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4 A APOSTA DE FAZER UMA EDUCAÇÃO PERMANENTE EM

4.4. O Diário Cartográfico e A Caixa de Afecções

A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem, pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. (BARROS, 2010)

A singularidade da produção também acontece por meio de diversas linguagens (poesia, música, paródia, conto, performance, etc.), onde os participantes foram convidados a olhar o seu território, identificar as suas afecções, narrando-as por meio do diário cartográfico ou disponibilizando-as na caixa de afecções para si ou para outros atores que interagiam com essa ferramenta.

O diário cartográfico se propôs a ser um lugar onde o participante do curso insere de forma reflexiva suas impressões e produções, oriundas das experiências de EP

89 identificadas nos territórios. Muito mais que um web portfólio comum dos processos formativos, o diário se constituiu em um espaço de criação, com abertura para a inventividade, para produção de narrativas e de conhecimento, oriundas de afecções e experiências no trabalho em saúde.

O diário foi pensado como um registro de cartografia, lugar onde ocorre a expressão, onde as experiências são narradas, onde o narrador é o autor e ator de sua própria história, conta fatos sem se preocupar com uma ordem cronológica ou com o fato em si, mas com aquilo que lhe afeta e que lhe faz sentido.

A caixa de afecções surgiu a partir das discussões que tivemos com o grupo de formadores, partindo da necessidade de se ter um arquivo vivo de objetos relacionados com as experiências dos alunos no mundo do trabalho que dialogassem com um plano simbólico (ex.: poesia, fotos, objetos) e assim estimulassem a troca e narrativa dessas experiências.

Afecções são o corpo sendo afetado pelo mundo em um encontro pontual de um corpo com outro. Quando somos afetados pelos outros corpos, sofremos uma alteração, uma passagem, responsável pelo aumento ou diminuição da nossa potência de vida. (ESPINOSA, 2005). Espinosa descreve o significado de afeto como as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída (ESPINOSA apud blog Razão Inventada).

A caixa é, portanto, um convite a ativação do sensível e do corpo vibrátil, a partir dos encontros, seja com indivíduos, seja com objetos que nos colocam em outro plano de imanência em relação à vida (ROLNIK, 2007). Propõe-se a ser uma caixa de ferramentas no sentido de ter de ser útil, funcionar não apenas para si, mas para as pessoas que possam utilizar (Foucault, 1979, p. 69) ou como um conjunto de saberes e tecnologias que se dispõem para a ação de produção dos atos de saúde (MERHY,

1999), ou ainda como uma caixa-valise de Marcel Duchamp36

(http://biografiasgls.blogspot.com.br/2013/04/um-pouco-de-marcel-duchamp.html). O vídeo sobre a caixa de afecções, pensada pelo coletivo de autores e formadores como um convite para transver o mundo, como propõe o poeta Manoel de Barros, parte de uma reflexão sobre os objetos relacionais que afetam os indivíduos e esses objetos, estabelecendo outras conexões com os sujeitos, produzindo aprendizados de

90 forma singular.

Em sua obra a Traição das Imagens (Figura 5), René Magritte37 leva-nos a perceber

os objetos para além do que é formalmente denominado, remete-nos a questões que dialogam com o que estamos querendo provocar – produção de novos regimes de visibilidade e dizibilidade, a capacidade da narrativa de cada sujeito.

Figura 5 – A Traição das Imagens, 1928-9, óleo sobre tela, 60 cm x 81 cm, René Magrite, LACMA – Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles.

Fonte: retirado do site https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/a-traicao-das- imagens-rene-magritte/

A caixa de afecções buscou ativar o nosso corpo sem órgãos38 , como campo de

imanência do desejo, em que se define como um processo de produção, sem referência em qualquer instância exterior. (Deleuze; Guattari, 1999, p. 150). Nos remete a uma percepção dos objetos que vão além do convencional, possibilitando explorar outras capacidades do nosso corpo, dando passagem aos afetos para dar conta dos desafios da vida, bem no sentido do que Deleuze nos traz em suas reflexões sobre o uso da teoria, do discurso e dos conceitos que eles só fazem sentido se servir para uma ação.

Em uma releitura da obra de Antonin Artaud Para dar o fim ao juízo de Deus, o ator e diretor do teatro-oficina José Celso Martinez Corrêa traz, de uma forma muito concreta, essa ideia do CsO defendida por Artaud e denuncia, a partir de uma interação intensa com a plateia, o que Artaud denomina de certas obscenidades

37 Trechos extraídos do texto e vídeo sobre caixa de afecções do material da EPS em Movimento.

38 Termo retirado da transmissão radiofônica de Antonin Artaud, ator francês de Para acabar com o

julgamento de Deus, em 1947. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=qJDgWywHLtw>. Usado em

91 sociais oficialmente sancionadas, reconhecidas e recomendadas como o imperialismo bélico americano, à época responsável pela dizimação do povo indígena, pela inseminação artificial de fetos por meio de esperma infantil doado por crianças como forma de recrutamento de soldados para a guerra, entre outros39.

Assisti por duas vezes a essa peça e, só assim, somado à transmissão radiofônica do próprio Artaud, consegui compreender o que, de forma lúcida e sensata, ele estava querendo transmitir para a sociedade à época e que dialoga muito com as questões contemporâneas.

O Homem, quando não é contido, é um animal erótico. Tem em si um inspirado tremor, uma espécie de pulsação que produz animais sem números que são a forma que as antigas tribos da terra universalmente atribuíram a Deus.

Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força, mas não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade.

Vai ensinar-lhe a dançar ao contrário como no delírio de Bal-musette e esse inverso será o seu verdadeiro lugar. (ARTAUD, 1947)

Não será possível descolar esse estudo do meu corpo sem órgãos, daquilo que me faz vibrar na produção de minha existência. Isso vai se desvelando a cada momento a partir das tensões entre o instituído e o instituinte que habitam em mim, assim como os agenciamentos, os estranhamentos, as apostas e rupturas que fazem conexão com outros agires e experimentações nos processos de construção de políticas de saúde. É uma proposta que vai além do olhar racional, busca captar signos e novos sentidos como uma espécie de radar que vai rastreando nos territórios existenciais e físicos tudo o que nos afeta, criando planos de registro que podem se conectar com outros planos e produzir novos encontros com novos registros e novos aprendizados. Um filme, uma aula, uma palestra, um presente, uma carta, uma obra de arte, uma pintura, uma pessoa, são exemplos daquilo que podemos trazer ou recolher para um aprendizado coletivo – um pouco do outro projetado em si e um pouco do mundo para assim dar vazão aos afetos.

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