• Nenhum resultado encontrado

O currículo na atualidade: um balanço crítico – reflexivo

No documento Download/Open (páginas 79-85)

À que conclusões, entre tantas outras possíveis, podemos chegar após meditarmos sobre as teorias tradicionais, críticas e pós – críticas do currículo? Quais as possíveis ideias sobre o que é o currículo escolar e o que está envolvido em sua concepção, levando em consideração tudo o que se teorizou e testou no campo educacional? Esse balanço crítico - reflexivo precisa ser enfrentado por todos os professores preocupados com sua prática de ensino e suas consequências para a aprendizagem de seus alunos.

79 Interessante destacar: a tolerância também é um valor socialmente construído e historicamente localizado, e não um elemento transcendente descoberto pelo multiculturalismo (este mesmo uma construção ocidental) e presente em várias das sociedades ao longo da História (apesar de todas contarem com diferenças culturais em seu corpo constitutivo e se relacionarem mais ou menos conflituosamente com estas).

80 Qual seria, por exemplo, a melhor alternativa à democracia representativa ocidental? As ditaduras do proletariado? As teocracias antigas? A “Nova Ordem” nazista? Ou as atuais ditaduras cubana e norte – coreana? O bolivariano “socialismo do século XXI”? Consideraríamos seriamente essas alternativas como viáveis para nós, ou para qualquer outro?

As teorias críticas e pós - críticas praticamente promoveram a superação do conceito de conhecimento e ensino – aprendizagem desse conhecimento como algo neutro e imparcial, uma atividade que envolveria apenas transmitir um conjunto natural e verdadeiro em si mesmo de saberes para os indivíduos. As reflexões e pesquisas de orientação marxista revelaram as estruturas sócio - culturais de poder responsáveis pela definição do que deve ser legitimado como conhecimento a ser ensinado. Abordagens não – marxistas, como as correntes pós – estruturalistas e outras, ampliam e adensam essa compreensão da influência das relações históricas de poder na elaboração do currículo escolar, ao demonstrar que estas relações podem ter múltiplos pólos de origem/produção. As relações sociais de poder, dominância e exclusão não refletem apenas a predominância política, econômica ou militar de um setor social sobre outro, ou de uma nação sobre outra. Refletem também a hegemonia cultural e ideológica. Na realidade, as ideias e práticas de dominação cultural/científica se sustentam na força política, econômica, midiática81 e militar, e fornecem o conjunto discursivo que legitima e justifica esse predomínio. Um “naturaliza” o outro, e vice – versa.

Hard e Soft Power se alimentam mutuamente. Não devemos, entretanto, compreender essas

relações apenas nos termos de chaves binárias e maniqueístas como, por exemplo,Estado x Sociedade, elites x trabalhadores, brancos x negros, homens x mulheres, heteros x homos, países ricos x países pobres, direitas x esquerdas, etc. As relações de poder se dão também dentro desses grupos, e não apenas entre eles. E, embora grupos minoritários e/ou socialmente marginalizados e subalternizados tenham uma margem de manobra bem menor do que aqueles que estão em posições superiores e de dominação, frequentemente esses grupos e indivíduos impõem suas demandas. Negociação, conflito, consenso: tudo isso demarca a luta pelo empoderamento, seja identitário, econômico, político e cultural, com “avanços” para uns e “recuos” para outros. Quem está no poder e com o poder vai lutar para ali se manter. Quem está fora ou mais afastado vai querer se empoderar. A escola e o currículo estão perpassados por essas questões. O currículo é um espaço onde identidades, saberes e poderes em disputa se confrontam nos conteúdos, nas práticas pedagógicas e nos discursos. Mais do que abordagens que questionam os postulados de uma e de outra, as teorias críticas e pós – críticas revelam que as relações históricas que definem critérios de conhecimento, valores, diferenças culturais e comportamentais, ideologia e poder são construções humanas. E, por isso, passíveis de

81Nos últimos 40 anos temos visto com maior evidência o crescimento deste que é denominado de 4° poder, que detém as informações e os meios de divulgação e convencimento através das modernas tecnologias de comunicação de massa.

preservação ou mudança intencionais. A educação não foge a essa dinâmica histórica, logicamente.

Apesar desse entendimento da operação do currículo como espelho das questões sociais (seja por abordá – las, seja por silenciá – las: determinados silêncios são mais gritantes e eloquentemente reveladores do que o mais claro dos discursos...) em seus conteúdos e prescrições, a influência dessa percepção nas políticas de elaboração curriculares e no cotidiano escolar permanece mínima. Predominam ainda as ideias e práticas didáticas das teorizações tradicionais do currículo nesses campos: o conhecimento é um objeto preexistente, natural, dado, que cabe a pedagogia e ao currículo simplesmente revelá – lo. A ideia de que a escola deve preparar os indivíduos principalmente para o mercado de trabalho permanece dominante no senso comum e na mentalidade da maioria dos dirigentes/gestores na área da educação. As instituições de ensino básico e superior ainda são fortemente conservadoras, com os prós e contras que essa situação ocasiona.82

Diante desse diagnóstico das instituições educacionais em geral e do legado em permanente construção das teorias do currículo, sinalizando o descompasso entre o viés progressista das reflexões críticas e pós – críticas da educação e o tradicionalismo das políticas curriculares e das instâncias educacionais em sua maioria, faz – se oportuno agora reforçar as noções que permeiam o entendimento do que definimos como currículo nessa pesquisa.

O currículo é uma área contestada, uma arena de luta política. Por isso, não pode ser visto descontextualizado de seu momento histórico e das questões de seu tempo.

82A sistematização da pesquisa e produção do conhecimento científico e seu ensino por escolas e universidades, a padronização de documentos e publicações, as rotinas administrativas e outros aspectos relacionados com a institucionalização da educação pública são características ainda necessárias para a existência do próprio ensino massificado, uma conquista cujo valor poucos negam, mas que não deixam de por isso se enquadrar num viés de conservação, que muitas vezes torna a mudança mais lenta do que poderia ser, até mesmo usando a desculpa (legítima dentro dos padrões de poder nas instâncias escolares – acadêmicas, mas nem por isso isentos de críticas) da necessária chancela dos pares. O conservadorismo está presente até mesmo em forças e setores progressistas que o combatem. Um exemplo disso, e pouco estudado devido, a meu ver, por ser uma análise que iria na contramão do ambiente ideológico hegemônico da academia, reside na chave essencializadora indenitária que determinadas correntes do MNU (Movimento Negro Unificado), de movimentos em defesa das mulheres e dos movimentos em prol dos direitos dos não – heterossexuais em nosso país trabalham em suas mobilizações políticas, por vezes demonstrando em seus discursos uma idealização generalizante do que é ser negro, mulher, homossexual ou de outra orientação sexual, e criando uma imagem homogeneizadora de seus “antagonistas identitários”: o branco, o homem, o evangélico, etc. Pode ser uma estratégia política justificável e legítima de união na luta mais do que necessária contra o racismo, o etnocentrismo, o machismo discursivo e simbólico, a violência física contra as mulheres, o falocentrismo, a intolerância fanática e a homofobia, mas não deixa de ser uma operação que, ao essencializar o que é diverso, ambíguo e contraditório, acaba operando numa clivagem igualmente conservadora, criando e reforçando novos estereótipos para lutar contra velhos estereótipos.

Os conhecimentos curriculares devem ser sempre considerados de forma desnaturalizada. Sua seleção, distribuição, organização e prescrição de saberes e didáticas de ensino estão embutidos de visões de mundo derivadas de constructos epistemológicos dinâmicos, em constante processo de negociação, conflito, resistência e consenso/acomodação, criados a partir das interações sociais. Não se torna surpreendente então, quando reconhecemos essa realidade, que os objetivos curriculares acabem normalmente sendo reelaborados no espaço escolar.

O currículo e a educação não são apenas meios de transmissão de uma tradição cultural. São mais do que isso: são terrenos de produção de cultura e de política cultural ao criar, recriar, contestar e transgredir os códigos culturais. O motivo disso reside no caráter plural, multicultural e em modificação constante da sociedade, que transbordam para a educação como artefato social e cultural que é.

O currículo espelha as relações sociais de poder, sendo, simultaneamente, uma agência constituidora dessas relações. Porém, sua característica de campo politicamente contestado indica que nem sempre as intenções das ideologias do poder se realizam conforme seus objetivos originais. Essas relações de poder se manifestam de inúmeras maneiras nas instituições de ensino, como no currículo oficial/formal, nas hierarquizações existentes no sistema escolar estatal e privado, nos atos cotidianos e “ritualizados” das cerimônias escolares e das salas de aula, etc. Essa constatação de nada servirá se “satanizarmos” o poder. O diagnóstico só será útil se promover o entendimento de seu funcionamento e o questionamento de suas bases e consequências. A partir desse conhecimento, o currículo pode e deve ser usado para construir relações de poder transformadas, que se baseiem na construção/produção de sentidos e significados que abarquem de forma mais inclusiva e justa a pluralidade identitária da sociedade, eliminando barreiras de classe, etnia, gênero e tantas outras que impedem muitos de enxergar as diferenças entre os iguais.

Temos de reconhecer que o conhecimento escolarizado sempre encontra – se defasado em relação às modificações sociais e as transformações na natureza, extensão e maneiras de conceber e transmitir o conhecimento. Apesar do discurso pedagógico politicamente correto afirmar o contrário, as propostas e práxis curriculares tem se mantido ainda muito indiferentes para com a influência da cultura pop (TV, músicas, games, revistas, best – sellers infanto – juvenis, etc) como um dos elementos centrais na vida dos educandos, estimulando uma atitude de superioridade e até desprezo dos docentes em relação a esse consumo e vivência

culturais.83 Na mesma linha, ignorar o impacto das tecnologias eletrônicas e digitais de informação, entretenimento e comunicação ou simplesmente estigmatizar seu uso como não – pedagógico e anti – educativo significa jogar todo o seu potencial cognitivo nas mãos de instâncias que as usarão para fins mercadológicos de propaganda, entretenimento ou puramente para treinamento de mão de obra. Embora esse possa ser um dos lados da moeda educativa (a educação para o trabalho), não se apresenta como o único possível. Torna – se importante meditar sobre estratégias de inclusão dessas tecnologias como fator que auxilie na educação para a construção de sociedades mais democráticas e equânimes. E essas estratégias inclusivas produzem – se com o entendimento das dimensões de classe, cultura, ideologia e gênero, de modo a se evitar a adoção, pelos docentes, de uma postura defensiva pessoal e profissional que pode levar a desqualificação das preocupações e interesses dos alunos dos estratos mais humildes ou oriundos de minorias da sociedade, traduzindo – se numa tensa distância entre professor e alunos.84

Ver no currículo o potencial transformador que pode fazer a democracia avançar e se aprofundar é uma construção ideológica alicerçada em determinados e historicamente localizados modelos e projetos de governo, cidadania e identidade, com seus respectivos discursos significantes de poder. Uma construção importante e basilar de nossa cultura, mas que não é compartilhada por outras culturas. A democracia é um destes “valores universais” necessários como elementos constitutivos definidores de uma sociedade. Mas precisamos ter a clareza de que esses valores não são naturais: tratam – se de elaborações sócio – culturais, de processos históricos. Esses processos não ocorrem em todas as sociedades necessariamente. Assim, no caso da democracia, evitaremos cair no engodo de vê – la como uma aspiração essencial da humanidade e elaborar uma narrativa teleológica, que a considere um devir, caindo assim na armadilha do “fim da História”. Nem todos os povos percebem os conceitos democráticos como conceitos fundamentais, e admitir racionalmente esse fato não deve ser apressadamente rotulado como preconceito, mas apenas realismo baseado em constatações empíricas. Sendo, porém, um valor fundamental para nossa leitura de mundo, o currículo deve abordar e problematizar as características que subsidiam o sujeito da democracia: liberdade de opinião, tolerância, empatia, mudança.

83GIROUX, H. SIMON, R. Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento curricular. In. MOREIRA, A. F. SILVA, T. T. da. (orgs.). Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2001.

84GIROUX, H. MCLAREN, P. Formação do professor como uma contra – esfera pública: a pedagogia radical como uma forma de política cultural. In. MOREIRA, A. F. DA SILVA, T. T. (orgs.) Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2001.

Dentre as disciplinas escolares, a História se traduz em uma instância privilegiada para trabalhar esses conceitos, embora não seja a única, pois o universo escolar por completo tem esse poder e dever. Vejamos agora as questões e desafios contemporâneos que se apresentam tanto para a construção das propostas curriculares voltadas para essa área do saber científico e escolarizado quanto para a prática e reflexão do ensino de História em nosso país. O próximo capítulo apresentará um panorama que espera – se elucidativo quanto ao tema.

Capítulo II: O ensino de História em nosso tempo

No documento Download/Open (páginas 79-85)