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O DEFICIENTE AUDITIVO COMO CONSUMIDOR HIPERVULNERÁVEL

3. O CDC ENQUANTO FOMENTADOR DOS DIREITOS HUMANOS

3.3. O DEFICIENTE AUDITIVO COMO CONSUMIDOR HIPERVULNERÁVEL

O instituto da defesa do consumidor, no momento da positivação dos direitos básicos do consumidor e dos princípios norteadores, é construído em torno do reconhecimento do consumidor-cidadão como parte vulnerável de uma relação de consumo. De fato, como bem destaca Cavalieri,

[...] é na vulnerabilidade do consumidor [...] que se funda o Direito do Consumidor. Essa é sua espinha dorsal que sustenta toda a sua linha filosófica. Reconhecendo a desigualdade existente, busca estabelecer uma igualdade real entre as partes nas relações de consumo. As normas desse novo direito estão sistematizadas a partir dessa ideia básica de proteção de determinado sujeito: o consumidor, por ser ele vulnerável. Só se justifica a aplicação de uma lei protetiva em face de uma relação de desiguais. Entre partes iguais, não se pode tratar privilegiadamente uma delas, sob pena de violação do princípio da igualdade.88

O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é o primeiro passo para a efetivação da isonomia, garantida na Carta Maior. A fraqueza do consumidor, em relação ao fornecedor, ocorre por dois motivos: primeiramente, o fornecedor tem uma vantagem técnica, ligada aos meios de produção – seu monopólio.

Esses meios de produção englobam não somente a fabricação de produtos e a prestação de serviços, mas, também, a escolha que o fornecedor tem de o que será produzido, quando,

87 Conforme pensamento de Werson Rêgo, destacado na página 23 deste trabalho. 88 CAVALIERI FILHO, 2008, p. 08.

sua quantidade e a forma de produção. Assim, o consumidor está à mercê da produção: sua escolha está reduzida, pois só pode escolher aquilo que existe e foi oferecido no mercado.89

Em segundo lugar, o fornecedor possui uma capacidade econômica maior em relação ao consumidor. Esta vulnerabilidade é evidente não somente na hipossuficiência financeira, mas também na ausência de informações a respeito dos produtos e serviços que adquire.

O que é levado em consideração, neste segundo aspecto, é que as relações de consumo, em geral, são regidas por contratos de adesão, cuja característica principal é que suas cláusulas são definidas prévia e unilateralmente pelo fornecedor, sem qualquer participação do consumidor.90

Diante de todo o exposto, conclui-se, facilmente, que toda relação fornecedor- consumidor é assimétrica, visto que este último se encontra em uma posição reconhecida de vulnerabilidade, caracterizada pelo próprio Código. A relação de consumo é uma relação jurídica, em que uma parte tem por necessidade a satisfação do desejo de outra, sejam eles necessários ou supérfluos.

Todavia, “a simetria entre fornecedores e consumidores não se resolve simplesmente com positivação, mas sim com sua aplicação real, uma vez que o consumidor não se tornou menos vulnerável a partir do CDC”91, pois o direito não é capaz de prever todos os fatos

passíveis de ocorrerem no mundo da vida, ainda que dentro de um microssistema, como é o Direito do Consumidor.

Segundo Santos e Silva e Franco:

o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor pelo Código de Defesa do Consumidor, em tese, é a semente capaz de entregar ao mais fraco, ferramentas que não o tornarão superior ao fornecedor nas relações extrajudiciais e judiciais, mas sim que objetivam garantir a sua equiparação, dando-lhes simetria quanto aos direitos e obrigando-os a condutas ancoradas na ética e na boa fé”92

89 RIZZATTO NUNES, 2011, p. 664. 90 Ibidem, p. 665.

91 SANTOS E SILVA, Cândido Francisco Duarte e FRANCO, Renata Guimarães. Sociedade de consumo – a

vulnerabilidade potencializada pela sensação de felicidade efêmera. 2012, p. 21. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f84d465177e84bb4. Acesso em 06/11/2017.

Não obstante esta noção, já consolidada, de vulnerabilidade do consumidor, importa trazer à tona um outro aspecto deste conceito: a vulnerabilidade agravada, ou como preferiu denominar Cristiano Heineck Schmitt, hipervulnerabilidade.

A hipervulnerabilidade, em linhas gerais, é “uma situação social fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, em razão de características pessoais ou conhecidas pelo fornecedor”. 93

Exemplos de consumidores hipervulneráveis são os idosos, as crianças, os deficientes físicos e os analfabetos, segundo Schwartz. O que se leva em consideração, no momento da análise das condições desses grupos de consumidores, além de suas dificuldades – cada grupo social por razões específicas –, é a potencialização de lesões aos seus interesses, visto que possuem uma fragilidade física, psicológica ou mental.94

Schwartz pontua que, certos produtos ou serviços – principalmente aqueles que geram dependência ou catividade –, em razão de descumprimento de cláusula contratual, estão mais propensos a gerar uma lesão potencializada a esses indivíduos. É o caso dos planos de saúde. Destarte, é primordial que estes grupos sociais sejam encobertos de uma proteção especial, com vistas à garantir a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade.

O STJ, no julgamento do REsp nº 722.940/MG, afirma que

são exatamente os consumidores hipervulneráveis os que mais demandam atenção do sistema de proteção em vigor. Afastá-los da cobertura da lei, com o pretexto de que são estranhos à generalidade das pessoas, é, pela via de uma lei que na origem pretendia lhes dar especial tutela, elevar à raiz quadrada a discriminação que, em regra, esses indivíduos já sofrem na sociedade (grifo próprio).95

Anteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça já havia se manifestado no sentido de que

[...] no campo da saúde e da segurança do consumidor (e com maior razão quanto a alimentos e medicamentos), em que as normas de proteção devem ser interpretadas com maior rigor, por conta dos bens jurídicos em questão, seria um despropósito falar em dever de informar baseado no homo medius ou

93 SCHWARTZ, Fabio. A Defensoria Pública e a proteção dos (hiper)vulneráveis no mercado de consumo.

2016. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-jul-19/protecao-hipervulneraveis-mercado-consumo. Acesso em 06/11/2017.

94 Ibidem.

95 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 722940-MG (2005/0019020-4). Relator: Ministro

Castro Meira. Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19151508/recurso-especial-resp-722940- mg-2005-0019020-4-stj. Acesso em 06/11/2017.

na generalidade dos consumidores, o que levaria a informação a não atingir quem mais dela precisa, pois os que padecem de enfermidades ou de necessidades especiais são freqüentemente a minoria no amplo universo dos consumidores. Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a "pasteurização" das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador (grifo próprio). 96

Desta conceituação, pode-se extrair que o surdo – enquanto portador de deficiência auditiva –, por suas limitações no tocante à comunicação com outras pessoas, principalmente, dentre outras condições provocadas pela surdez, expostas no primeiro capítulo97, pode ser

enquadrado como consumidor hipervulnerável.

Ainda que o implante coclear forneça a ele uma nova qualidade de vida, melhorando o seu relacionamento em sociedade, dando mais confiança para “existir no mundo”, de nada adianta se uma das peças apresenta algum defeito, pois o surdo implantado volta à estaca zero se o seu processador de fala não funciona corretamente, conforme experiência da autora.

Ademais, apresenta uma relação de dependência com o plano de saúde de forma que, no momento em que necessita de manutenção da sua prótese auditiva, a operadora de plano de saúde é sua única solução, pois lhe forneceu seu implante coclear. Outrossim, economicamente falando, é a figura da relação consumerista que tem condições econômicas de arcar com a manutenção da prótese98.

Evidencia-se mais ainda, neste ponto, a potencialidade da lesão que o paciente-surdo pode ter de seus direitos pois, sem o implante coclear em pleno funcionamento, não possui mais o mínimo vital e não poderá desfrutar – enquanto não houver conserto da peça defeituosa – da qualidade de vida conquistada com a aquisição da prótese auditiva, o que fere a sua dignidade enquanto pessoa humana.

Destarte, o Direito do Consumidor, ao ser reconhecido como direito fundamental99,

passa a ensejar a necessidade de uma intervenção estatal nas relações cotidianas, a fim de efetivar as normas. Afinal, “[...] o Código de Defesa do Consumidor, ao proteger os mais fracos,

96 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 586316-MG (2003/0161208-5). Relator: Ministro

Herman Benjamin. Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4092403/recurso-especial-resp- 586316. Acesso em 06/11/2017.

97 Assunto abordado no capítulo 1, tópicos 1.1 (qualificação, indicação e benefícios do implante coclear) e 1.3

(implante coclear como garantia da qualidade de vida) do presente estudo.

98 Conforme estudo feito no capítulo 3 desta dissertação. 99 SANTOS E SILVA et FRANCO, 2012, p. 15.

em tese, é aquele provedor da mudança de paradigma, capaz de conscientizar a grande massa e gerar uma mudança de atitude geral em que pese os fornecedores”.100 Desta forma, o CDC

acaba por ser definido como “manancial de expectativas recíprocas e direitos humanos”101.

100 SANTOS E SILVA et FRANCO, 2012, p. 15. 101 Ibidem, p. 19.