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O diferente no conto

No documento Relendo Shrek: lidando com o diferente (páginas 82-87)

3 OS CONTOS DE FADAS E A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO

4. SHREK! ANÁLISE DO CONTO ÀS TELAS

4.4 LIDANDO COM O DIFERENTE: O CONTO E O FILME

4.4.1 O diferente no conto

O aparato teórico aqui descrito, baseado nas características de indivíduos desviantes, estigmatizados, bem como nos traços que fogem ao padrão esperado pela sociedade, serviu para ajudar nas possíveis interpretações tanto do conto Shrek!, quanto da animação Shrek I. Considerando que ambas as obras retratam tais características através dos seus personagens principais, faz-se necessário observar como os preconceitos identificados perpassam inicialmente o conto e, mais adiante, a sua adaptação.

O conto inicia-se com a imagem dos pais de Shrek, expulsando-o, com um pontapé, do lugar onde vivia. Os pais do ogro, que eram tão “feios” que chegavam ao grotesco, não toleravam a convivência com o filho, que, por ser feio, gerava um grande problema. A aparência horripilante de Shrek passou a incomodá-los tanto que ficou difícil conviver com uma pessoa que, na verdade, representava o espelho deles. Então, Shrek que parecia ser “o diferente” para a família, foi estigmatizado por eles, representando uma não--aceitação pelos seus pais do próprio “eu” – conceito esse retratado por Deleuze quando trata da diferença como manutenção do idêntico.

Há um trecho que Shrek encontra uma bruxa na floresta. A figura da bruxa, que sempre foi representada nos contos de fadas como um ser fora dos padrões de “normalidade”, aterrorizador e maldoso, retratando um comportamento “desviante”, agora é retratado como uma figura que também passa a ter medo do ogro. Mais uma vez, percebe-se a rejeição que o ogro suscita em seu próprio grupo: um ser violento, que come pessoas e animais. A bruxa faz parte da história e prevê o futuro de Shrek, dizendo-lhe que irá encontrar uma princesa com quem vai se casar.

No caminho, Shrek faz questão de amedrontar as pessoas que passavam à sua frente. Pelo fato de ser um ogro, antes mesmo de ser discriminado pelas pessoas, ele já assume o papel de pertencer ao grupo dos estigmatizados, o que é comum para um indivíduo que sofre

rejeição. Ele tende a internalizar essa atitude e aceitar as atitudes discriminatórias como válidas, acreditando que não se enquadra em nenhum das categorias preestabelecidas pelas normas estéticas de uma determinada sociedade, se configurando como um outsider (GOFFMAN, 1988).

Segundo os tipos de estigmas retratados por Goffman (Ibidem), o personagem do nosso conto se enquadra na categoria das abominações do corpo, por ser um ogro muito “feio”. Além disso, lhe são impostos estigmas tribais de etnia, pelo fato de não ser considerado uma pessoa humana. Neste caso específico no conto, Shrek assume uma postura do diferente antes mesmo de ser “julgado” e “condenado” pela sociedade.

O simples fato de Shrek caminhar entre as pessoas tidas como “normais”, as mesmas se assustavam, daí o pré-julgamento por ele ser um ogro. Até o trovão e o relâmpago demonstram uma atitude preconceituosa para com o ogro, discriminando-o simplesmente pela sua aparência.

“Já viu alguém mais nojento?”, o Relâmpago perguntou para o Trovão. “Nunca na vida”, trovejou o Trovão. “Vamos lhe dar uma lição.” O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no cocoruto do Shrek [...] (Steig, p. 12)4

Tal acontecimento insere-se no que Gilberto Velho (1977) aborda como um indivíduo “desviante” dentro da perspectiva do outro; não que o mesmo esteja fora de sua cultura e dos padrões estabelecidos, mas o que ocorre é que, muitas vezes, faz-se uma “leitura” divergente do semelhante indivíduo, que pode compor uma minoria em determinado contexto.

Em outro momento, antes de Shrek enfrentar o cavaleiro para resgatar a princesa, encontra um cartaz dizendo:

Preste atenção viajante, É grande o perigo que corres: Dê meia volta, não vá adiante,

Se entras no bosque, tu morres! (STEIG, p. 13).5

O fato de Shrek seguir tranquilamente e ignorar a placa de alerta sugere a sua posição de que, aos olhos da sociedade, não há nada mais terrível e violento do que um ogro. Essa atitude parece se enquadrar na visão do crítico Goffman (1988), uma vez que o indivíduo se

4 “Did you ever see somebody so disgusting?”Said Lightning to Thunder. “Never,” Thunder growled. “Let’s give him the works.” (Steig, 1990, p.13)

5 “Harken, stanger. Shun the danger! If you plan to stay the same, you’d best go back from whence you came.” (ibidem, p.14)

enquadra nos grupos dos estigmatizados, às vezes o mesmo incorpora e aceita a condição que lhe foi dada.

Mas a quebra do paradigma acontece quando Shrek, ao ser surpreendido na floresta por um dragão, em sinal de respeito, curva-se diante dele, fazendo-lhe uma referência. Por sua vez, o dragão tenta cumprir a sua função, a de oprimir o ogro, mas a reação de Shrek é se comportar de maneira simpática e até achar graça, “O dragão derrubou-o no chão, mas Shrek nem ligou: ficou ali deitado achando divertidíssimo” (STEIG, 1990, p. 14).

No conto, há um momento em que Shrek adormece no bosque e sonha com lindas crianças, acariciando-o e brincando com ele. O próprio ogro considera tal evento como um pesadelo, acordando assustado e balbuciando como um bebê: “ainda bem que foi só um pesadelo... um pesadelo aterrador!”. (ibidem, p. 17)6. Isso demonstra que o próprio

estigmatizado acredita ser impossível deixar de ser um indivíduo fora dos padrões e, assim, conseguir conviver socialmente.

Ao chegar ao castelo, o herói passa pela “sala dos espelhos” e vibra ao ver sua imagem em todos eles. “Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO EU!” Olhou-se nos espelhos, cheio de uma raivosa auto-estima, fica feliz por ser exatamente como sempre tinha sido”(ibidem, p. 24-25)7. O personagem, apesar de não ter conhecimento do grau da sua feiúra, fica feliz ao ver suas várias imagens horrendas refletidas no espelho. Com isso, o ogro reconhece e valoriza o seu “eu”, sem se importar com que os outros pensam dele e reafirmando a própria singularidade.

A função dos espelhos mágicos dos contos de fadas é a de retratar o belo, mas no conto, constata-se que, apesar do espelho geralmente ser usado para refletir a beleza, neste caso desempenha a função de multiplicar a feiúra do ogro, subvertendo a função tradicional do próprio espelho.

6 “He woke up in a daze, babbling like a baby: “It was only a bad dream…a horrible dream!” (Steig, 1990, p.18) 7 “They’re all me!”he yodeled. “ALL ME” (Ibidem, p.26)

Figura 12: A sala dos espelhos

No momento em que Shrek encontra a princesa “mais horrorosa de todo o planeta”, surpreendentemente há um encantamento mútuo ao perceber que ambos pertencem ao mesmo grupo de estigmatizados, pela negação do belo. Portanto, na passagem que descreve o primeiro encontro dos dois, há uma valorização do ser como ele realmente é, cada um respeitando suas diferenças, como descrito abaixo (STEIG, 1991, p. 28):8

Disse Shrek: “oh, que horrorosa que tu és Disse a princesa: “Teu nariz é tão peludo

Com os teus lábios azuis, Como tu és bexiguento!

Teus lábios inchados A nossa história tem tudo

Parecem cheios de pus! Para acabar em casamento!”

Tu já sabes que te amo E sabes até por quê, É que não há neste mundo Princesa mais feia que vosmecê!”

8 Said Shrek: “Oh, ghastly you, with lips of blue, your ruddy eyes with carmine sties enchant me. I could go on, I know you know the reason why I love you so- You’re ugh-ly!” Said the princess: “Your nose is so hairy, oh let us not tarry, your look is so scary, I think we should marry.” (Steig, 1990, p.29)

Figura 13: O encontro de Shrek e Fiona

Assim, o indivíduo aparentemente “desviante” tanto pode estar sozinho como pode pertencer a um grupo minoritário organizado. Ao encontrar outro semelhante, sente-se um cidadão “normal”, não mais divergindo dos outros (Velho, 1977). Aplicando essa hipótese ao conto analisado, ao final da história, Shrek casa-se com Fiona, tão feia quanto ele – daí o seu contentamento –, e os dois “viveram horríveis para sempre, apavorando os que tinham o azar de encontrá-los” (STEIG, 1991 p. 30)9.

No documento Relendo Shrek: lidando com o diferente (páginas 82-87)