exigiu a construção de um significativo número de estabelecimentos prisionais. Dados do Infopen no ano 2000 (DEPEN, 2000) apontam a existência de 893 estabelecimentos penais, com um total de 135.710 vagas. Esta contagem, porém, inclui 462 cadeias públicas ou estabelecimentos similares, os quais, sendo subordinados à gestão da Polícia Civil, deveriam servir apenas para a custódia temporária das pessoas detidas sem condenação, mas que, no entanto, custodiavam naquele ano 57.775 pessoas, que ocupavam um total de 27.109 vagas. Já em dezembro de 2014, o número de estabelecimentos prisionais saltou para 1436 unidades, que totalizavam 371.884 vagas, sendo que destas, pouco mais de 37 mil vagas estavam em carceragens de delegacias ou similares (DEPEN, 2015a).

Esta mudança nos padrões dos estabelecimentos carcerários pode ser atribuída a diversos fatores, tais como as recorrentes rebeliões geradas pela superlotação comum às cadeias públicas; a inadequação e a insegurança das delegacias para a custódia de presos; a pressão sobre o trabalho da polícia civil, que acumula funções cartoriais, investigativas e de custódia; o aumento do número de presos provisórios e sua transferência para a custódia em estabelecimentos da Administração Penitenciária, e não mais nos órgãos policiais da Segurança Pública; a pressão de movimentos sociais e de direitos humanos, voltados para a humanização das prisões, dentre outros. Na origem de todos estes fatores, porém, observa-se o mesmo fenômeno: o hiperencarceramento como política prioritária de segurança pública e de suposto enfretamento aos crescentes indicadores de criminalidade violenta.

Esta mudança não ocorreu de modo regular e concomitante em todos os estados,

44 tampouco representou uma política de transferência que tenha sido concluída em algum ente federativo. Em Minas Gerais, por exemplo, este processo teve início em 2003:

Até então o crescimento da população prisional de Minas Gerais concentrara-se em unidades da Polícia Civil, quais sejam cadeias públicas e carceragens de unidades policiais (...). Dos 6 mil novos presos incorporados ao sistema entre 1998 e 2002, cerca de 85% ficaram sob a guarda de policiais civis.

A partir de 2003 o número de presos da Polícia Civil estabiliza-se, chegando mesmo a cair de 17, 5 mil em 2004 para pouco mais de 16 mil em fins de 2006. O contingente superior a 10 mil presos que ingressou no sistema prisional do estado no quadriênio 2003-06 foi em boa parte absorvido pelas vagas criadas pela Subsecretaria de Administração Penitenciária (SAPORI, 2007, p. 136).

Já no Amazonas, para apontar outro exemplo, se a unidade de regime fechado do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, palco das atrocidades que inauguraram 2017, data de 1985, a maior parte (16) dos estabelecimentos penitenciários do estado (20, no total) foi construída a partir da década de 1990, visando, sobretudo, a atender o aumento no número de prisões, ainda permanecendo em carceragens, em dezembro de 2014, cerca de 12% das pessoas presas no estado30.

A mesma tendência pode ser observada em outros estados, com investimentos maciços na construção de unidades prisionais a partir dos anos 2000 e a transferência de boa parte das pessoas custodiadas em delegacias e carceragens para estabelecimentos penitenciários31, sem, contudo, zerar o quantitativo de pessoas que permanecem detidas, mesmo após condenadas, nas delegacias e carceragens.

O processo de expansão do aparato prisional passou por outra alteração qualitativa, a saber, a criação, na segunda metade dos anos 2000, do Sistema Penitenciário Federal - SPF. A orientação para a criação do SPF foi dada a partir da experiência paulista na implantação da Penitenciária de Segurança Máxima de Presidente Bernardes, inspirada no modelo das supermax norte-americanas e que seria a primeira unidade no Brasil a operar com Regime Disciplinar Diferenciado:

Logo após a megarrebelião [do PCC, em 2001], o secretário [da Administração Penitenciária de São Paulo] Nagashi [Furukawa], os coordenadores e um assessor especial que ocupava o cargo de Ouvidor da SAP, Pedro Armando Egydio de

30 Informações disponíveis em http://www.seap.am.gov.br/unidades-prisionais-2/. Acesso em janeiro de

2017.

31 Em São Paulo, por exemplo, dados da SAP apontam que em dezembro de 2006, cerca 8% apenas das

pessoas presas no estado estavam em estabelecimentos vinculados à Secretaria de Segurança Pública (cf. http://www.sap.sp.gov.br/common/dti/estatisticas/populacao_mensal.htm; acesso em dezembro de 2016).

45 Carvalho, permaneceram reunidos durante dias para a elaboração da resolução que instituiria o regime disciplinar diferenciado – RDD, como principal medida anunciada para o combate das organizações criminosas nos presídios paulistas (TEIXEIRA, 2009, p. 158).

No final da década de 1990, São Paulo vira nascer aquele que, em 2017, seria identificado como o grupo criminal de maior capilaridade em nível nacional, o Primeiro Comando da Capital. A existência do PCC, que surgira nos presídios paulistas, fora negada pelo governo estadual até o ano de 2001, quando rebeliões simultâneas ocorreram em 24 unidades prisionais. Obrigado a reconhecer a força do grupo criminal, que iria crescer e obter hegemonia no controle do cotidiano prisional em São Paulo ao longo das duas primeiras décadas dos anos 2000 (DIAS, 2011), o governo paulista publicaria a Resolução SAP nº 26 de 2001, tendo a criação do RDD a finalidade explícita de servir de modelo de enfrentamento e controle das lideranças de grupos organizados, isolando-as num regime de exceção:

No entanto, [o RDD] não conseguiu atingir esse objetivo, haja vista a segunda megarrebelião que atingiu o Estado em 2006, na qual 74 unidades prisionais se rebelaram, demonstrando o crescimento e fortalecimento do PCC não só no sistema carcerário, mas também fora das prisões, articulando centenas de ataques às forças do Estado e atingindo a sociedade civil (DIAS, 2009, p. 129).

Os eventos de 2006, quando o PCC coordenou ações simultâneas em 74 unidades prisionais e em dezenas de cidades em todo estado de São Paulo, geraram forte reação das forças policiais e de grupos de extermínio, cujos conflitos resultaram em centenas de mortes, a maioria sem esclarecimentos32, mostrando que os motivos oficialmente anunciados para a implantação do RDD em São Paulo não haviam sido alcançados.

Entretanto, além de incorporar outras dimensões simbólicas e operacionais para o contexto paulista de enfrentamento ao crime e para sua gestão prisional, a inauguração da unidade de Presidente Bernardes, em 2002, já provocara em todo o país a disseminação das políticas de neutralização dos líderes de grupos criminais e de organizações criminosas, por meio de um regime diferenciado que permitisse seu total isolamento, como “solução” para o enfrentamento destes grupos.

Tal perspectiva foi incorporada na Lei de Execuções Penais mediante alteração provocada pela Lei 10.792, de 2003, estabelecendo, dentre outras coisas, que:

32 Foram registradas, oficialmente, 59 mortes de agentes públicos e 505 assassinatos de civis, com fortes

46 Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal,

§ 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando." (BRASIL, 2003)

Mais uma vez, a “solução” prometida seria contraposta pelas dinâmicas criminais. Quando, em 2006, o PCC deu mostras de seu fortalecimento, apesar do RDD e de sua disseminação enquanto modelo de enfrentamento à organização dos grupos criminais, a resposta apontada foi a federalização do combate pretendido.

Esta posição seria abertamente manifesta pelo já ex-Secretário da Administração Penitenciária de São Paulo, Nagashi Furukawa. Em entrevista a SALLA & MIRAGLIA (2008, p. 32), o ex-Secretário afirmaria:

O ideal é que houvesse um RDD nacional com, digamos, uns quinze presídios de segurança máxima espalhados em todo o território nacional, para onde pudessem ser encaminhados os líderes das facções criminosas. (...) Porque não é difícil detectar dentro de uma unidade prisional aqueles líderes negativos. Detectados, faz-se a transferência deles. O ideal mesmo seria tirar o preso da sua base de atuação: aquele que tem uma base de atuação no Rio de Janeiro vai para o Rio Grande do Norte, por exemplo, onde passaria dois, três meses; começou a formar uma nova liderança, vai para o Rio Grande do Sul. Isso dificultaria muito a vida do criminoso.

O Sistema Penitenciário Federal foi criado oficialmente por meio do Decreto Federal 6049, de fevereiro de 2007, instituindo, em âmbito nacional, a política de exceção que surgira em São Paulo e a partir do contexto prisional paulista. Paralelamente aos arranjos institucionais do Estado, também o crime nacionalizou-se suas estruturas e modos de atuação, como tão bem demonstraram os eventos inaugurais de 2017.

3. A expansão do aparato prisional paulista e o compartilhamento da gestão