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O Direito à Liberdade Física e à Segurança Individual 35

1.5. Os Direitos, Liberdades e Garantias Constitucionais em Angola 22

1.5.6. O Direito à Liberdade Física e à Segurança Individual 35

Por constituir o centro de análise da presente reflexão, o direito à liberdade física e à segurança individual há de merecer uma cuidada apreciação e análise quanto às modalidades do seu exercício e os mecanismos da sua efetiva garantia. Embora a consagração constitucional enquadre no mesmo comando o direito à liberdade física e à segurança individual99, consideramos estarem em causa duas figuras jurídicas, relacionadas e interdependentes, ainda que de complexa aferição das suas particularidades de forma isolada. Por um lado, o Direito à Liberdade, no sentido da proteção contra a privação ilegal da liberdade de cada indivíduo, e, por outro, o Direito à Segurança, que abrange a garantia contra atos de violência ao indivíduo e ilicitudes contra os seus bens. Assim, uma vez estar reservado um desenvolvimento particularizado sobre o Direito à Segurança, importa para já discorrer sobre o direito à liberdade física.

Foram já apresentadas nesta temática algumas considerações que estão relacionadas com o direito de liberdade no seu sentido amplo – a liberdade de residência, circulação e emigração e a liberdade de reunião e de manifestação. Entretanto, estas liberdades não se devem confundir com a liberdade física, embora a falta deste impede o exercício daqueles.

A liberdade física ou pessoal ou o direito à liberdade conforme denomina a CRP100, é uma emanação de todo o ser humano em sentir-se livre, sem ter a sua pessoa privada do seu ambiente natural ou comum. Conforme estabelece a DUDH, ser livre é uma condição que nasce com todo o indivíduo e que, em princípio, deve assim permanecer ao longo de toda a

98 Cfr. artigo 21º do PIDCP (in fine). 99 Vide artigo 36º da CRA.

sua vida. Por outras palavras, é um pleno direito de propriedade sobre o próprio corpo do indivíduo, sujeito à proteção contra a vontade ou o arbítrio de outrem, seja entidade pública ou privada.

A nível da Constituição angolana, o direito à liberdade deve merecer uma análise conjugada dos artigos 36º, 63º, 64º e 67º, para além de outros comandos constantes das leis ordinárias, em particular a Lei da Prisão Preventiva em Instrução Preparatória101. Neste sentido, a liberdade física que cuidamos de abordar reporta sobre a ausência de privação da liberdade e de tortura ou violência contra o corpo de todo o ser humano. Sendo por isso um direito natural acolhido no plano jurídico interno, não é admissível a privação da liberdade fora dos casos e nas condições enumeradas pela Lei Fundamental e legislação ordinária. Ou seja, a par de todos os demais direitos, liberdades e garantias fundamentais, a restrição do direito à liberdade deve constar da lei e visar a salvaguarda de um direito ou interesse constitucional de maior valor para a sociedade.

Neste sentido, o ordenamento jurídico vigente apenas permite a privação da liberdade102 de quem quer que seja nos seguintes casos:

§ Detenção em flagrante delito por infração punível com pena de prisão;

§ Detenção ou prisão fora de flagrante delito, ordenada por autoridade competente, por infração punível com pena de prisão superior a um ano e inconveniência ou inadmissibilidade da liberdade provisória;

§ Expulsão administrativa ou por decisão judicial de cidadão estrangeiro em situação migratória ilegal;

§ Prisão disciplinar de elementos militares e policiais103;

101 Lei n.º 18-A/92, de 17 de Julho, que revoga os artigos 202º a 213º do CPP sobre a matéria.

102 A privação da liberdade pode resultar de prisão, detenção ou prisão preventiva. É utilizado o termo prisão para expressar qualquer privação da liberdade do indivíduo. Entretanto, a prisão diz respeito à pena privativa da liberdade resultante de sentença condenatória em tribunal; a detenção é a privação da liberdade de forma precária, por um lapso de tempo curto, nos termos da lei. A prisão preventiva é a privação da liberdade mantida ao nível judicial, observando os prazos legais, de acordo com a gravidade e a moldura penal da infração – Cfr. EIRAS, Henriques; FORTES, Guilhermina – Dicionário de Direito Penal e Processo Penal. 2ª ed. Lisboa: Quid Juris – Sociedade Editora Ld.ª, 2006, pp. 139 e 295.

103 Na verdade, está terminada a aplicação de medidas de prisão disciplinar a elementos militarizados, pois o Decreto n.º 41/96, de 27 de Dezembro, que estabelece a aplicação direta da prisão disciplinar ao pessoal com funções policiais, à exceção ao da classe de Oficiais Comissários, está agora revogado pelo Decreto Presidencial n.º 38/14, de 19 de Fevereiro (Regulamento sobre o Regime Disciplinar do Pessoal da Polícia Nacional). No entanto, este diploma estipula a sanção de aquartelamento até 25 dias, que consiste na proibição do agente policial sair da unidade ou onde quer que esteja a cumprir o seu serviço, sendo obrigado a realizar neste período a atividade que lhe está consignada, nos termos do artigo 15º e 18º do Decreto Presidencial em referência. Ora, esta situação não deixa de ser, quanto a nós, uma forma de privação da liberdade do indivíduo.

§ Aplicação de medidas de segurança ou sujeição de medidas de proteção social ou internamento a menores em conflito com a lei;

§ Prisão por decisão ou sentença judicial condenatória em julgamento.

O estado de privação da liberdade não coloca de forma alguma o detido ou preso numa condição de disposição social para atos de abusos por parte de cidadãos como penitência pela sua ação perversa. Se, por um lado, a ordem jurídica obriga o indivíduo à reparação do dano causado à sociedade, mediante cumprimento de uma pena correspondente à medida do dano provocado, por outro, estabelece determinados direitos e garantias ao detido ou preso a que tanto as entidades públicas quanto os particulares devem salvaguardar e pautar a sua atuação. Assim, dentre outros, constituem direitos e garantias constitucionais elementares de toda a pessoa privada da liberdade104:

§ Ser informada das razões da detenção, do local para onde é conduzida e dos direitos que lhe são inerentes como tal;

§ Ser assistida por advogado constituído ou defensor nomeado; § Não prestar declarações ou fazer confissões contra si própria; § Ser confirmada a sua prisão por magistrado competente; § Ser julgada nos prazos legais;

§ Ter um intérprete para comunicar em caso de língua que não compreenda; § Ser tida como inocente até prova em contrário em sentença de condenação; § Receber visitas e ter correspondência com os seus entes;

§ Não ser expulsa nem extraditada do território nacional;

§ Não lhe ser aplicada pena de morte ou medida privativa ou restritiva da liberdade de carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida;

§ Não ser julgada mais do que uma vez pelo mesmo fato105;

§ Recorrer da providência do habeas corpus em caso de prisão ou detenção ilegal; § Interpor recurso em tribunal competente das decisões proferidas contra si.

Nos termos da Constituição e da lei, a parte os casos enumerados que podem permitir a privação da liberdade do indivíduo, este direito é de resto inviolável, sendo dever das entidades públicas instituídas assegurar o seu pleno exercício pelos membros da sociedade. Neste sentido, a lei tipifica e sanciona determinados comportamentos sociais que ofendam à liberdade física do indivíduo, sendo paradigmático todos os fatos arrolados no Capítulo I do

104 Vide artigos 59º, 63º, 65º, 66º, 67º, 68ºe 70º da CRA.

Título IV do Código Penal relativo aos crimes contra a liberdade das pessoas, artigos 328º a 335º, com particular evidência para os crimes de cativeiro, coação física, cárcere privado, captura ilegal por particulares e violência de particulares contra detidos, todos sancionáveis com pena de prisão. Por outro lado, a detenção ou prisão ilegal e a violência ou maus-tratos contra cidadãos na condição de detidos ou presos por parte das autoridades públicas incumbidas de cumprir e fazer cumprir a lei ou de velar pela custódia dos mesmos, é também sancionada na lei penal como crimes de abusos de autoridade106.

No domínio do direito internacional, o direito à liberdade tem consagração nos artigos 3º, 9º e 10º da DUDH e nos artigos 9º e 14º do PIDCP, para além de outros normativos de ordem comunitária regional, que na generalidade acentuam o estado de liberdade inerente à dignidade da pessoa humana e a necessidade de os poderes públicos e demais particulares cuidarem de não ofender o corpo e a mente dos cidadãos, para uma vida saudável e harmoniosa entre todos os membros da sociedade.

As referências que apresentamos sobre a consagração dos direitos fundamentais em Angola simbolizam de forma clara os esforços de ordem jurídica em curso no País para a construção e consolidação de um Estado constitucional democrático e de direito, que acompanhadas de ações de ordem prática a realizar ao longo do tempo hão de catapultar o País para “o momento a partir do qual se pode considerar que os direitos da pessoa humana são (...) reconhecidos e garantidos”107.

É desde já indispensável educar a sociedade para uma cultura de direitos humanos em geral, e de direitos fundamentais em particular, pois é “absurdo pretender aceitar os princípios da DUDH [e da Constituição] sem uma Cultura existente no povo (…) que a [aceite]”108 e que permita o seu exercício por todos com consciência e discernimento. Só assim faz sentido que reservar ao poder público o dever de respeito e de salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, nos termos dos princípios de direito internacional, da Lei Suprema e Fundamental e demais comandos normativos da ordem jurídica Estadual.

106 Cfr. artigos 291º e ss. do Código Penal.

107 Cfr. ALEXANDRINO, José de Melo, op. cit., p. 17.

108 SILVA, Armindo Neves da – 60 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948 – 2008) e a