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O currículo escolar

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Capítulo I — A EPISTEMOLOGIA E A ONTOLOGIA FREIRIANAS: suas implicações

1.6. O currículo escolar

A educação da resposta não ajuda em nada a curiosidade indispensável ao processo cognoscitivo. Ao contrário, a educação da resposta enfatiza a memorização mecânica dos conteúdos sobre os quais se fala. Só uma educação da pergunta aguça a curiosidade, a estimula e a reforça (FREIRE, 2012, p. 29).

A afirmativa em epígrafe sinaliza o caminho a ser percorrido pela escola na construção de seu currículo para a formação de seres capazes de construir seu conhecimento a partir da curiosidade epistemológica. Vejamos como Freire concebe a relação entre docente e estudante e o processo de ensino e aprendizagem:

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Minha experiência vinha me ensinando que o educando precisa de se assumir como tal, mas, assumir-se como educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e que quer conhecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador, e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o objeto do conhecimento. Ensinar e aprender são assim momentos de um processo maior — o de conhecer, que implica re-conhecer. No fundo, o que eu quero dizer é que o educando se torna realmente educando quando e na medida em que conhece, ou vai conhecendo os conteúdos, os objetos cognoscíveis, e não na medida em que o educador vai depositando nele a descrição dos objetos ou dos conteúdos (FREIRE, 1999, p. 47).

Alunos e professores são, para Freire, sujeitos cognoscentes, isto é, homens e mulheres em constante processo de conhecer e de se re-conhecer, o que só acontece na relação de uns com os outros e o conhecimento, o objeto cognoscível. Sendo assim, o processo de ensino e aprendizagem vai para muito além de um simples processo de transmissão de conteúdos e, mesmo, competências e habilidades, como é tão comum se ouvir em nossos dias. Alunos, alunas, professores e professoras passam a fazer parte de um processo de humanização;

de ser mais, de conhecer mais.

Em seu livro A educação na cidade, Freire nos fala do currículo, do papel da escola e sua relação com o conhecimento e dos conteúdos escolares:

Mas de que conteúdo estamos mesmo falando? A respeito da relação professor/aluno/conhecimento, o educador afirma: "Enquanto objetos do conhecimento os conteúdos se devem entregar à curiosidade cognoscitiva de professores e alunos. Uns ensinam e, ao fazê-lo, aprendem. Outros aprendem e, ao fazê-lo ensinam" (FREIRE, p. 112, 1999). Mais uma vez, nos é apresentado o princípio da dialogicidade freiriana, em que a aprendizagem se dá a partir do diálogo constante entre os atores.

Por vezes, o autor nos fala da importância do respeito ao saber popular, o que o torna alvo de muitas críticas por parte daqueles que não entendem o caráter universal presente neste saber. Com respeito a esta questão, destacamos a seguinte reflexão feita pelo autor: "O regional emerge do local tal qual o nacional surge do regional e o continental do nacional como o mundial emerge do continental" (FREIRE, 1999, p. 87).

A esse, respeito, ainda acrescenta Freire:

O que tenho dito sem cansar, e redito, é que não podemos deixar de lado, desprezado como algo imprestável, o que os educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos aos centros de educação popular,

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trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros (FREIRE, 1999, p. 85-86).

Assim, o currículo escolar é concebido por Freire como algo muito dinâmico que, a partir da ação e do diálogo entre os indivíduos, se coloca em constante transformação, porque voltado para as vivências dos educandos numa perspectiva emancipatória e dialógica; uma vez que:

“ O respeito ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. A localidade dos educandos é o ponto de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo. “Seu” mundo, em última análise, é a primeira e inevitável face do mundo mesmo (FREIRE, 1999, p.86).

Como resposta a essa necessidade, a seguir, apresentamos um dos pilares da administração Freire:

1.6.1. A interdisciplinaridade como caminho metodológico

O levantamento da realidade vivenciada pela comunidade onde está localizada a escola seria uma alternativa de construção curricular, uma vez que tal estudo possibilitaria a definição de questões significativas para esta mesma comunidade e, portanto, para os professores e alunos. Os temas geradores assim descobertos indicariam os conteúdos acadêmicos pertinentes. Daí uma nova seleção da cultura, ditada não pela inércia de uma tradição, mas pela necessidade, seja ela do real concreto ou imaginário (DELIZOICOV; ZANETIC, 2002, p. 11).

A citação acima sintetiza o caminho estratégico seguido pela administração Erundina/Freire na implantação de sua proposta educacional. A interdisciplinaridade foi a proposta de concretização do ideário freiriano, que se baseia na concepção de que o processo de ensino e aprendizagem a ser construído pela escola deve partir do conhecimento da realidade objetiva dos educandos para que, a partir desta se possa estruturar toda uma visão curricular voltada para a formação da cidadania, que inclua inclusive a apropriação por parte dos alunos dos conteúdos científicos necessários a sua inserção na sociedade. Tal proposta reconhecia o importante

39 potencial transformador da escola e das práticas docentes. Afirmam, ainda, os mesmos autores:

A concepção de trabalho interdisciplinar adotada e construída ao longo destes quatro anos pressupõe um procedimento que parte da ideia de que as várias ciências deveriam contribuir para o estudo de determinados temas que orientariam todo o trabalho escolar. Respeita a especificidade de cada área do conhecimento, isto é, a fragmentação necessária no diálogo inteligente com o mundo e cuja gênese encontra-se na evolução histórica do desenvolvimento do conhecimento. Nesta visão de interdisciplinaridade, ao se respeitar os fragmentos dos saberes, procura-se estabelecer e compreender a relação entre uma totalização em construção a ser perseguida e continuamente a ser ampliada pela dinâmica de busca de novas partes e novas relações. Ao invés de professor polivalente, pressupõe a colaboração integrada de diferentes especialistas que trazem a sua contribuição para a análise de determinado tema (DELIZOICOV; ZANETIC, 2002, p. 13).

Para que esta proposta obtivesse o sucesso almejado, fazia-se necessária a garantia de uma formação docente que proporcionasse "o aprofundamento constante do professor" (PERNAMBUCO, 2002a, p. 31), para que este pudesse se apropriar desta nova maneira de ensinar/aprender. Sendo assim:

Só um processo de formação permanente, de cursos, mas sobretudo de grupos de estudo e reflexão, nos permite assumir a tarefa criativa e dinâmica de ensinar com os pés no presente, mas com os olhos voltados para um futuro que já podemos vislumbrar e que, rapidamente será o presente onde se dará a vida adulta de nossos alunos (PERNAMBUCO, 2002a, p. 31).

A citação acima nos remete à concepção freiriana de formação para a transformação dos indivíduos e transformação da realidade que envolve estes sujeitos inseridos em um contexto de constantes mudanças.

Da concepção interdisciplinar16

de currículo nasceu um dos mais importantes projetos da administração Freire – o Projeto Inter – do qual trataremos mais adiante, que propunha a articulação entre as diversas disciplinas que compõe o currículo

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Em caráter ilustrativo, destacamos a descrição de Pernambuco (2002a) das etapas de elaboração da aula na concepção interdisciplinar: há um primeiro momento, o do estudo da realidade, em que "cabe ao professor ouvir e questionar, entender e desiquilibrar os outros participantes" (p. 33). O segundo momento, o da organização do conhecimento, é quando há o predomínio da fala do

organizador, quando o professor intervém, tentando "introduzir novos conhecimentos, não partilhados

pela classe, que os auxiliem a ver a realidade estudada de uma nova forma" (p. 34). O terceiro momento, que é o da síntese, quando a fala do aluno se une à fala do professor "permite a síntese entre as duas visões de mundo ou, ao menos, da percepção de suas diferenças. [...] É um momento em que uma fala não predomina sobre a outra, mas juntas exploram as perspectivas criadas, reforçam os instrumentos apreendidos, fazem um exercício de generalização e ampliação dos horizontes anteriormente estabelecidos (aplicação do conhecimento)" (p. 34).

40 escolar a partir da construção de temas geradores extraídos do estudo aprofundado e multifacetado da realidade social e cultural dos educandos. Como vemos, tal concepção de currículo se ancora na concepção de homem e sociedade percebida em toda a obra de Freire.

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