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Parte 2: O homem supérfluo

2.4. O diário de Tchulkatúrin

A importância do Diário de um homem supérfluo não se limita apenas à fixação de um termo na literatura russa que designa um de seus mais importantes tipos, o que já seria, por si só, um grande feito. As personagens de Turguêniev estão sempre apresentando algo novo. A eloquência bem intencionada de Rúdin e a altivez insolente de Bazárov, por exemplo, são características que não se presenciam em nenhuma figura anterior, tanto na obra de Turguêniev quanto na própria literatura russa. Também em Tchulkatúrin observam-se aspectos que o diferenciam de seus predecessores. A opção de retratá-lo através de uma perspectiva intimista possibilitou a Turguêniev evidenciar de modo mais enfático determinadas características pessoais da personagem diretamente ligadas à sua superfluidade, características estas que não se encontram em seus congêneres, pelo menos não de forma tão evidente.

Há uma razão técnica para a sua opção por narrar a história na forma de um diário. O talento de Turguêniev estava mais voltado para retratar os fenômenos da vida social do que o interior de indivíduos. Em uma narrativa de caráter mais

76 Carta datada de 19 de dezembro de 1847.

77 Termo que designa os jovens não pertencentes à nobreza, mas que tiveram acesso à universidade. Pela própria origem social, estavam afastados do centro do poder, o que lhes possibilitava uma postura mais aguerrida por mudanças mais radicais.

psicológico, o escritor via necessidade de se esconder através da fala das personagens, adotando o foco narrativo de primeira pessoa. Diz Wilson:

[…] em matéria de observação, Turguêniev é sempre vigoroso. É antes o hábil observador imparcial dos fenômenos da vida russa que o seu psicólogo inquisitivo, e, quando tenta penetrar o interior dos seus personagens, mostra-se menos convincente do que quando está apenas narrando o que dizem e fazem, que aparência têm e que sentimentos suscitam. […] Talvez seus personagens se revelem melhor quando estão se apresentando a alguém – tal como nessas obras-primas de ironia que são Uma correspondência e

Fausto: nelas, os dois homens ignóbeis, por suas cartas, revelam

inconscientemente ao leitor aquilo que não sabem a seu próprio respeito.78

É o que Turguêniev fez também em Memórias de um caçador, ao passar a palavra diretamente ao camponês, permitindo-lhe que se revelasse por si mesmo. A beleza dos contos está exatamente no fato-surpresa de o camponês pronunciar-se de modo tão sincero e honrado – algo até então nunca visto na literatura russa -, o que não transpareceria se o escritor optasse pelo filtro de um narrador onisciente. Vemos ocorrer o mesmo no Diário. A opção de Turguêniev foi permitir que o próprio homem supérfluo se desvendasse, e, para isso, nada melhor que a escolha de um diário, instrumento intimista por natureza, e uma personagem que estivesse em seus últimos dias de vida, momento propício aos desabafos mais íntimos.

A recorrência de Tchulkatúrin a um diário dá-se logo após o momento em que toma conhecimento dos poucos dias que lhe restam de vida, mas, diferentemente dos diários convencionais, o de nosso protagonista não relata as ocorrências do tempo presente, mas as do passado. Os comentários acerca dos acontecimentos atuais são sempre esporádicos e breves, resumindo-se a alusões à sua aia, ao seu médico e à sua saúde. Há uma certa urgência em querer relatar algo – devido ao pouco tempo que lhe resta -, sem que se saiba exatamente o quê, daí ele não ter um determinado objetivo em mente:

Melhor começar a contar alguma coisa. Lá fora está úmido e ventando - estou proibido de sair. O que contar então? Acerca de 78 WILSON, 1991, p. 235.

suas doenças um homem decente não fala; inventar histórias não é minha especialidade; refletir sobre questões elevadas não é comigo; nem mesmo descrições da vida ao meu redor poderiam interessar- me; e não fazer nada é deprimente; de ler tenho preguiça. Ah! contarei a mim mesmo toda a minha vida. Excelente ideia! Diante da morte é o mais apropriado e a ninguém ofende. Começo. (p. 13)

E ainda que Tchulkatúrin decida-se inicialmente a contar sua vida – e realmente comece a fazê-lo a partir da infância -, não é o que se verifica posteriormente. De início, dá-se a impressão de estarmos diante de um texto fragmentado, com seu autor – ainda indeciso sobre o que escrever - redefinindo suas intenções a cada passo: de relatar toda a sua vida, ele passa a ter como objetivo refletir sobre seu caráter e, posteriormente, faz um pequeno recorte de seu passado, narrando - e desta vez detendo-se em – sua viagem à cidade de O… No entanto, o que aparenta ser uma fragmentação, fruto dos possíveis delírios da mente perturbada de um homem em plena consciência de seu fim iminente, constitui-se, na verdade, em uma unidade extremamente coesa na estrutura e coerente nos propósitos. O relato de sua vida que se propõe a fazer – que termina por não ir além do relato da infância – mostra-se essencial para o leitor compreender as origens e causas de sua superfluidade; através das reflexões de Tchulkatúrin sobre o próprio caráter, dão-se a conhecer suas angústias e frustrações, resultados de sua condição supérflua; já na narrativa da viagem a On, nosso protagonista coloca-se à prova, demonstrando na prática sua total inaptidão para as mais elementares ações cotidianas. Como se percebe, há um segmento nessas unidades e somente uma análise desse todo nos dará uma imagem mais precisa dessa personagem tão complexa.