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3. O BEM JURÍDICO DIFUSO

3.2.2. O crime cumulativo

Esclarece Ana Elisa Liberatore Silva Bechara que “a denominação ‘delitos de acumulação’ (Kumulationdelikt) foi empregada pela primeira vez por Lothar Kuhlen, em 1986, ao tratar da matéria ambiental, para designar no âmbito dos delitos de perigo abstrato as condutas que se tornam penalmente significativas não por si mesmas, e sim porque, sem uma proibição sancionatória, seriam realizadas em tal quantidade que levariam à ofensa ao bem jurídico protegido pela norma”156.

Pune-se a conduta não pelo resultado que produz isoladamente, eis que a conduta isolada não é capaz de causar uma lesão significativa ao bem jurídico (aliás, muitas vezes a conduta isolada não ocasiona qualquer lesão ao bem jurídico), senão pela lesão que pode vir a ser causada ao bem jurídico caso esta conduta seja praticada de forma reiterada (ainda que por diferentes agentes).

Com o delito de acumulação, busca-se a punição de condutas que, tomadas isoladamente, não apresentam lesividade, ou melhor, cuja lesividade não é perceptível de imediato, seja pela sociedade, seja pelo próprio autor da conduta. Todavia, ante a probabilidade da reiteração desta conduta no futuro, e em grande número, passa a ser certo o resultado danoso. Esta prognose de lesividade ao bem jurídico penalmente protegido é a razão de ser do delito de acumulação, que transforma conduta aparentemente inofensiva em conduta merecedora de repreensão pelo Estado, especialmente pelo direito penal. Incrimina-se a conduta isolada por ser parte de um processo coletivo, que não é dominado inteiramente pelo autor, mas que conta com sua participação, responsabilizando-se-o pelo provável resultado futuro157.

O problema deste tipo de delito é exatamente o fato de se aplicar a pena não pela conduta própria do agente, mas pela probabilidade de outros indivíduos virem também a praticar esta conduta.

Assim, Jesús Pórfilo Trillo Navarro lembra que “Kuhlen parte da possibilidade de punir penalmente uma conduta individual que não seja por si mesma 155 TRENTO, Simone. Os delitos de perigo abstrato e sua compatibilidade com o direito penal

contemporâneo, p. 46.

156 BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Delitos de acumulação e racionalidade da intervenção penal, p.

3.

157 DIAS, Augusto Silva. “What if everybody did it?”: sobre a (in)capacidade de ressonância do direito

lesiva ao bem jurídico, nem o coloque em perigo concreto relevante, partindo da possibilidade, certa ou com alto índice de ocorrência de resultado, de que essa conduta em si mesma não lesiva se comete atual ou iminentemente por uma multitude de sujeitos, provocando em sua contemplação global um grave ataque ao bem jurídico”158.

Ante o potencial lesivo da repetição (acumulação) de tais condutas concretas e individualmente inofensivas, Kuhlen passa a defender não apenas a tipicidade formal de tais delitos, mas também a tipicidade material. De qualquer forma, na concepção de Kuhlen, a acumulação não é uma mera hipótese. Não se trata de simples probabilidade de repetição dos atos, mas a acumulação é um fato que deve ser observado atualmente, ou ao menos deve estar na iminência da repetição por uma pluralidade de indivíduos159.

Mas Kuhlen não é o único autor a tratar do conceito de delitos de acumulação.

Wohlers busca critérios de legitimação da criminalização de condutas cumulativas, adequando-a às regras do ordenamento penal. Desta forma, como resume Eduardo Saad Diniz, para Wohlers, “punível é apenas a conduta típica que em estritas condições de cumulação representa danosidade, cujo risco representado pelo resultado seja efetivamente vinculado a potencial de perigo. A verificação empírico-racional dos efeitos da conduta orienta a projeção da cumulatividade em dimensões ‘realistas’ e dá o tom da qualificação jurídica do tipo como cumulativo, impondo os rigores da verificação à intervenção punitiva”160.

Note-se que, se levada às últimas consequências, qualquer conduta insignificante praticada reiteradamente pode acabar por lesionar algum bem jurídico penalmente tutelado.

Porém, os verdadeiros limites dogmáticos relativos à cumulatividade de condutas como critério dos tipos penais incriminadores serão encontrados no pensamento de Hefendehl.

158 NAVARRO, Jesús Pórfilo Trillo. Criminalidad de bagatela: descriminalización garantista, p. 23

(tradução do autor).

159 SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las

sociedades postindustriales, p. 132.

Para Hefendehl, a tipificação do crime cumulativo “se aplica a ações individuais em si inócuas dado que, sem uma proibição reforçada com uma sanção, haveria que contar com que se cometeriam em grande número e, como consequência, resultariam perturbadas funções protegidas. Se só se consideram aptos para a acumulação os efeitos sinérgicos realistas atendendo ao princípio de bagatela, se eliminam parte das objeções formuladas contra o tipo cumulativo. Seu campo de aplicação potencial é muito limitado e abarca unicamente os casos em que condutas relativas a bens e rotinas cotidianas ou profissões podem entrar em conflito (delito contra a segurança do tráfego ou o meio ambiente) ou os efeitos acumulativos realistas em bens jurídicos individuais influam necessariamente nos bens jurídicos coletivos (delitos de falsificação de moeda que se produzem em conexão com ações de ‘estafa’). A objeção a que por meio de acumulação se termina fundamentando o ilícito ex iniuria tertii só seria certa se no marco da concreta configuração típica se realizasse uma remissão ao injusto de terceiros para fundamentar a responsabilidade”161.

Dessa forma, “Hefendehl propõe critérios racionais que precisam a legitimação da lógica da cumulação, acrescentando-lhes a ponderação da proporcionalidade e necessidade da intervenção punitiva, sem os quais a reação penal perde o sentido”162.

Apesar da crítica feita a tal espécie de delitos, como a de Roxin e de Hassemer, defensores do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, e da questionável legalidade de tais crimes, sua utilização tende a ser cada vez maior, com o objetivo de antecipar a proteção aos bens de definitiva relevância ao convívio social.

Em razão dessa natural força expansiva, sua aplicabilidade deve ser a mais restrita possível, unicamente em relação a condutas rotineiras, que tenham concreta possibilidade de resultado cumulativo.

Para tanto, a cumulatividade da conduta não pode ser futura. Em outras palavras, para se punir a conduta ante o provável resultado cumulativo, esta conduta deve, à época da sua prática pelo agente, ser uma conduta cuja prática reiterada já ocorra. Não basta a prospecção de sua reiteração, pois, se assim fosse, acabar-se-ia por fundamentar o ilícito ex iniuria tertii. O indivíduo seria punido por haver a mera possibilidade de que

161 HEFENDEHL, Roland. El bien jurídico como eje material de la norma penal, p. 195 (tradução do autor). 162 DINIZ, Eduardo Saad. Uma posição sobre os tipos penais cumulativos, p. 61.

outros indivíduos praticassem futuramente a mesma conduta, chegando-se ao absurdo de punir alguém não apenas por atos de terceiros, mas pela possibilidade da prática de atos por terceiros.

Assim, para a configuração do delito cuja entidade típica demanda a cumulatividade do dano e para que não se puna por ato de terceiros, a conduta deve ser uma prática já reiterada e que já esteja causando lesão ao bem jurídico, ou cujo risco seja efetivo, e não uma simples previsão abstrata de lesão.

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